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MARIA ESTELA GUEDES
Herberto Helder, Poeta Obscuro
Maria Estela Guedes
Herbert
o Helder: Poeta Obscuro.
Moraes Editores, Lisboa, 242 pp.
1ª edição (esgotada), 1979. Edição on-line : Agosto de 2002.
III - COBRA
MEMÓRIA, MONTAGEM
 

"Memória, montagem" teoriza a prática poética. Mas este próprio texto, sendo teórico, se exemplifica como prática: estabelece-se a indistinção de poema e prosa, e de verso e linha. Aqui mesmo, onde tal se afirma, o texto revela-se não somente poema em prosa, como acabará por ser uma prosa em verso - um híbrido.

O poeta formula conceitos e definições, a partir da relação que estabelece com a pintura, o cinema e a poesia. Três actividades aproximadas pelo que nelas o sujeito encontra de comum e essencial: a expressão cinética, a criação de um mundo que reproduz a relação pessoal com o espaço e o tempo. O autor preocupa-se em estabelecer a sua posição estratégica face à vida, pondo paralelamente em contacto a actividade poética própria com actividades poéticas alheias.

Quadro, filme e poema são casas para onde se entra e de onde se sai: casas que marcam quem as habitou, pois a leitura desses textos vai constituir um tecido cultural na memória do leitor que, aqui, parte justamente de lembranças do que viu ou leu e sobre as quais exerce reflexão critica. Os nomes dos construtores de casas habitadas pela atenção do poeta são muitos: Aristóteles, Walter Benjamin, Picasso, Huidobro, Malraux, Shakespeare, Apollinaire, Cendrars, Dante, Pound, Eliot, Baudelaire, Rimbaud, Godard, Welles, Delaunay, Holderlin, Goethe e Losey. "Se há aqui excesso de nomes e referências, sejam eles tomados como montagem, concebida num apoio cultural estilisticamente irónico». Ficámos a conhecer algumas casas que podem dar uma ideia, pelo menos, da confluência em Herberto Helder de vectores culturais diversos na natureza, mas sobretudo no tempo: o antigo e o moderno. Mais uma vez se fornecem aos leitores chaves para possíveis leituras críticas: as influências, de que modo são recebidas .e expressas, até que ponto podem ser aceites ou refutadas, que importância têm no conjunto da obra do autor, em que medida modificam a sua visão do mundo ou interferem no seu processo de escrita. E, complementarmente, o estudo da influência do autor sobre a geração de poetas seus contemporâneos.

A marca cultural não vem só deste tipo de casas, ela vem também da natureza, outorgada às nossas violações. Esta soma de conhecimentos constitui a montagem, o filme da memória: «Eu penso que a memória entra pelos olhos»: o saber passa preferencialmente pelo olhar. Quando se lê um poema assiste-se ao desdobrar da memória de alguém; o poema constitui a noção narrativa própria do poeta, a manifestação de como se relaciona com o universo. Em «Memória, montagem» exprime-se muito mais o que move o indivíduo à escrita e quanto dela se espera do que propriamente uma série de conceitos didácticos sobre literatura ou outras artes. Fala-se de dentro, das relações que o autor cria consigo através da escrita, com a escrita, e com o mundo. O que se espera da escrita será o poema: «Rimbaud partiu de todos os seus lugares para dimensões paralelas, e fez no poema presente a montagem do poema ausente». E a vertigem vem daqui, da falta. Por isso, todos os poemas representam expedições de caça: o objecto da procura não está neles. A escrita poética como modo de supressão do ser em necessidade será tema no primeiro de «E outros exemplos».

O grande segredo da fascinação que o texto possa exercer no leitor vem da subtileza do jogo entre presenças e ausências: o que está evoca o que não está, e esse não-estar constitui realmente o poema. Quer dizer, o poema real. Por isso, o jogo remete para a solidão. De facto, a relação entre escritor e escrita exprime-se como jogo solitário. O tecido poético é lacunar de várias maneiras, e não apenas por o leitor poder eventualmente preencher algumas lacunas. De qualquer modo, a ausência não se deve a acasos nem a acidentes, é uma necessidade: se não existisse, o artista não precisaria de criar. Ou bastar-lhe-ia uma obra única, algo de tão completo e perfeito que depois disso não seria possível criar mais nada.

Relativamente ao leitor, a ausência faz falta:

«Quanto mais subtil, furtiva, secreta, desentendida, complexa e ambígua for a montagem, mais penetrante e irrefutável a sua força hipnótica.»

Isto acontece, porque, face ao real, autor e leitor se identificam como um e o outro: a segunda pessoa será sempre uma metáfora.

Criação e destruição são modos operatórios extremos que, a suprir a falta, se tornariam equivalentes. Qualquer texto se transforma, assim, em eterno pre-texto do Texto. Por isso o segundo poema do livro se intitula exemplo - exemplo de um dos muitos processos da caça de Deus (em «Cobra» ) - e os últimos continuam a ser exemplos da mesma perquirição. Cada poema corresponde ao gesto exemplar de criação daquilo que simultaneamente adia e aproxima a criação última - por isto um mito - mediatizada pelo trabalho da escrita - esta, o rito. Poema é o mito em acção: «esforço para criar o mundo, fábula última de uma espécie de montagem planetária segundo o medo sagrado e o exorcismo dentro das trevas.»

«Memória, montagem» abre com uma definição e, logo a seguir, surge a declaração enigmática: «nenhum poema se destina ao leitor». O poema não se destina por ele próprio ser destino: narração e ponto de chegada. Seja «destino pessoal na sua narração», seja ponto de chegada, só pode ter por leitor um destinatário de primeira pessoa. Também por isso as intermináveis alterações: mais do que apuro, são o processo de permanecer dentro de um texto em gestação contínua (estar dentro, disse: o poeta é filho do que escreve). No circuito social perde-se a biografia do corpo, fica apenas o corpo da biografia.

O poema projecta-se para quem o projectou: do actor para o actor, o senhor do acto. Visto o leitor ser recusado enquanto entidade exterior, o poema rejeita qualquer compromisso social; melhor dizendo: o poema rejeita o leitor porque, a haver escrita datada e endereçada, isso implicaria compromisso social, facto totalmente excluído dos propósitos da obra herbertiana. A poesia não é feita por todos, nem para todos, a poesia é feita contra todos ( 45) .

A rejeição do leitor social e colectivo não constitui finalidade em si, mas maneira de furtar o poema ao diálogo público, dentro do sistema de pensamento estatuído e massificado. Neste aspecto, é compreensível o desejo do poeta em se manter obscuro. O poema não se dirige às pessoas, mas àquilo que em pessoas seja susceptível de ser movido para zonas de fruição pura. O outro adere a um pacto interno, participando da permanência rigorosa do imaginário no tempo. Sendo assim, entende-se por que razão o poeta (em sentido lato) se declara o rival do mundo: atraindo o destinatário para modos perversos de participação (a norma não prevê a perversidade e esta é condição indispensável para a fruição plena; isto significa que o estatuto não consente a fruição, por não ser produtiva), quer por este outro do leitor fruir vendo, quer por o mover para outras zonas do real fora da dimensão literária, os hábitos passivos de leitura são subvertidos. Ou as normas do mundo são subvertidas quando se entrega ao homem um objecto mágico que lhe permite guardar-se de uma oculta dependência de tudo.

A liberdade desejada está longe de coincidir com aquela que, aparecendo sob a forma de 'libertação dos povos oprimidos', representa ainda a tendência humanitarista de alguma literatura actual.

Se o poema vai ser entendido em termos de objecto esconjurador de quanto se mostra repressivo, não só se assume como meio de libertação individual - a escrita catártica aparece referida com alguma frequência nos textos, mas a catarse vai também atingir o próprio leitor -fcomo opera a abertura do campo de consciência. Por outro lado, enquanto feitiço esconjurador, o poema inscreve-se em determinado tempo-espaço donde se alheia, para instaurar outro espaço-tempo. Expresso pelo tempo de Deus. Opondo-se a quanto pertença ao domínio da instituição social assente em sistemas de sinais abstractos, convencionais e coercivos, o poema assume o papel de objecto corruptor do que, resumidamente, se define pelo mundo do trabalho. E será esta uma das razões que levam Herberto Helder a perfilhar o princípio aristotélico de que o poema é um animal: organismo vivo, autónomo, dotado de capacidade de inter-relação com o ambiente em termos de sobrevivência, sem que o potencial de energia gasto nessa função possa ser confundido com o trabalho da 'máquina desejante' nas sociedades de maior ou menor consumo.

O gasto de energia não produtivo, ou a pura perda em que entra o poema, equivale ao orgasmo. O poema assemelha-se ao animal quando ambos agem à maneira de máquinas vivas unificadas, exprimindo-se em termos corporais de puro desejo: do mesmo modo que o animal caça por desejar alimentar-se, sem estabelecer distinções morais nem selecções entre alimentos espirituais e orgânicos, assim o texto se alimenta da vida para subsistir. Mas quando o poema atinge a saciedade, a sua energia recupera-se da pura perda de desejo, e tal fruição equivale ao orgasmo. Aqui encontramos outro tipo de destruição, diferente da destruição linguística: em «Cobra» surge frequentemente o instinto de abandono, a outra face do instinto de conservação:

«E então, nessa severa assimetria, ela amaria
desaparecer,
súbita e solar, como solsticialmente no espelho o relâmpago
côncavo de um girassol
espacial.»

No poema «Cobra» assistimos ao tenso ritual de escrita orgásmica, sendo o sexo a matéria-prima da transmutação espiritual; se o poema vai ser submetido a determinado número de provas (e pulverizado em diversas di-versões) até se perder em pura poesia, do mesmo modo o corpo será trabalhado até passar do 'solver' ao 'salvar'. Mas o percurso corporal e o percurso alquímico não são paralelos, como objectos gémeos seguindo na mesma direcção: eles acabam por confundir-se no mesmo cadinho, tornando-se unos na mesma matéria simples. Veja-se a alquimia a centrar-se na matéria corporal, em «Cobra» :

«Vejo agora os estúdios enclavinhados na luz. Depois,
serão aspirados pelas ressacas
das trevas.
E a serpente dorme e fulgura entrançada nos braços.
O génio das coisas é baixo, e o ouro
amarrado
em torno do sexo.»

O poema tenta reencontrar uma diferente história, atraindo o outro para o mundo do imaginário, centro da força pois instaurador do tempo de Deus, proporcionando-lhe a passagem para modo de ser não maquinal e, por isso, não alienado.

«Memória, montagem» explica corresponder a memória à montagem cinematográfica, a estrutura de base do poema. Constituída por biografemas (biografia do corpo e não da vida social) e mitologemas (psicologemas), esta memória não é objectiva, sim o imaginário que o poeta tem de si o do mundo com o qual se articula.

Apreendido o mecanismo universal por esse tipo particular de visão, a montagem dos planos - seleccionados do paradigma dos fulcros de energia mágica - constituirá o poema fílmico: sucessão de imagens concretas cuja deambulação conta uma história. Porém, a história não proporciona leitura fácil; em primeiro lugar, esta linguagem predominantemente substantiva e verbal (e por isso falo de imagens concretas) não representa nada que nela não exista quase inteiramente; em segundo lugar, se os poemas (quase todos os do autor) têm um fio narrativo, tal fio não é bastante claro ou linear para tornar possível a reprodução do encadeamento minimamente coerente de acções. Toda a acção se processa em lugar interno e, sendo física e fisiológica, não decorre da necessidade de articulação com um outrem socializado. Existe o estilo narrativo e o narrador («Estive agora em África») , mas falta o narrado propriamente dito, pois a matéria que se esperaria ver narrada cede lugar à matéria lírica. O poema «Cobra» constitui uma sucessão de imagens visuais e de visões de coisas concretas (imaginadas), e de abstracções materializadas. Sucessão fílmica, que implica o poder diegético da imagem, embora o narrador exprima de preferência a biografia, ou seja, a grafia histórica da vida em sentido biológico.

Tendo de material a expressão e a natureza da imagem, e de matéria a relação pessoal oom o espaço e o tempo, o poema tudo contém sem se deixar conter por nada: objecto autónomo e circular, percurso iniciático às origens da inspiração. Inicia o retorno a momentos e lugares remotos (expressos, no texto «Cobra», pela alegoria da criança mítica), centros de força mágica que não só determinam o presente como irradiam ao devir o seu poder magnético: «A inteligência de Welles, por exemplo, está em desembaraçar os fulcros de energia da inerte matéria que os estrangula, e seguir a sua irradiação.»

Toda a matéria dispõe de centros magnéticos e magnetizáveis, passíveis de ser libertos de faixas estranguladoras (assim o poema pode resultar da completa eliminação das «faixas verbais mortas», quando o poeta «marcar onde está o sangue, só») ; a poesia, por exemplo, vivifica o inerte: «O poema vitaliza a vida, se a toca nalguns pontos». É desses focos energéticos que se atraem e repelem como a serpente fascina a sua presa e se deixa fascinar pelo encantador, que falam os poemas deste livro. Tais movimentos fundam a vida, e facultam a quem vive uma forma intensa de ocupar o espaço do mundo, pois através deles o sujeito revitaliza-se ao aproximar-se dos núcleos de força pura. O foco magnético privilegiado será o poema, exercendo o poder dominador mediante a operação transformadora: «O poema gera uma vida nesses pontos tocados.»

A montagem vai ser dada pela imagem do colar: «É um colar de pérolas, as pérolas todas juntas, circuito vibrante que se pode sentir à roda do pescoço com uma viveza autónoma de bicho.» O colar remete para a circularidade dos poemas e do próprio livro. As pérolas representam as palavras, as imagens, os planos cinematográficos, ou aquelas partes inflamáveis da paisagem. Ao sintagmatizarem-se, organizam-se em círculo de significações que, por sua vez, reproduzem ciclos: o ciclo alimentar, o ciclo das estações, o ciclo vital.

A selecção da imagem do colar relaciona-se com a cobra: pela associação de caracteres (só uma letra difere nas duas palavras); por ambos os signos terem cinco letras; pelo facto de o colar exibir a forma da Ouroboros; e também porque o 'enfiar pérolas' dá muito correcta imagem da operação de escolha e articulação dos termos no acto de escrever. Por outro lado, a pérola concentra simbologia particular, relacionada com a da cobra: para lá de outros valores, a pérola representa a palavra sábia. Conta-se que Mao usava o velho provérbio chinês: «Não se discute a pérola do dragão.» Cobra e dragão representam dois diferentes símbolos de semelhante matéria simbolizada, razão que terá levado Carlos Ferreiro a incluí-lo na ilustração hors-texte, entre diversos outros símbolos que, não tendo no texto a sua contrapartida em palavra, a têm, tal como acontece com o dragão, em matéria que se simboliza.

Sentir o poema com viveza autónoma de bicho implica a relação sensorial estreita entre sujeito e objecto: o poema intensifica e desenvolve a capacidade perceptiva do poeta. É, assim, algo de semelhante aos alucinogéneos, afirmação feita noutros textos, e aqui reiterada : «Como a droga torna sensível aos dedos essa espécie de deliberada e independente palpitação de um copo, um lenço, uma pedra.» A droga, o mel, o vinho (frequente até certa altura, depois posto de parte: fala-se porém de anis, e de um veneno branco, em «Cobra») e outros alimentos líquidos aparecem bastante nos textos, relacionados com o transe, o êxtase, estados de grande exaltação poética (e mágica). Como já se apontou, trata-se da loucura dionisíaca. Essa embriaguez sagrada pode ser conseguida também mediante a dança ou a relação sexual. O erotismo está sempre junto com a magia e com a poesia.

 




 




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