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MARIA ESTELA GUEDES
Herberto Helder, Poeta Obscuro
Maria Estela Guedes
Herbert
o Helder: Poeta Obscuro.
Moraes Editores, Lisboa, 242 pp.
1ª edição (esgotada), 1979. Edição on-line : Agosto de 2002.
III - COBRA
O POEMA «COBRA»
2. Da esfera ao centro
 

Os objectos-nomes que em «Cobra» representam o centro, o círculo e a esfera são inúmeros. Interessaram sobretudo estas figuracões simbólicas, mas outras existem, por exemplo a cruz, dada pela projecção do pénis em erecção sobre a horizontal do corpo deitado: «A voz ascende como um membro das suas tramas de sangue».

A própria quantidade de termos implicando aquelas figurações se impõe significativamente, pois serve o sentido capital do poema: a criança como centro cósmico a partir da qual irradiam, centrifugamentc, círculos de energia que se dispersam, vitalizando as várias formas de matéria; a criança como centro hipnótico, atraindo a si, centripetamente, círculos de energia provenientes do exterior. Duplo movimento que evoca a esfericidade pulsante da cabeça e nos faz pensar no poema rotativo, corpo integrado no sistema planetário.

A criança simboliza a fonte viva de energia. Como se escreve no texto VI de «Artes e ofícios» (19) , «As crianças são o instante onde as liras e os dedos são uma única rosa» ; elas são a rosa da perfeição iniciática, o instrumento do canto e o próprio canto, canto que assume dimensão sideral. Esta situação de diálogo cósmico, tendo na base a contrapartida astronómica para a astrologia e a teoria da expansão da matéria, vai ser expressa pela enorme gama de formas verbais, mas que têm no pulsar o mais importante porta-voz: respirar, palpitar, ferver, refluir, crepitar, fulgurar, trepidar, brilhar e rebrilhar. Em todos encontramos a mesma dupla energia cinética de contracção/dilatação, exprimindo o movimento básico dos corpos, sejam estrelas ou formas de vida rudimentares. A capacidade hipnótica do corpo vai justamente ser expressa pelo pulsar, ou seja, pela extrema concentração de massa do corpo estelar, fazendo com que a força centrípeta desencadeada atraia a si tudo quanto lhe passa à volta, inclusivamente a sua própria radiação luminosa :

«-- e dos intensos poros da madeira exalam-se
os bosques completos. Ou são estrelas
negras, os corpos, se o dia se chega para diante,
assim depressa, pedra que se desloca
varada pelos astros. E as flores nunca baixam as pálpebras
sobre os olhos.»

As estrelas negras são invisíveis, dada a força da sua própria gravidade. A luz que emitem é atraída para dentro de si, não chegando a desprender-se centrifuganlente da matéria onde tem origem. O poeta tenta evidenciar o grau máximo de fascinação do corpo, e justamente o seu grau máximo de energia centrípeta, neste caso de ordem luminescente; tudo é arrastado para dentro do corpo, incluindo a sua própria luz, também produzida em grau máximo, conforme fica expresso no facto de as flores brilharem continuamente, nunca baixando as pálpebras. Que tal excesso de fulguração ofusque o corpo, agora negro à força de brilhar, não espanta: O umbigo brilha, cego. Naturalmente o poeta identifica o corpo com as estrelas, facto já apontado, o que vai concorrer em grande medida para o estabelecimento da mais singular imagem corporal na obra: a sideralização do corpo humano. Mas na medida em que o corpo se confunde com a matéria cósmica, podemos falar de mimetismo. Ora, o mimetismo define-se pela ocultação do corpo - a estrela negra, invisível -, fenómeno por sua vez ligado à poesia quando entendida como o silêncio em altura; quer isto dizer que o mimetismo é uma forma de silêncio a que recorre a palavra corporal do poeta obscuro.

A poesia do autor explora muito a ambivalência - a luz invisível, o canto silencioso -, a capacidade dialéctica de alguns corpos ; a energia nuclear está bastante presente em "Cobra", e a matéria verbal reflecte, na sua energia própria, essa força atómica a que faz referência.

Cobra é o principal simbolo de circularidade; criança, de centro ("a infância é central") ; olhos e cabeça, de esfera. Contudo, outros elementos funcionam como seus equivalentes ou constituem simbolos complementares. Todos eles nos dão a curiosa imagem que o poeta tem do corpo, corpo na sua tripla arquitectura: a humana, a cósmica e a verbal.

A cabeça é motivo corporal que desde os primeiros textos do autor se vem repetindo obsessivamente - "Agarro a tua cabeça / áspera e luminosa e digo" (2) - até culminar, em "Cobra", naquilo a que chamei a odisseia das cabeças meteóricas. Este elemento aparece quase sempre em situações perturbadoras, dramáticas, e até cruéis: "pensai num bocado de carne despedaçado entre as mandíbulas / de um tigre", diz-se a propósito da cabeça em "Exemplo". Representando a totalidade do corpo (a cabeça respira, come, ouve, vê, pensa, ama) é o que dele resta, quer como feitiço, em "Apresentação do rosto" (24) , quer como gárgula, em «Cobra» :

«Os sexos fechados pelas bocas claras, que tudo
luzisse anelarmente
--e o poder corresse neles, incessante, num insondável
quarto,
as imagens alinhando-se
num incêndio :
gárgulas, máquinas redondas, os rostos heliotrópicos.»

Todas as imagens desta estrofe se concentram capitalmente, desde o simbolismo da relação sexual em que tem função essencial a boca, até às três imagens finais da cabeça. A máquina, na poesia de Herberto Helder, é quase sempre corporal, a máquina pensante e metaforizadora: máquina lírica (18), máquina de emaranhar paisagens (23), em suma: cabeça lírica, por isso «máquina redonda».

Se o retrato ou a escultura nos dão frequentemente do representado apenas a parte superior, também o poeta presta atenção ao que pode exprimir o essencial da pessoa humana. A cabeça representa o homem, sendo o que nele existe de emocional, de irracional e de pensante e, até, de mais facilmente identificável. Por outro lado, situam-se na cabeça dois 'espelhos da alma' : os olhos e a boca. Por isso, o que o poeta apresenta de si enquanto biografia do corpo será preferencialmente o Rosto, o que alcança ver na maior das alucinações continuará a ser o Rosto :

«Ele viu, a muitas noites de distância o Rosto
satura do de furos ígneos
absorvido
em sua própria velocidade
ressaca silenciosa
um rosto precipitado
para dentro» (35)

O Rosto aparece dentro do corpo, sendo precisamente uma emissão de energia atraída centripetamente pela sua própria velocidade; a situação mostra-se idêntica à das estrelas negras. O Rosto, em «Um deus lisérgico» (35), é uma luz orgânica interior.

Será altura de referir que a cabeça tem mais importância do que o motivo ou o tema na obra do autor, ela representa, por assim dizer, a razão da obra, constituindo o seu centro de irradiação. Como o próprio poeta afirma, toda a sua obra é autobiográfica, todos os seus textos são apresentações do rosto:

"Às vezes esta gente ignóbil move-se lá em e os pés, nada cegamente naquela água tenebro seu espelho, o seu cravo, não sabendo de um impulso remoto, insondável desejo de morrer pelo perfume, pela apresentação do rosto." (19) .

De facto, por muito que o artista fale dos outros ou de outras coisas, estará sempre a fazer a apresentação de si, a morrer inclinado para dentro da biografia do seu desejo. Herberto Helder é muito lúcido relativamente à natureza e mesmo ao conteúdo da sua escrita poética.

Com a cabeça se relacionam múltiplos motivos ou, por uma razão ou outra, nela desaguam inúmeros afluentes da hidrografia poética. Será o próprio poeta a afirmar que toda a profissão é hidrográfica. Ora, justamente num texto que se prende de perto ao que está a ser exposto sobre a cabeça faz-se essa afirmação, e mais:

"Retrato impune, percorrido,
extenso, em sua enxuta vigilância
desarrumando-se
com avencas a escoar-se no fundo suado.
Evapora a lembrança todo o álcool
quieto.
A labareda do bolbo cerebral
nítida, ao sono: eu,
ingreme, cabelos a escaldar, num clima
narrado, veemente,
a sépia." (47)

O retrato autobiográfico centra-se exclusivamente no bolbo cerebral; a totalidade das energias vitais constitui s hidrografia, desaguando no mesmo centro centrípeto e centrífugo: a cabeça. O fragmento transcrito vem de "Kodak", título já de si expressivo por se relacionar com outros que apontam o Rosto.

Com a cabeça se relaciona o espelho, porque dela dá a imagem ; o quadro, a fotografia, a gárgula, porque lhe fixam longamente a mesma imagem; outros elementos que metonimicamente a apontam, como a boca, os cabelos, os olhos, a voz, o canto, etc.. Peguemos unicamente nos títulos dos textos e verificaremos que a obra de Herberto Helder roda em torno da topografia corporal (na sua dimensão anatómica do desejo) e, girando em torno do corpo, mostra-se sobretudo capital o caput (o pensar e o sentir coordenam todos os movimentos de uma poesia do impensado e quantas vezes do irracional) : «Ofício cantante» (7), «A colher na boca» (17), «As musas cegas» (8), «Retratíssimo ou narração de um homem depois de maio» (33) , «O bebedor nocturno» (22), «Em marte aparece a tua cabeça» (27), «Era uma vez toda a força com a boca nos jornais:» (48), «Todas pálidas, as redes metidas na voz.» (3) , «Joelhos, salsa, lábios, mapa. » (25) , «Retrato em movimento» ( 44), «Os animais carnívoros» (30), «Vocação animal» (43), «Kodak» (47), «Canção despovoada» (39) , «Canção em quatro sonetos» (15) , «Antropofagias» (31). Insistindo, voltamos ao ponto de partida: «Apresentação do rosto» (24) .

Como se nota, tudo gira em torno do rosto, do alimento, da voz, ou do que tudo isto conserva, e constitui motivo familiar nos poemas: o sal. Não apenas o cloreto de sódio, mas o sal da obra, ou aqueles sais utilizados para fixar a imagem fotográfica durante a revelação. O sal serve para religar palavra a palavra, tijolo a tijolo, o corpo à casa: os arquitectos da casa biográfica não podem dispensar o elemento fixador e religador do corpo ao espírito :

«Falemos de casas. É verão, outono,
nome profuso entre as paisagens inclinadas.
É certo que traziam o sal, os construtores
da alma» (4)

O feitiço ou a gárgula são aparentemente objectos estáticos ; mas conservam a memória de-, por isso têm vida. Donde após falar do registo do corpo (forma ainda de o fixar com sais durante a revelação - da fotografia do corpo ), o poeta se refere à gárgula, viva, em «Memória, montagem» : «Morre-se de ver a nossa cara no nosso espelho: a gárgula a arrancar-se à biografia do corpo e trazendo na hipérbole do horror o nosso sangue, o sexo, os pulmões, as tripas, o coração».

Aproveitando a presença do sangue, direi que o seu significado se aproxima do do sal: também ele conserva e fixa a vida.

Dada a presença de vida no feitiço e na gárgula, vai aparecer-nos em Apresentação do rosto (24) o diálogo entre o poeta e a tenebrosa cabeça pendurada do tecto, a qual acaba por se confundir com a mãe. Porém, mais frequentemente, a cabeça surge destacada do corpo, vivendo sob a forma de organismo completo e autónomo, sem o aspecto aparentemente estático da gárgula e desse horrendo souvenir; os rostos heliotrópicos, por exemplo, têm a beleza e a euforia da energia solar. Esta imagem deve ser aproximada daquelas em que a cabeça se homologa aos astros, se apresenta como matéria aurífera (o que se prende ao aspecto luminoso do corpo: «a roupa onde / se trava o brilho», em «Cobra» ; a nudez revela a luz corporal, sendo por isso indesejável a presença de roupas) e também de imagens de transmutação da matéria corporal em matéria vegetal - o mimetismo.

Em qualquer caso a decapitação existe e até de forma bem explícita: «um rosto / a que ceifaram o caule». Tanto no caso dos «rostos heliotrópicos» como neste, a cabeça identifica-se com a flor. Flor solar, toda a matéria aurífera se concentra na cabeça (não se representa o Sol por uma cabeça radiante ?) e dessa «Fonte» (14) nasce:

« Uma estrela tremenda queima a fronte de apolo.
E a mandíbula, os pés, a invenção, a loucura, e o sono
secreto:
-Terrível, a beleza espalha sobre nós
a branca luz violenta.»

Para lá da conotação evidente de beleza, expressa no fragmento de «Fonte» e também em «Cobra» -«a bela caixa craniana» -, há a considerar na imagem da cabeça-flor uma coincidentia oppositorum. Estão nela presentes dois aspectos contraditórios, embora conjugados em harmonia por lei da própria Natureza: por um lado, a fragilidade da flor, a sua caducidade; por outro, a resistência, pois tratando-se de um órgão reprodutor, dela resulta o fruto; enfim, a flor constitui um anel na cadeia da regeneração cíclica da vida. Desta maneira, da frágil cabeça nascem palavras que permanecem para lá da morte do particular seu procriador .

A metamorfose da cabeça em flor implica a participação do sujeito na natureza, a sua dissolução na essência cósmica. Tal tipo de identificações concorda totalmente com a imagem do corpo herbertiano: paralelamente à vegetação e ao reino mineral (a pedra -pessoa), em tudo sua igual, existe a paisagem corpórea, quer na face exterior, epidérnica, quer interior. O facto de a imagem do corpo compreender a paisagem visceral constitui dos aspectos mais originais e interessantes na poesia do autor; outro espaço vai ser criado dentro das paredes do 'quarto' humano, com funcionamento análogo ao do mecanismo cósmico. A imagem do corpo compreende a topografia visceral, descrita a partir das relações estabelecidas como mundo vegetal. Assim nos aparece, por exemplo, «o arbusto de sangue» (rede sanguínea) n'«O amor em visita» (2), o «arbusto de cálcio» (estrutura óssea) na «Cobra», ou o «arbusto de fogo» em «Elegia múltipla» (1). De resto, o arbusto é frequente e representa sempre um sistema de vasos alimentadores qualquer. Rede sanguínea será também o «arbusto de fogo».

À semelhança da flor, o arbusto tem constituição simultaneamente frágil e resistente: fácil de cortar , de pequeno porte, mas dificilmente derrubado pelo vento. Não disse Pascal, referindo-se a este duplo aspecto dos juncos, que «l'homme est un roseau, le plus faible de Ia nature, mais il est un roseau pensant» ? Ora, arbusto e árvore são incarnados no poeta, transformando-o em eixo que muito visivelmente o liga à terra, embora também o vincule ao espírito. Interessa agora o vínculo à mater, por ser tão frequente nos poemas: mater-matéria, muitas vezes matéria-prima.

«O amor em visita» (2) constitui um hino à terra-mãe, a grande criadora e devoradora - o espaço onde se gera e se destrói, onde se regenera a vida. O trabalho poético não poderia ter melhor metáfora. Claro que a matéria-prima, ainda aqui, só pode estar na cabeça. Repare-se, entretanto, que sobretudo nos poemas cuja presença mais marcante é a da mãe, nunca o poeta deixa de estabelecer relações entre ela e a escrita. Tal sucede em «Fonte» (14) («Mal se levanta a cabra sobre as letras puras»), ou em «A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe -» (29) :

«As grandes letras descascadas: é novo o alfabeto.
Aviões passam no teu nome -
minha mãe, minha máquina -
mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve.»

A cabeça é espaço de convulsão, de pânico, de múltiplos conflitos dramáticos. Projectá-la no firmamento, homologando-a aos corpos celestes, será talvez a forma de a integrar na dinâmica harmonia do mecanismo cósmico, afastando-a desse modo da sua própria convulsão interna; forma de relacionar equilibradamente o indivíduo com o universo.

*

O globo ocular é o microcosmos, da mesma forma que a cabeça. Desde sempre o mistério do universo fascinou os homens, que tradicionalmente o têm visto sob a forma esférica - a abóbada celeste. Como os olhos são organicamente complexos e apresentam a forma esférica, passaram a simbolizar esse mesmo universo. Em «Cobra», o globo ocular será mysterium fuscinans quando reflecte o universo, e objecto fascinado quando sujeito do olhar: o que é visto e o que vê. Os olhos são elemento de completude, absorvem e devolvem a luz, são a própria paisagem neles reflectida. Nada mais belo do que ver uma paisagem passar, mergulhada na superfície polida desse espelho. Mecanismo complicado e fascinante, prende-se à montagem da memória, à imagem, ao símbolo e ao real. Imagem, no sentido em que o real é imaginário, e o imaginário, real. São os olhos das casas - a criança :

«Oh crianças de negros rostos vivos,
os candeeiros.
No cúmulo dos dias, nuvens de mármore sobem
dos vulcões dos parques. Há crianças paradas nas cavidades
- os olhos das casas.»

Tal como as serpentes nos óvulos, as crianças são focos de energia concentrada, concentradora de energias exteriores.

O globo ocular é o lugar de fusão da dualidade, aliás falsa, luz e treva. Será alternadamente sujeito e objecto da fascinação exercida por tal dualidade. Também aqui poderíamos estabelecer o arquétipo situacional do perseguidor perseguido, sob a variante do olhador olhado. Na sua qualidade de centro hipnótico, torna-se homólogo da serpente, o que nos poderia levar - como de resto já levou - para o poder petrificador do olhar: "Vi a serpente concentrada como um olho de cobalto".

Entre as várias aberturas corporais, nos olhos recai particular privilégio: diferentemente do ânus ou da boca, não entram em contacto com matéria eventualmente corruptora, antes instauram o lugar de passagem para a imaterialidade: o alimento dos olhos é imaterial, decorre da captação psíquica de imagens reveladas pela luz. Pretendo dizer que se o pão é alimento concreto, a imagem será também alimento, mas insubstancial. Porém, se a natureza do alimento se diferencia, ambos os processos alimentares deverão ter função análoga. Por isso o alimento espiritual vai ser simbolizado pelo orgânico -

"......................A curva labareda de uma chávena
expelida dos fornos,
e entre guardanapos, da mesa à boca,
arde em seu anel de estrela metalúrgica
a colher em órbita
- a tenebrosa força terrestre da chávena."

-, e o orgânico, pelo espiritual - «Qualquer doçura lhe alimenta / os esplendores / da alucinação». Mas a carga de sentido criada pela dupla abertura no rosto torna-se muito mais complexa: como a Ouroboros, os olhos exprimem o acesso à totalidade, neste caso a totalidade do saber, segundo as suas duas modalidades: o conhecimento exo- e esotérico. O último relaciona-se naturalmente com o oculto e irrevelado, mas no domínio do oculto há a considerar em primeiro lugar a experiência do corpo interno, aquele corpo que se revela a «luva puxada pelo avesso». O organismo interno abre-se à luz dos olhos à maneiva de luva a que se voltasse o forro. Já se viu anteriormente como o desnudamento podia ir ao ponto de revelar o mecanismo dos pulmões. O que está dentro («o oxigénio a entrelaçar-se no interior das constelações da carne») é feito à imagem do que está em cima, e fora. Dentro/fora constitui dialéctica análoga, em funcionamento, a alto/baixo, tensão/distensão, horizontal/vertical, abertura/clausura, ocultação/revelação, etc.. Isto significa que, sendo antagónicos, os elementos do par não se hostilizam no texto, por os termos se tornarem reversíveis. Na poesia herbertiana é necessário contar sempre com a hipótese de um signo assumir o significado do seu antónimo, sem que haja por isso irrupção de ironia. Não que a ironia não exista, simplesmente não acontece a sua presença no caso referido, cuja natureza nada tem de irónico. O poeta não violenta a natureza do dicionário, nem ironiza, será antes o dicionário a violentar a natureza. Por exemplo, o mineral pertence ao mundo das coisas inertes e inanimadas segundo a ciência estatuída. Na poesia de Herberto Helder, precisamente, toda a pedra se caracteriza por ter vida orgânica e animal; a pedra representa o corpo com muita frequência.

A complexidade do órgão visual, em «Cobra», vem da visão singular: por haver predilecção pelo singular de olhos, e por explicitamente se referir que tal singular não corresponde a um de dois, nem à expressão metonímica, mas a um terceiro :

«- Um bicho em lágrimas, a casa atravessada pelas correntes
da paisagem, ou crianças
auríferas
direitas nos recantos dos quartos, com um olho radial,
um espinho de mármore implantado
na testa sumptuosa.»

Por conseguinte, trata-se de visão singular, de facto. Corresponde ao grau máximo de assunção do conhecimento e de abertura do campo de consciência. Note-se, contudo, não ser o adulto quem detém o poder da terceira visão, mas a criança recuperada e habitante do adulto: «E há uma criança perpétua, por dentro, quando se vive em recintos / cheios de ar alumiado». O facto de ser a criança e não o adulto quem possui o dom da consciência iluminante e iluminada é tão singular como a visão. O poeta não recupera estruturas míticas por razões acessórias ao poema, cria as suas próprias estruturas míticas, ou aproxima-se das tradicionais por vivência íntima do perene. Na capítulo da perenidade não podemos contar com princípio e fim, passado ou futuro: tudo é simultâneo. A criança herbertiana tem características míticas profundas, tal não significando que seja um duplicado de Hermes ou de Eros meninos, consoante nos foram legados pela tradição; tal também não obsta a que ela não decorra da tentativa de manifestar os mesmos impulsos, as mesmas angústias que levaram os antigos a criar essas figuras. Não entenderemos a poesia indo ver aos livros o significado de cada palavra, entendê-Ia-emos se descobrirmos as razões básicas de cada palavra. Esclarecendo melhor: será errado explicar o sentido do elemento água, por exemplo, a partir da informação dos dicionários de símbolos ou qualquer outra bibliografia afim. Isto porque a água, sendo expressa nessa bibliografia como elemento passivo e feminino por excelência, só por excepção assume características passivas na obra do autor. Na maior parte dos casos todos os objectos líquidos são masculinos, aí incluindo a água. Apenas dois exemplos: «Sobre os cotovelos a água olha o dia» (32) : a água transforma-se em corpo humano, activo, porquanto sujeito do olhar. Em «Da noite / chegam paisagens de água / que batem / em suas grutas tremendamente claras» ( 46) nota-se que o masculino -água - se opõe agressivamente ao passivo - as grutas. Porém, a masculinização da água é flagrante quando verificamos que é quase sempre salgada.

Como se tem vindo a apontar, todas as palavras podem equivaler-se, os seus significados têm movimentação errática (31) .Tal poderia deixar entender a impossibilidade de decifração dos textos por inexistência de linhas seguras de significação. O trabalho presente nega-o, sem dúvida. Acontece apenas que a lógica dos textos é profundamente diferente da do raciocínio habitual; os textos fundam-se na verdade poética, a verdade do desejo e do imaginário.

Falava-se de terceira visão. A ela irá juntar-se a cegueira, forma, ainda, de ver o não imediatamente visível. A cegueira implica o desvio do olhar, movendo-se do exterior para o interior. Não aparece em «Cobra» pela primeira vez, já noutros textos era referida na sua qualidade de clarividência específica do poeta:

«- Anos e anos de viagem sideral com os pés
iracundamente
azuis. Sou eu,
como um retrato de cabeça para baixo.
Conheci-me cantador em estado
de amante. Tive
o desviado ofício de canteiro.
Fiz uma catedral. Morri
acocorado. Eu era um amante
com ofício de poeta cego. Um dia
transformei-me na mulher que amava.» (38)

Só no último dos lugares o poeta poderia construir a catedral, construção altamente evocadora na dimensão esotérica de conhecimento em que temos vindo a analisar o texto. Notar-se-á sem dúvida a androginia expressa no último verso, prendendo-se ao aspecto (auto)devorador do poemacto (6). Importa entretanto ver o ofício cantante desempenhado pelo poeta cego.

Outros centros vitais no corpo podem funcionar à semelhança dos órgãos de visão, do mesmo modo que o corpo sonoro pode ser produzido por órgãos diferentes da boca. Entre eles, o tradicional centro simbólico do microcosmos humano, o umbigo. Omphalos, centro espiritual do mundo, liga-se umbilicalmente à criança («E as crianças estelares pulsam com o oxigénio / no extremo dos cordões maternos») enquanto fulcro de condensação primordial de forças, e à pedra, enquanto eixo a partir do qual se demarcam os limites do espaço sagrado por oposição ao profano: «Os olhos que se tornam secretos/ -pedra queimada no centro / da terra».

O olho, por ser pedra e Omphalos, funciona verticalmente como centro do mundo. Por isso a criança é central, é ela a detentora dos poderes visionários. Omphalos marca o lugar de mediação e de comunicação, daí a referência ao segredo. Por ser lugar de passagem para a luz, corresponde a um centro iniciático: o discípulo será confrontado com a revelação do saber hermético (entendamos que o esoterismo herbertiano assenta sobretudo no conhecimento do corpo, do seu mecanismo, do modo como se insere no corpo cósmico, e qual o mecanismo do corpo cósmico; o processo de atingir esse grau de saber é a poesia), do mesmo modo que, ao nascer, a criança se confronta com a luz. Saber corresponde sempre ao nascimento. Mas algo se mata, e por esse motivo a morte iniciática precede o momento da revelação da vida. Por outro lado, o conhecimento implica a solidão, por se revelar questão estritamente indivi- dual. A personagem c'entral da obra do autor define-se pela categoria de 'herói solitário'.

No caso do umbigo, o conhecimento é assumido não pelo poder de ver, mas pelo de não ver: a cegueira iluminada, típica dos clarividentes e dos aedos. A poesia do autor esclarece determinadas tradições ou projecções imaginárias: os olhos cegam para a luz, porque todo o corpo se vai concentrar na contemplação da Luz. Porém, diferentemente de complexos tradicionais conhecidos, a Luz não se situa acima do humano, sim dentro do humano; mais propriamente, a Luz tem origem nos órgãos internos do corpo. A cegueira corresponde, por esta razão, à visão interna e singular atrás mencionada: «O umbigo brilha, cego»: justamente, ao deixar coar a luz, também fica ofuscado por ela.

A cegueira, decorrente de dom sagrado, será a marca imposta ao iniciado, diferenciando-o dos outros; por isso pode ser aproximada da doença, particularmente daquela que isola da comunidade o contaminado. Falamos de novo do herói solitário, enfim, se quisermos, de Prometeu. Ora, em «Cobra» há uma expressão - «crepitando com a lepra» - que conjuga a doença com a luz; note-se a espécie de doença, uma das que tradicionalmente foram mais isoladas do grupo social, e a natureza da luz - o fogo, emblema de Prometeu.

Em «Os Passos em volta» (9) , no conto «Doenças de pele», tudo gira em torno do acesso ao saber, sendo a mancha na pele a marca física que no plano simbólico representa a passagem de um estádio de conhecimento para outro diferente. No conto, só muda o modo de ver e sentir: da primeira para a segunda parte (entre ambas aparece o sonho - um 'vazio' separador: não que o sonho esteja desprovido de significado, mas por a matéria onírica se desenvolver e explicitar nas duas partes do conto) o cenário mantém-se mas, dado que o narrador muda - como se fosse outro, sendo no entanto a mesma pessoa narrativa -, a leitura do mundo também vai mudar. Isto significa ser o grau ou modalidade de saber que faz com que um objecto passe a funcionar como signo ou, sendo já signo, se abra para a irradiação de maior ou menor número de sentidos. O pormenor tem bastante importância, pois determina que a leitura da natureza seja equivalente à leitura do poema. Em Herberto Helder tudo se entende como comunicação, desde as variações atmosféricas até ao movimento e posição das estrelas. O poeta não estabelece a menor distinção de valor nas relações de linguagem (e outras relações, assim sucedendo com a afectiva) que tem com pessoas, plantas, animais, minerais ou mesmo máquinas: tudo são objectos falantes, objectos com os quais o poeta entra em contacto imediato. Por conseguinte, a natureza vai ter o seu estatuto de mudez alterado, tal como se afirmava em «Memória, montagem» : «a natureza, outorgada às nossas violações».

O universo não se apreende como (a)parece, mas em função da particular visão transfiguradora que o poeta dele tem. Herberto Helder não copia a natureza, fixa-lhe fotograficamente os ritmos internos com a Kodak (47) transgressora, a qual vai provocar no leitor diferente visão, não da paisagem poética, mas da própria paisagem reflectida : depois de ler e ver algumas paisagens filtradas pelo olhar do artista (as «colinas de aço nas paisagens», os girassóis de Van Gogh), o leitor já não pode ver como antes as instalações industriais nos campos, supondo, ou as plantações de girassol. Ler e interpretar - e interpretar implica transgressão e violação - significa desvendar os segredos da caixa de Pandora, ver o que vive dentro de -: daí que a imagem herbertiana do corpo seja sobretudo interior, evidenciando a curiosidade da infância (da qual o poeta está muito próximo) relativamente ao funcionamento interno dos objectos e aos objectos que pode haver dentro dos objectos: abrir para ver o que está lá dentro não caracteriza só o desejo da criança, é também o fundamento da inquirição poética. Quando o autor mostra as imagens reproduzidas e abismadas entre dois espelhos, quando afirma ser a metáfora metáfora de metáfora, não faz mais do que aprofundar o olhar pelo interior do que está no interior do interior dos objectos. A metáfora exprime esse tipo particular de espectarismo em profundidade, é a expressão da natureza mais funda da linguagem poética. Metaforizar significa ver o que está dentro.

Falava de paisagem, e será bom observar que a paisagem herbertiana se define em grande medida como paisagem corporal ; quando a paisagem descrita não corresponde à topografia do corpo, há grande probabilidade de tratar-se de descrever o corpo orgânico da paisagem. Ou seja, as relações entre o poeta e aquilo a que usualmente chamamos a Natureza são tão imediatas como as estabelecidas com os órgãos: vísceras, mãos, pénis, cabeça ou garganta; o corpo entende-se feito à imagem e semelhança do reino vegetal e mineral, a natureza entende-se feita à semelhança da anatomia animal. O corpo é paisagem, a paisagem é corpo: ambos se ligam irremediavelmente no destino comum: a morte e a primavera.

Quando em «Cobra» se diz: «Às vezes não sei ler com a boca / toda luzindo», trata-se de exprimir a dificuldade de ler a frio o deslumbramento da paisagem astrológica (de beleza ofuscante, de facto, como de resto todo o poema) antes mencionada, e que actua encantatoriamente sobre o poeta, através do órgão do canto, a boca, sobretudo a garganta:

«Os lençóis brilham como se eu tivesse tomado veneno.
Passo por jardins zodiacais, entre
flores cerâmicas e rostos zoológicos
que fosforescem. Lavra-me uma doença fixa.»

O firmamento antropomorfiza-se, segundo a cosmovisão primitiva, e o poeta deixa de ver estrelas para ver a rede brilhante de figuras de animais fabulosos, corpos humanos, em suma: as figuras do Zodíaco. Observe-se a fosforescência dos rostos astrológicos. Não se representa por consequência o firmamento, mas aquilo que o firmamento representa (a metáfora é metáfora de metáfora). E só na medida em que o firmamento passa a ser representação (não talvez do «continente submarino», mas do desejo lícito e urgente de que ele exista), é possível descobrir um caminho entre o labirinto dos seus sinais luminosos.

A paisagem zodiacal funciona como lugar edénico; é motivada pela doença, e esta pelo envenenamento, a ingestão daquele alimento que proporciona a loucura. As constelações são transportadas para a cama, e o seu brilho confunde-se com o do corpo, alagando de luz a brancura dos lençóis.

Em «Cobra» encontramos a marca do saber num paradigma inteiro de doenças. Mas outros nomes aparecem a mais especificamente designar o fogo do saber poético: febre, lepra, tétano, peste bubónica e cancro. Correspondem a sucessivos graus de elaboração no percurso (a diferentes alucinações poéticas) , relacionadas com a experiência do corpo na idade, e partindo já da infância: «Que a infância é estranha, é uma doença imóvel. / Tem um íman no meio». Na estrofe antes citada, logo a seguir aos versos transcritos, a homologação de doença e idade revela-se claramente: «Todos os dias faço uma idade / bubónica».

Aproveitando a imagem da infância expressa pela magnética «doença imóvel» para terminar esta parte, direi que a fixidez da criança remete para o poder hipnótico e encantatório da serpente: atrai para harmonizar os contrários e resolver os conflitos. Aqui, particularmente, o conflito do homem contra o tempo degradado da história, e sua expressão em eterna regeneração, no continuum espaço-tempo. Como a pedra filosofal, a cobra representa o acesso à gnose, à capacidade de regeneração continua. A equivalência entre cobra e pedra, com seu poder transmutador, e possibilidade de atingir o tempo anterior totalmente ucrónico através da actividade onírica, aparece quase no início do poema. Cito integralmente a estrofe, pois não deixa de estabelecer relações entre a violação da paisagem através do sonho e o acto de escrever :

«Fulgura o oxigénio na sua caixa de vidro, e a cerveja gelada
como uma estrela num copo. Não
escrevo para ninguém, quando o sangue
é arrancado pela
lua, às portas, o ar sibilante cheio de paisagens.
As víboras sonham no ninho,
turquesas, pedras, mas eu estou
com um braço de ouro sobre a cama.»

Cobra é o poema: «A minha arte é venenosa, quieta / e aterrada». O poema é o poeta, a arte aterrada homologada ao sentir humano, o corpo em linguagem, ou a "biografia do corpo". Para fechar o círculo, o poeta é a cobra:

«Todo o corpo é um espelho torrencial com as fibras
dentro das grutas. Cobra
que acorda no fundo
de si mesma»

Finalmente, dir-se-ia que toda a alquimia é poética. Se a alquimia poética se consuma, de facto, e como um arrebatamento, insisto, outro tipo de alquimia se processa sem chegar nunca à consumação. No último tipo, a poesia será o instrumento de saber. Mas porque o saber não se esgota, a fruição é efémera; e, porque muito menos se esgota o desejo de mais saber, a viagem prossegue em busca do seu Graal. Chamei-lhe o Texto. Em «Cobra» o seu nome é Deus. Entenda-se que ao chegar à denominação tudo é metáfora de metáfora. No percurso da escrita surge sempre o momento do significado sem significante: a vertigem do desejo - o indizível, o inominável.

 




 




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