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JOÃO RASTEIRO:..:::

Cinco dedos na polpa da terra

              Ao José Craveirinha

I
Há quem procure na respiração da terra
o movimento inteiro do corpo inicial
o mundo completo sob uma nyeleti
onde o murmúrio que transborda
se estende nas águas com cinco dedos
apontados à seiva que semeia o espanto
apenas algumas palavras como fábulas
porque xicuembo amadurece no fogo preto
em busca da sua própria boca de korbu
do real do corpo à melancolia da terra.

II
Não é possível arrumar os mortos
no espaço do eterno tremor da água
onde a língua em que me mastigo
pronuncia um corpo único imaginário
tentando lamber as feridas do madala
uma golfada epifânica na garganta
porque a terra nos suga violentamente
numa cartografia limária de sonhos
a ferida reflectida nos olhos da árvore
porque as dores leves falam e as fortes calam-se.

III
O rosto reinscrevendo o corpo sob o sol
onde a pele se alimenta e dilata xonguile
bebendo no reflexo aquecido do real maduro
o passo lento e extasiado como os frutos
que a candengue planta no ventre do tempo
a oração frágil do poeta sempre efémero
como o fogo que o eco bebe no muxima
ou o véu que destapa o rosto de mil imagens
o fluxo que se desenreda na paixão
e a flutch púrpura tecida à medida do homem.


IV
Nos tendões da fêmea de um hálito multicor
o ngoma no tecido da luz abrindo a névoa densa
a dança dos dedos na polpa secreta da terra
enquanto uma única constelação tece a voz e alfabeto
o mesmo suspiro nas mãos entrelaçadas
porque o desejo é sublimado no acto de sonhar
e na breve distância sobre as águas o quimbanda
comunicando o cio no epicentro dos frutos cegos
águas antigas vagas sem princípio sem fim
a primavera tocando no mais fundo da loucura.

V
Entre os aromas do êxtase as palavras possíveis
cobrindo a terra mãe cinco vezes de dedus números
todos os pecados hoje plantados no sopro das maré
numa boca aberta em gargantas lascadas
o despojo da carne na rouquidão de vozes universais
as pegadas do cântico que o ritual celebra
ao morder a raiva da polpa das palavras
porque o sangue é sempre a diferença nascente
os gomos da manga na invenção do outro codê
juntos precipitando o voo do pássaro incendiado.

VI
Debaixo das línguas a benignidade do mar
que se alimenta na calema das vozes entrecortadas
com um fugor de orvalhos negros sob gárgulas
clamando em sua carne o dizeju do ventre
que ganha a leveza das sílabas num só corpo
silêncios na distância já não perturbadoras de sol
um olhar inteiramente aberto à lasca do fogo
e nas pálpebras surgem caudalosos rios de sementes
rumo a um leito sulcado de muzumbus amaciados
deixando a agonia do tempo na luz dos velhos recantos.

VII
Em cada corpo há uma identidade de insuspeita frescura
margem do Kamba no movimento novo da respiração
que nuvens levam o incenso e os salmos do templo
o n`bô da ave doirada embriagada em seu louco voo
e uma só voz lembra o estrondo de muitas águas
como animais delicados estendendo suas raízes
no espaço liberto por um arco de bronze flexível
espalhando as suas teias de cinco conchas
sobre o seco e tchonzo abismo no dorso do chipala
uma ilha aberta à língua contida em sua forma.


Há um corpo que invade outro corpo precário
e este corpo estará noutro no seu próprio tempo
cinco dedos de oiro na saliva etérea dos sonhos
terra e água branca preto caos o universo.

João Rasteiro, 2004

Com este poema, João Rasteiro obteve o 1º Prémio no Concurso de Poesia e Conto

"CINCO POVOS CINCO NAÇÕES"

promovido pelo
"Congresso Internacional de Literaturas Africanas" em 2003

Glossário

-CALEMA: tempestade; S.Tomé e Príncipe, Angola.
-CANDENGUE: criança; Angola.
-CHIPALA: rosto; Angola
-CODÊ: filho mais novo; Guiné, Cabo Verde, S.Tomé e Príncipe, Angola
-DEDU: dedos; Cabo Verde
-DIZEJU: desejo; Cabo Verde
-FLUTCH: mortalha; Cabo Verde
-LIMÁRIA: animal; Guiné-Bissau
-KAMBA: amigo; Angola
-KORBU: corvo; Cabo Verde 
-MADALA: velho; Moçambique
-MUZUMBUS: lábios; Angola
-MUXIMA: coração; Angola
-N`BÔ: adeus; Guiné-Bissau
-NGOMA: tambor; Angola
-NYELETI: estrela; Moçambique
-QUIMBANDA: adivinho; Angola
-TCHONZO: magro, raquítico; Moçambique
-XICUEMBO: Deus; Moçambique
-XONGUILE: bonita; Angola  

 

JOÃO RASTEIRO (Coimbra - Portugal, 1965). Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos, pela Universidade de Coimbra. Poeta e ensaísta, traduziu para o português vários poemas de Harold Alvarado Tenorio, Miro Villar e Juan Carlos Garcia Hoyuelos. É sócio da Associação Portuguesa de Escritores, membro do Conselho Editorial da Revista Oficina de Poesia e do Conselho Editorial da revista brasileira Confraria do Vento. Tem poemas publicados em várias revistas e antologias em Portugal, Brasil, Colômbia, Chile, Itália e Espanha e possui poemas traduzidos para o Espanhol, Italiano, Inglês, Francês e Finlandês. Publicou os livros de poesia, A Respiração das Vértebras (Sagesse, 2001), No Centro do Arco (Palimage, 2003), Os Cílios Maternos (Palimage, 2005), O Búzio de Istambul (Palimage, 2008) e Pedro e Inês ou As madrugadas esculpidas (Apenas Livros, 2009). Obteve vários prémios, nomeadamente a Segnalazione di Merito no Concurso Internacionale de Poesia: Publio Virgilio Marone(Itália-2003), o 1º prémio no Concurso de Poesia e Conto: Cinco Povos Cinco Nações, 2004 e o 1º prémio – na categoria de autores estrangeiros - do Premio Poesia, Prosa e Arti Figurative-Il Convívio (Verzella, Itália, 2004). Em 2005 integrou a antologia: “Cânticos da Fronteira/Cánticos de la Frontera (Trilce Ediciones – Salamanca). Em 2007 integrou a antología Transnatural, um projecto multidisciplinar sobre o Jardim Botánico de Coimbra. Em 2007 foi um dos poetas participantes nos VI Encontros Internacionais de Poetas de Coimbra, F.L.U.C. - Universidade de Coimbra. Em 2008 integrou a antologia e exposição internacional de surrealismo O Reverso do Olhar. Em 2009 integrou a antologia: “Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua – antropologia de uma poética”, organizada pelo poeta brasileiro Wilmar Silva e que engloba poéticas de Portugal, Brasil, Cabo Verde e Guiné-Bissau. Em 2009 organizou um número especial (nº 44) da revista Colombiana Arquitrave sobre a poesia portuguesa mais recente: A Poesia Portuguesa hoje. Prepara-se para publicar um novo livro que se intitulará: Diacrítico. Vive e trabalha em Coimbra, no âmbito cultural da C.M.C. Mantém em permanente irrupção o sísmico fulgor do blogue: http://www.nocentrodoarco.blogspot.com/  E-mail: jjrasteiro@sapo.pt