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LUIZ VAZ DE CAMÕES
AQUELE MOVER D'OLHOS

 

Aquele mover d'olhos excelente,

aquele vivo espírito inflamado

do cristalino rosto transparente;

aquele gesto imoto e repousado,

que estando n'alma propriamente escrito,

não pode ser em verso trasladado;

aquele parecer que é infinito

para se compreender de engenho humano,

o qual ofendo em quanto tenho dito,

me inflama o coração dum doce engano,

m'enleva e engrandece a fantasia,

que não vi maior glória que meu dano.

Oh bem-aventurado seja o dia

em que tomei tão doce pensamento,

que de todos os outros me desvia!

E bem-aventurado o sofrimento

que soube ser capaz de tanta pena,

vendo que o foi da causa o entendimento!

Faça-me, quem me mata, o mel que ordena;

trate-me com enganos, desamores;

que então me salva, quando me condena.

E se de tão suaves disfavores

penando vive üa alma consumida,

oh! que doce penar! que doces dores!

E se üa condição endurecida

também me nega a morte por meu dano,

oh! que doce morrer! que doce vida!

E se me mostra um gesto brando e humano,

como que de meu mal culpada se acha,

oh! que doce mentir! que doce engano!

E se em querer-lhe tanto ponho tacha,

mostrando refrear o pensamento,

oh! que doce fingir! que doce cacha!

Assi que ponho já no sofrimento

a parte principal de minha glória,

tomando por milhor todo o tormento.

Se sinto tanto bem só na memória

de vos ver, linda Dama, vencedora,

que quero eu mais que ser vossa a vitória?

Se tanto vossa vista mais namora

quanto eu sou menos para merecer-vos,

que quero eu mais que ter-vos por Senhora ?

Se procede este bem de conhecer-vos

e consiste o vencerem ser vencido,

que quero eu mais, Senhora, que querer-vos?

Se em meu proveito faz qualquer partido,

só; na vista duns olhos tão serenos,

que quero eu mais ganhar que ser perdido?

Se meus baixos espritos de pequenos,

ainda não merecem seu tormento,

que quero eu mais, que o mais não seja menos?

A causa, enfi, m'esforça o sofrimento,

porque, apesar do mal, que me resiste,

de todos os trabalhos me contento;

que a razão faz a pena alegre ou triste.

 

 
 
>>>>>>>>>>>>>>>>>>>LUIZ VAZ DE CAMÕES