Revista TriploV . ns . nº 64. abril-maio . 2017 .
Homenagem do Triplov aos Capitães de Abril


António Cândido
Valeriano Cabrita Franco (Lisboa, 13 de junho de 1956). É um ensaísta, romancista, poeta e professor universitário. Licenciado em Filologia Românica (1981) e Mestre em Literaturas Brasileira e Africanas de Expressão Portuguesa (1988) pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutorou-se com a tese A literatura de Teixeira de Pascoaes pela Universidade de Évora (1997). É Professor Auxiliar, com Agregação em Cultura Portuguesa (2006), no Departamento de Linguística e Literaturas da referida Universidade.  Investigador do Centro de Estudos em Letras da Universidade de Évora, as suas áreas de interesse científico são a literatura, a antropologia e a história portuguesas. Iniciou-se na poesia com o título Murmúrios do mar de Peniche (1977). Tem dezenas de títulos publicados. É diretor de A Ideia, revista em que tem publicado vultuoso material relativo ao Surrealismo.
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

Revisitação do Abjeccionismo

Texto (e tema) em construção

 

O abjeccionismo, mau grado a singularidade da sua situação no século XX português, visto não depender de qualquer importação, decalque ou tradução, ao menos directa, o que não aconteceu a nenhum outro ismo, salvo o primeiro deles, que é só excepção, o abjeccionismo parece estar hoje semi-esquecido, fora de qualquer foco público de atenção.

Confundir porém obscuridade ou até olvido com envelhecimento obsoleto seria erro grave que a deusa do devir não nos perdoaria. O abjeccionismo vive hoje num purgatório escondido, mas não no reino dos mortos, onde a vida se apaga sem remédio. Dir-se-ia que o presente ainda necessita de ajustar contas com o passado – ou este não cessa de tirar desforço do que tanto o incomodou. O modo como o abjeccionismo subverteu sem excepção o que o rodeava foi demasiado cru e teve consequências demasiado graves e extensas para não ser ainda hoje condenado a cárcere, já que não pode, no domínio do espírito, sofrer pena capital.

Fora das nossas vistas, esquecido numa margem obscurecida do tempo, fechado numa Bastilha inexpugnável, exilado numa ilha distante a mando dos poderosos, o abjeccionismo continua a pagar o preço da sua larga e operativa originalidade, não apenas estética, e da sua irreverência para com as formas de arte e de pensamento do seu tempo – e tão opostas e diversificadas elas pareciam afinal ser.

Cabe-nos a nós identificar a situação e abreviar esta pena injusta. Impõe-se abrir um caminho neste território desconhecido, traçar o mapa proibido e aceder à fala com este exilado. O silenciamento a que o abjeccionismo tem estado sujeito não tem razão de ser; é abuso intolerável. Seja ele uma extensão do surrealismo – e houve quem lhe chamasse metástase portuguesa do surrealismo – seja um momento absoluto e diferenciado, o que dificilmente se aceita, é sempre nele que reside, sobretudo quando apreciado a partir das suas privilegiadas ligações ao surrealismo, indiscutíveis estas, um dos nós mais vivos e exaltantes da criação portuguesa da segunda metade do século XX.

Deixam-se de seguida alguns dados que podem contribuir para uma ideia mais segura do que foi a história do seu nascimento e do seu desenvolvimento e ainda algumas reflexões – a paixão historiográfica não nos pode fazer esquecer as restantes tarefas do pensar – que visam esclarecer o seu sentido e o seu não sentido.

 

O NASCIMENTO DO ABJECCIONISMO

Em Agosto de 1948, Mário Cesariny, logo seguido por António Domingues, entra em ruptura com o Grupo Surrealista de Lisboa, que se formara no final do ano anterior. Cesariny junta-se então a António Maria Lisboa, a Pedro Oom, a Cruzeiro Seixas e alguns mais, projectando o nascimento do grupo “Os Surrealistas”. É no quadro das acções deste grupo que surge o abjeccionismo.

Em Dezembro de 1949, A. Maria Lisboa redige parte de Erro Próprio, conferência-manifesto. Os três parágrafos finais do texto, que reflectem o convívio próximo com Pedro Oom, são a matriz do abjeccionismo.

Diz Lisboa: Traz o Poeta em si os passos e as atitudes dum Mundo Íntimo e Rico, mas depressa a vida oficial e legal, a vida de toda a gente, da massa e seus aproveitadores, lhe suprimem o direito à existência, viver estranho e isolado num mundo que pretendia habitado e harmonioso é viver suicidado, viver morto-vivo num mundo de nado morto. // Especado perante as cidades um novo dilema se abre: como comunicar numa Babilónia que se destrói ao conquistar a ordem e que para o Poeta não tem interesse a sua subsistência? // Pergunta que cada um resolverá como entender e na altura própria.

Numa carta de Abril de 1950 a Mário Cesariny, A. Maria Lisboa põe por escrito pela primeira vez a palavra “abjeccionismo”: Serei ou não surrealista de hoje para o futuro com a minha Metaciência e o Nosso Abjeccionismo – eu não me pronunciarei sobre tal.

Que entende A. Maria Lisboa por “abjeccionismo”? A resposta está nos parágrafos finais de Erro Próprio, contemporâneos desta missiva. O abjecccionismo é para o seu criador a “vida oficial e legal, a vida de toda a gente”, quer dizer, o avesso do mundo “íntimo e rico” que o poeta traz dentro de si, mundo próprio da demanda surrealista. O abjeccionismo é pois um “reverso”, um reverso do surrealismo e não um exclusivo, como sucede com a “sordidez” de Céline, esta sem saída e sem luz de contraponto.

Em 1953, A. Maria Lisboa, já fatalmente doente, depois de ter publicado no ano anterior em edição de autor Erro Próprio e Ossóptico, dá a lume na chancela de Luiz Pacheco, Contraponto, Isso Ontem Único, onde, no texto “Alguns Personagens”, regressa a ideia de abjecção.

Assim: É no poeta visível a inépcia, que é abjecção, de si perante e numa vida a que foi chegado. O mundo social, o mundo como tal organizado, é o obstáculo que o leva nos desencontros sucessivos com a felicidade e na luta contra ele à mais pequena percepção do mundo autêntico – longínquo aqui agora e inumano! // Mas precisemos: essa inépcia não é filha da falta de possibilidades em adquirir as capacidades necessárias para seguir viagem, mais que resultado de insuficiências, consequência da relação em que o poeta se encontra com esse outro mundo que sendo também do homem não é o do homem.

A abjecção é neste importante trecho a inaptidão social do poeta. A sociedade, com as exigências mercantis que arvora e as regras de conduta que impõe, condicionadas estas pelas outras, constitui um obstáculo à viagem do poeta ao mundo autêntico, ao mundo poético e surreal, fora este do domínio social. O homem que se entrega à moral social fica assim, em virtude dos valores que aí o manietam, coarctado do mundo autêntico da poesia. A sociedade é pois um obstáculo sério, mas não absoluto, já que o poeta pode objectar à moral social, vivendo à margem e entregando-se a uma demanda paralela e sem pontes de contacto com ela, sociedade. A abjecção social – ausência de emprego, de riqueza, de prestígio, de sucesso – é o preço que o poeta tem de pagar em termos sociais pela aventura que empreende. Em sociedade mercantil, onde a moral social impõe valores suicidários do “mundo autêntico”, o poeta não pode visar o sucesso mas apenas a solidão – isso que A. Maria Lisboa chama a “abjecção, de si perante”.

Depois da partida do poeta de Ossóptico, em 1953, Luiz Pacheco edita dele um texto que lhe teria sido passado pelo próprio pouco antes de falecer, Aviso a Tempo por Causa do Tempo (1956), em folha única. Constituído por seis parágrafos e uma conclusão, o texto tem uma feição de manifesto colectivo – usa sempre a primeira pessoa do plural – e na origem talvez se destinasse a ser assinado por vários nomes; está datado de Julho de 1953 mas pode ter sido composto antes, entre 1950 e 1951, época em que o grupo “Os Surrealistas” está ainda activo. É decerto a mais libertária das declarações surrealistas portuguesas (afastamento dos partidos, do Estado, da polícia, da sociedade e da família).

Tem interesse para o estudo do abjeccionismo, pois de novo volta a tocar a questão. O ponto 4 diz: “que sendo individualmente e portanto abjeccionalmente desligados das normas convencionais temos o máximo regozijo em ver essas mesmas normas nos componentes da sociedade. Abstraindo da ironia que se lhe segue, “abjeccionalmente”, palavra que importa, surge aqui como o modo do poeta recusar a “vida oficial e legal” – na expressão do Aviso, as “normas convencionais”.

Estamos de novo ante a experiência individual e única dum inverso, a do poeta, na procura ou percepção do mundo autêntico, por contraste com a experiência das convenções sociais, a de “toda a gente”. O modo como poeta se desliga da sociedade, enquanto obstáculo, para se poder consagrar à viagem interior, à demanda do “mundo autêntico”, é “abjeccional”, não por ser individual mas por mostrar “inépcia” para com os valores sociais dominantes (concorrência, mérito, disputa, sucesso, vitória, prestígio). O lugar do poeta abjeccionista é pois na margem, numa não participação absoluta, numa objecção permanente aos valores da sociedade.

No rescaldo do horror da primeira metade da década de 40 do século XX, o abjeccionismo português nasce como uma teoria altamente elaborada da objecção de consciência. É por um lado na voz dum grupo de jovens de vinte anos um uivo fortíssimo de recusa, o NÃO mais categórico e maiúsculo que até hoje entre nós se gritou, e por outro é o grito eufórico, a expressão alta de alegria de quem tem ante si a pesquisa, o encontro e o aprofundamento do mundo autêntico.

Os três parágrafos finais de Erro Próprio, de 1950, a carta a Cesariny, também de 1950, em que se escreve pela primeira vez a palavra “abjeccionismo”, o texto “Alguns Personagens” de Isso Ontem Único e o ponto 4 de Aviso a Tempo por Causa do Tempo, em que se adverbializa a experiência da abjecção, passando ela a ser tão-só uma via de desprendimento, ou de não compromisso na selva social, podem ser tomados como momentos fundadores do abjeccionismo. Estes textos capitais são da autoria de António Maria Lisboa, se bem que resultem do convívio com pelo menos Pedro Oom e Mário Cesariny.

Em 1955 começam as reuniões nos cafés Gelo e Royal, onde se reúnem os sobreviventes da geração que aderiu ao surrealismo em 1947, que fora entretanto dispersa pela pressão da realidade, e uma nova geração, nascida já, com excepção de Virgílio Martinho, na década de 30. É no seio desse novo cenáculo que o abjeccionismo viverá renovados desenvolvimentos, com uma síntese previsível já na teorização inicial de Lisboa, o surreal-abjeccionismo, e com a reanimação dum neologismo, o neo-abjeccionismo, cujo criador e protagonista, quase exclusivo, será um dos elementos da velha guarda de 45, Luiz Pacheco, ligado por estreitos laços de parentela aos “Surrealistas” e em especial a Lisboa e a Cesariny.

 

A RECRIAÇÃO NEO-ABJECCIONISTA

Em Janeiro de 1959 Luiz Pacheco é processado pela mãe de Maria Eugénia Soares Barbosa, menor de 14 anos, por manter com esta uma relação sexual desde há dois anos. Fica sujeito a mandato de captura se não pagar fiança de três mil escudos. Luiz Pacheco, ainda funcionário da Inspecção Geral de Espectáculos, foge para Itália, onde deambula cerca de duas semanas com licença sem vencimento; regressa a Portugal, pede rescisão de contrato, paga uma fiança provisória que leva à suspensão do mandato de captura e abandona a família, passando a dormir em quartos de aluguer (e às vezes em escadas). Nasce o primeiro filho de Maria do Carmo Matias, de 17 anos, antiga empregada da sua mulher Maria Helena Conceição Alves, que por sua vez era uma antiga empregada de sua mãe e com quem fora obrigado a casar no limoeiro em 1947.

Por essa altura edita na Contraponto Diálogo entre um padre e um moribundo de Sade. Assume o epíteto “libertino” e concebe, ele que editara até aí apenas meia dúzia de textos jornalísticos, sem grande alcance, ser autor duma literatura nova, a que chamará dois anos mais tarde neo-abjeccionista. Ainda no ano de 1959 cunha a expressão “picto-abjeccionismo” para a acção plástica de Cesariny – que expõe em 1959 na Galeria Divulgação do Porto. Por sua vez, Mário Cesariny, na nota introdutória a Caca, Cuspo e Ramela, edição sua (1959), diz estar a laborar com excrementos orgânicos.

Luiz Pacheco, no Outono, tem novo mandato de captura da Boa-Hora, sendo preso em Dezembro no Limoeiro. Em Janeiro de 60 é julgado e absolvido na Boa Hora pelo juiz Arelo Manso – a única prova de incriminação do réu era um beijo dado na rua em forma de cumprimento. Em Maio morre, em Bucelas, o seu pai, sem que Pacheco tenha estado presente ao funeral. Este processo de ruptura com a estabilidade profissional e familiar, que aconteceu entre 1958 e 1960, foi decisivo para Pacheco vivenciar por dentro o “abjeccionismo”, pondo em prática a rejeição da sociedade, que na teorização de A. M. Lisboa é o preço a dar pela aventura interior, o reverso necessário para o poeta ficar disponível para contactar o mundo autêntico. Sem rejeição social não há disponibilidade para partir ao encontro do mundo autêntico.

Pacheco foi assim, com M. Cesariny, que se recusou sempre a ser escravizado pelo salário (e em 1953 foi humilhado pela polícia com um processo de costumes que durou anos), e com A. Maria Lisboa, que pagou com a vida a recusa em se deixar arregimentar pela engrenagem social (a sua tuberculose foi contraída em Paris, onde viveu meses sem dinheiro para comer, a dormir em escadas), aquele que mais autoridade ganhou em termos de experiência de rejeição social. A sua objecção concreta às instituições sociais foi larguíssima – era originário de meio rico, culto e burguês (os avós eram generais do exército) – e deu lugar a um rol de experiências únicas, a célebre mitologia pachecal que ele próprio se encarregou de explorar na sua literatura, toda de natureza autobiográfica. É no quadro dessa euforia – nada menos do que a criação dum novo mito e dum novo tipo de crítica (em que a vida do autor se torna mais premente do que a obra – Pacheco chamar-lhe-á na síntese final de 71 (Notícia, 17-10-1971) crítica de identificação (diz-me quem és e como ages, dir-te-ei o que escreves) – que germina, dez anos depois da redacção e apresentação de Erro Próprio, o neo-abjeccionismo.

Em 1961 nasce o segundo filho de Pacheco e de Maria do Carmo. Em Outubro, numa viagem pelo Minho com António José Forte, Pacheco escreve O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu esplendor, relato de experiências sexuais libertinas (hetero e homossexuais, com forte presença da pedofilia e do onanismo), relato impublicável, que só verá a luz em Janeiro de 1970, numa edição clandestina (de Vítor Silva Tavares) que não foi ao circuito livreiro. Luiz Pacheco e Maria do Carmo Matias vão no Outono para Almoinha, Sesimbra, casa (Luiz Pacheco chamar-lhe-á numa carta para Natália Correia “buraco”) paga pelo editor Eduardo Salgueiro, para quem Pacheco faz trabalhos de revisão e tradução. Escreve na Almoinha a novela O Teodolito, que será apresentada como o primeiro exemplo de composição “neo-abjeccionista”.

Porquê “neo-abjeccionismo” e não “abjeccionismo”? Dez anos após os textos de Lisboa, que Pacheco conhecia bem, chegou até a editar dois deles, quis marcar a diferença, que é apenas de tempo, nunca de sentido. A abjecção e a neo-abjecção são a experiência social, sempre de rejeição, sempre de negação, daquele que se consagra ao conhecimento interior e à conquista da liberdade. Por força da experiência vital de Luiz Pacheco, e das suas sucessivas rupturas, mitologizadas de imediato, como sucede n’ O Teodolito, historieta de relação sexual dum menino burguês com uma criadita de servir acabada de chegar da província, relançamento em força do abjeccionismo junto da geração do café Gelo.

Se não existe diferença de qualidade entre o abjeccionismo e o seu novo consequente, mas apenas distância temporal, existe ao menos uma diferença de intensidade. Ao invés do que sucede com Lisboa e Cesariny, que negam para conquistarem a liberdade de afirmar, Pacheco parece concentrar-se na negação. A objecção é um fim em si mesmo; logo, a aventura interior, a demanda do surreal é muito mais tímida em Pacheco. A literatura deste é uma literatura do não; não se pode conceber para ele um livro como Ossóptico, consagrado quase em exclusivo à percepção do mundo autêntico. No neo-abjeccionismo o reverso negro da negação, a objecção às instituições sociais domina sobre a face luminosa e eufórica da afirmação.

Daí o papel que o biografismo assume no neo-abjeccionismo, quer como criação, quer como acção crítica. É porventura o único movimento impossível de abordar sem a biografia do seu criador. São os passos da vida de Pacheco que criam este “neo” e não o inverso. Luiz Pacheco foi um dos raros escritores do século XX português que teve uma biografia, que conquistou o direito a viver a vida que quis e não aquela que as circunstâncias o empurravam a viver. A maior parte dos nossos escritores adiou e adia por razões várias a sua vida, que acabam por trocar pelo dia a dia impessoal, monótono, convencional, que o meio social impõe. Ele, Pacheco, libertou-se das condicionantes sociais e assumiu uma vida só dele, construída e decidida por ele, no confronto constante com as instituições e na assumpção livre dos seus instintos sexuais. Luiz Pacheco decidiu, bem ou mal, e em geral bem, a sua própria biografia, enquanto a maior parte de nós tem a folha biográfica que a sociedade nos determina.

No início de 1962, escaramuças entre Luiz Pacheco e Mário Cesariny por causa da edição das obras de António Maria Lisboa na Guimarães Editores, que saem nessa altura. Em Maio deste ano terminam os encontros no Gelo, trocado pelo café Nacional. Luiz Pacheco e Maria do Carmo deixam na Primavera Almoinha e depois duma rápida passagem por Lisboa seguem para a terra desta, Macieira, concelho da Sertã. Cesariny lê com entusiasmo O Teodolito e decide integrá-lo na colectânea em preparação. Luiz Pacheco edita na Sertã o 3.º número dos cadernos Contraponto, quase só com colaboração surrealista (Ernesto Sampaio, António José Forte, Virgílio Martinho, Natália Correia, Manuel de Lima). No Verão Maria do Carmo deixa a Macieira e vem para Lisboa (para casa de Natália Correia). Luiz Pacheco inicia uma relação com Maria Irene, 13 anos, irmã mais nova de Maria do Carmo. Em Novembro vêm os dois para Lisboa e Pacheco vive um curto período com as duas irmãs. No final do ano, depois de fazer a dinheiro grande parte da sua biblioteca e da biblioteca que herdou do pai, foge com Maria Irene, já grávida, e com os filhos de Maria do Carmo, para Setúbal. Desaparece por incúria vária o espólio de A. Maria Lisboa que Pacheco recuperara do lixo em 53 e deixara depois de Almoinha – nesta o espólio ainda estava na sua posse – em vivenda da Parede.

 

A SÍNTESE SURREAL-ABJECCIONISTA

Mário Cesariny, no ano em que edita Caca, Cuspo e Ramela (1959), o seu conjunto mais abjeccionista, com fortíssima carga lexical na área da abjecção (jazigos, escarradores, urinóis, larápios e poetas…), planeia colectânea de colaborações surrealistas e abjeccionistas. Coincide com o momento em que Luiz Pacheco cria a designação de picto-abjeccionismo e entra em ruptura definitiva com a engrenagem social em que estava inserido. É o ano em que rescinde contrato, abandona o emprego e a família, responde por atentado ao pudor de menor e volta a ser preso no Limoeiro (estivera lá primeira vez em 1947) mas é também o ano em que Pacheco publica (pela mão de Cesariny) o seu primeiro opúsculo, Carta-sincera a José Gomes Ferreira, logo saudado por João Palma-Ferreira (Diário Popular, 7-5-1959) como o primeiro fruto dum dos críticos mais acutilantes e completos de sempre.

O surreal-abjeccionismo de M. Cesariny não se confunde porém com o neo-abjeccionismo de Pacheco. Este é uma objecção total, se bem que não exclusiva, já que pretende afirmar a fantasia do instinto sexual, enquanto o primeiro, na linha de Lisboa, é uma tentativa de encontrar a unidade, pondo em contacto o verso e o reverso do mesmo caminho.

No início do ano de 1962 surge talvez a primeira alusão pública ao surrealismo-abjeccionismo [Jornal de Letras e Artes, 17-1-1962] e à colectânea que Cesariny está a organizar. O número do jornal traz antologia surreal-abjeccionista nas páginas centrais (ainda sem Luiz Pacheco, tanto mais que nesse momento estala a polémica entre Pacheco e Cesariny por causa das obras de Lisboa editadas na Guimarães). Presentes: Helder Macedo, José Sebag, Natália Correia, Mário-Henrique Leiria, António Maria Lisboa, António José Forte, António Porto-Além, Luís Veiga Leitão, Pedro Oom e Carlos Loures. Primeiro ensaio daquilo que será a colectânea Surrealismo-Abjeccionismo, organizada por Cesariny, momento cimeiro da aglutinação dos dois movimentos, se é que se pode falar, desde o impacto teórico de Lisboa, de dois movimentos distintos e não apenas das duas vertentes da mesma realidade.

 Em Março do ano seguinte entrevista ao Jornal de Letras e Artes de Pedro Oom (6-3-1963). É um dos momentos altos da síntese surreal-abjeccionista, se bem que nele, mas de modo muito mais teórico do que em Pacheco, já que os passos de vida de Oom são muito mais limitados que os de Pacheco, o rosto negro da abjecção domine sobre o desassombro solar da realidade sublime.

Na entrevista faz-se a valiosa destrinça entre angústia e abjecção, realidades inconfundíveis, que nunca se cruzam ou se sobrepõem. Com a teorização de Oom, que desenvolve a de Lisboa, tanto mais que a deste nasceu em diálogo com ele, o abjeccionismo descarta de vez qualquer afinidade com o existencialismo, então em voga entre nós por via da literatura de Vergílio Ferreira ou da ensaística de António Quadros. Esta distinção é talvez o contributo decisivo de Oom. Afirma ele: Numa sociedade dualista, dividida entre duas grandes forças antagónicas (…), o Poeta só tem como alternativas a angústia ou a abjecção. Se escolhermos esta última atitude é porque ela nos mantém ainda uma réstia de esperança quanto ao destino do Homem.

A esperança de que fala Oom é afinal a mesma que empresta ao surrealismo a sua natureza de aventura solar. Se Oom nega relação entre angústia e abjecção, alternativas absolutamente distintas, caminhos separados e paralelos, já surrealismo e abjeccionismo parecem funcionar como os vasos comunicantes dum mesmo tubo. Diz Oom: Entre surrealismo e abjeccionismo existem muitos pontos de contacto, relações de parentesco muito próximo. No abjeccionismo, que é antes de tudo uma atitude concebida para a sobrevivência do indivíduo sem lhe coarctar a livre floração da personalidade (…), também se acredita numa Realidade Absoluta e o seu fim é o mesmo do surrealismo: a transformação dos valores básicos da sociedade dita “moderna”, dita civilizada, através da transformação moral e espiritual do indivíduo isolado (…).

É nesta entrevista que aparece formulada a pergunta: que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos? Esta pergunta, que se costuma apresentar como imagem de marca do abjeccionismo, é afinal a reelaboração do penúltimo parágrafo de Erro Próprio, também ele uma pergunta (como comunicar numa Babilónia que se destrói ao conquistar a ordem e que para o Poeta não tem interesse a sua subsistência?). A célebre consigna de Oom virá pois do final da década de 40. Tudo leva a crer que tenha sido formulada em conversas com A. Maria Lisboa sobre os parágrafos finais de Erro Próprio, pois não custa encará-la como uma variante deles. Este conjunto textual, a que se junta a carta de Lisboa a Cesariny de Abril de 50, faz prova dum abjeccionismo já então assumido em grupo.

Outro momento alto da síntese surreal-abjeccionista é a saída na mesma altura da colectânea organizada por Cesariny, Surrealismo-Abjeccionismo, que desde 1959 estava a ser pensada e montada. Apareceu finalmente em Março de 1963, na editora Minotauro, de Bruno da Ponte, um homem discreto mas interveniente, próximo do surrealismo, com subtítulo “antologia de obras em português seleccionada por Mário Cesariny de acordo com o propósito inicial” e com duas epígrafes comunicantes, uma de André Breton e outra de Pedro Oom, recolhendo 32 autores, entre pictóricos e poetas. Aparece aí pela primeira vez – a fortuna editorial ulterior será grande – a “composição neo-abjeccionista” de Luiz Pacheco, O Teodolito.

Não é irrelevante que no momento em que se dá a síntese dos dois momentos, ou a justaposição dos dois lados da peça, verso e reverso, franjas soltas do neo-realismo, como Irene Lisboa, Joaquim Namorado, Veiga Leitão ou José Leonel Rodrigues, sejam chamados a comparecer. A inapetência do poeta para os valores sociais dominantes, a isso se chama abjeccionismo, acabou aí por funcionar como a ponte possível entre o surrealismo, mais nefelibata, ocupado que estava com a tentativa de encontrar uma realidade absoluta, primordial e intocada, na posse ainda de todos os poderes originais, e o realismo chão, consagrado à denúncia da miséria em sociedade civilizada.

Lançamento do volume na Casa da Imprensa a 30 de Março, com a presença de Mário Cesariny e dalguns autores, que leram os seus textos. Luiz Pacheco, em Setúbal, não compareceu, mas enviou texto inédito, “O que é o neo-abjeccionismo”, lido por Cesariny. Ao invés do que o título possa indiciar, não é um texto teórico mas tão-só um pedido de esmola. Cumpre-se assim a visão teórica de A. Maria Lisboa: o poeta, homem livre, vive estranho e isolado (…), vive suicidado, morto-vivo num mundo de nado morto. Em Maio nasce Paulo Eduardo Pacheco, primeiro filho de Maria Irene Matias e Luiz Pacheco.

No início do ano de 64, Cesariny vai para Paris, com uma bolsa da Gulbenkian. Cruzeiro Seixas regressa a Lisboa depois dum longo exílio de 14 anos em Luanda. Em Maio Pacheco escreve Comunidade e no Outono faz um novo pedido de esmola por escrito, O Cachecol, editado em Santarém por A. José Forte. No final de Dezembro, abandona Setúbal com os filhos e Maria Irene, com destino às Caldas da Rainha. Mário Cesariny, apanhado em flagrante numa relação homossexual num cinema de Paris, é preso em Fresnes (Outubro e Novembro), cruzando-se no Natal, em Lisboa, com Luiz Pacheco, em viagem para as Caldas.

 

A REVISTA ABJECÇÃO

É o derradeiro momento alto da síntese surreal-abjeccionista. e outro ainda é a projecção, em 1965, da revista chamada Abjecção, que nunca chegou a aparecer)

1965 – Luiz Pacheco instala-se nas Caldas da Rainha. Virgílio Martinho contacta a editora Ulisseia (Vítor Silva Tavares e Edite Soeiro), que se interessa em editar Luiz Pacheco. Entrevista de João Rodrigues ao Jornal de Letras e Artes (15-9-65); afirma-se abjeccionista e define o surrealismo português como sendo um abjeccionismo adulto e apto a ganhar a vida. Em Agosto, nasce o último filho de Luiz Pacheco e de Maria Irene. Fernando Ribeiro de Mello (n.1942) surge como editor (Afrodite) com a publicação de Kamasutra. Natália Correia organiza para Ribeiro de Mello a Antologia de Poesia Erótica e Satírica e pede colaboração a L. P., que envia “Coro de Escarnho e Lamentação dos Cornudos em Volta de S. Pedro”. A colectânea, com ilustrações de Cruzeiro Seixas, surge em Novembro e é logo apreendida pela polícia. São processados Fernando Ribeiro de Mello (editor), Natália Correia (organizadora) e alguns autores, entre eles, Pacheco e Cesariny. Este último edita em Dezembro A Cidade Queimada (Ulisseia), também com ilustrações de Cruzeiro Seixas.

Nasce e desenvolve-se ao longo do ano o projecto de fundar uma nova revista, definida e decididamente abjeccionista. Chegou a ter vários títulos, o definitivo Abjecção. A ideia e o nome definitivo pertencem a Cruzeiro Seixas. Primeira alusão em início de Abril – carta de L. Pacheco para Mário Cesariny. Assim (Pacheco versus Cesariny, 1974: 125): “Recebo hoje carta-postal do Seixas a falar-me numa revista abjeccionista e em ti.” De seguida carta de Pacheco para Cruzeiro Seixas, ainda de Abril. Assim (1974:133-5): “Uma revista abjeccionista é precisamente o que eu desejaria publicar. Tenho colaboração para a mesma. Tenho projectos. Estou a organizar um ficheiro. Suponho que teremos público. (…) Vai entretanto assentando ideias porque esta revistinha pode ser o nosso futuro e o de muita gente. Tens título? A que estava fazer em Santarém, por incumbência do Forte (que, preso, teve de desistir), chamava-se, ora vê lá se adivinhas… chamava-se O Crocodilo que Voa.” A resposta de C. Seixas diz (1974: 136): “Tenho o maior interesse em falar contigo. Vai pensando que a revista que penso seria qualquer coisa como Le Surréalisme Même. Muitas gravuras e não poucas traduções.” Ainda em Abril, em nova carta a Luiz Pacheco, Seixas acrescenta: “Isto quanto à revista nossa, Abjecção, que tu confundes com outra que anda no ar em projecto, e que será fabricada sob as brumas londrinas. Esclareço: a ideia da Abjecção-revista, partiu de mim. A ela aderiu desde logo com o seu entusiasmo (…) o Pedro Oom que começou a fazer o arranjo gráfico, com os elementos que se iam reunindo. O Mário, da outra banda, aderiu também com o seu entusiasmo, mandando logo coisas e prometendo outras (enviado especial da Abjecção, em Paris, sob o pseudónimo de Coreto da Costa). Procurámos o Virgílio Martinho que também se entusiasmou, fazendo pensar que esta ideia era realmente uma das muitas fomes de muitas gentes. (…) Tu por carta também te mostraste interessado.” Postal de 2 de Maio de A. José Forte para Luiz Pacheco alude ao dinheiro em jogo (1974: 141): “Estive na passada segunda-feira em Lisboa com o Seixas, P. Oom, Virgílio e Sampaio. Afinal a ideia do Seixas é uma antologia-revista, coisa que irá ter aos vinte contos. Será portanto apresentada a uma editora e, se falhar, ao Vinhas.” A editora em causa é a Ulisseia, que edita nesse momento Cesariny, Manuel de Lima e Luiz Pacheco. Em carta de Cesariny a Pacheco de 18 de Maio (enviada de Londres) temos a posição do destinatário (1974: 150), então muito próximo de Seixas: “Abjecção. Se essa revista pega, se dá alguns números, tenho várias coisas na manga. Para já, para uma capa ou para lá dentro, um extraordinário bicho, o primeiro grande abjeccionista vivo. Já fiz três desenhos. Encontrado no Museu de História Natural, que é aqui perto, deu-me cabo dos olhos para muito tempo. Está ali tudo.” Em início de Junho tudo está bem encaminhado (carta de Virgílio Martinho a Luiz Pacheco, 1974: 160): “De facto creio que o Abjeccionismo vai para a frente. Estou admirado com o Forte: não apareceu nem mandou nada até hoje. Teria ido para Paris? Oxalá que sim. Um sonho é um sonho. Convidei para colaborar o Vítor [Vítor Silva Tavares]. Ele ficou encantado. Talvez seja uma pessoa a considerar, um testemunho abjeccionista.” Recorde-se que V.S.T. é de momento um dos directores literários da Ulisseia. Em final de Julho, em carta de Pacheco para Cesariny, novas informações (1974: 177): “Da revista do Seixas nunca mais soube nada, ou soube e não gostei. De duas idas a Lisboa e em dois meios diferentes, ou talvez não: só separados, notei uma insuspeitada alegria por a revista ainda não ter saído, ou já não sair ou ter dificuldade em sair. Foi em casa da Natália, que a princípio tanto gosto tinha demonstrado em ser convidada a colaborar; e foi no Letras e Artes (…) o que é natural porque estes não querem que haja.” A 8 de Setembro chega a carta decisiva de Cruzeiro Seixas a Luiz Pacheco, que concretiza um plano de colaborações para três números da revista. A carta abre desta forma (1974: 195): “Aqui estou para o que der e vier, e principalmente para a publicação de (pelo menos) três números da Abjecção”. Entre o material a incluir, Seixas aponta: Sade, Lewis Carrol, Mariana Alcoforado, Bocage (o pior, diz ele), Jacques Vaché, objectos etnográficos e fotografias de “prostituição” masculina. Luiz Pacheco responde ainda em Setembro, dizendo (1974: 202): “Do que vi e pesei em casa do Ernesto Sampaio, me pareceu que já havia material para 3 revistas únicas no género, dispendiosas na impressão, muito de espantar o Burguês, o Polícia e até o Padre, já não falando no Pateta (…). Uma revista corajosa. Uma revista como não há, uma revista que está a fazer falta. Vistas as partes, eis o que seria de fazer: Oom, doente, Virgílio, ausente, Sampaio, reticente, Cesariny, diatante, eu, caldense, Natália, ?, Lima, intrigante… O que fica, de mexido, é muito pouco. A bem dizer és só tu. Portanto, pegares no material que há, mas há nas mãos não em promessas ou possíveis arranjos, limpares o que seja de excluir, implacavelmente, e pesares. Se tiver ainda dimensão de revista, prá frente!” Sobre a questão do editor, acrescenta-se: “Aliás, a pensar num Editor, que é a fase em que estamos, e a prever que seria a Ulisseia, que é igualmente a fase em que estamos, não há tempo a perder. A editora deve estar a fechar, segundo suponho, este mês a próxima temporada.” Depois desta carta, salvando a resposta quase imediata de Seixas (15 de Setembro), assentindo às indicações de Pacheco, perde-se o rasto da revista. Que se passou? Em Novembro saiu a Antologia de Poesia Erótica e Satírica, logo apreendida e processada, a que se seguem no ano seguinte novos livros e novos processos judiciais, quer da Ulisseia, quer da novel editora de Ribeiro de Mello.

 

1966 – Em Janeiro Luiz Pacheco escreve e edita em copiógrafo Comunicado ou Intervenção da Província, onde alude à prisão em Fresnes de Cesariny, o que leva à indisposição deste. Em Março, saída de Crítica de Circunstância (Ulisseia; capa João Rodrigues e pref. Virgílio Martinho), imediatamente apreendido. Pela mesma altura acaba de escrever o prefácio para a tradução portuguesa de La Philosophie dans le boudoir, de D. A. F. de Sade. Escolhe para epígrafe o episódio lisboeta de Aline et Valcour, referido na carta de Seixas do início de Setembro de 65. No final de Março saída do livro, logo apreendido pela polícia; são processados todos os implicados (editor, prefaciador, ilustrador e tradutores). Crescem as ameaças ao sector implicado nas edições. O Diário da Manhã assevera o seguinte em primeira página (9 de Abril): “Cadeia ou Hospício. A Polícia Judiciária anunciou, há dias, a apreensão de diversos livros imorais e pornográficos em diversas regiões do País. Chegou-nos agora às mãos um exemplar de uma das obras (…). As depravações sexuais abomináveis são ali expostas (…) com uma crueza tão revoltante (…) que nos recusamos a aceitar como pessoas humanas aqueles que as difundem, apoiam e delas fazem o elogio. O homossexualismo, a sodomia, o incesto são ali propagandeados como se de virtudes se tratasse. A juntar a isto, um dos prefaciadores permite-se insultar a magistratura do tribunal da Boa Hora, por onde se gaba de já ter passado. Torna-se claro que a indivíduos deste estofo não poderá permitir-se-lhes o contacto com uma sociedade medianamente digna. O caminho só poderá ser ou a cadeia ou o hospício.

A Ulisseia desiste de publicar a revista Abjecção, na certeza que seria logo apreendida, processada e destruída. Em Agosto, edição (Ulisseia) de A Intervenção Surrealista, org. de M. Cesariny, que recolhe a já citada entrevista de Pedro Oom (1963); evita porém alusões novas ao abjeccionismo, vítima do desentendimento entre Cesariny e Pacheco por causa de Comunicado ou Intervenção da Província. Crítica feroz de Pacheco ao livro, “O Caprichismo Interventor do Sr. Mário Cesariny” (Jornal de Letras e Artes, n.º 251, 7-9-1966).

 

O DESAPARECIMENTO

1967 – Em Maio suicídio de João Rodrigues. Luiz Pacheco edita em Alcobaça Textos locais (Contraponto). Em Maio é preso nas Caldas da Rainha por via dos processos judiciais em curso; solto, mediante fiança paga pela família Maldonado de Freitas das Caldas, a de Junho. Em Novembro julgamento no Tribunal Plenário de Lisboa do processo da edição de Sade e condenação dos implicados. Luiz Pacheco com pena agravada por ofensas à magistratura.

 

1968 – Ruptura entre Virgílio Martinho e Mário Cesariny por causa de texto que o primeiro queria dar a lume sobre Textos Locais. Em Maio Luiz Pacheco é de novo preso nas Caldas; em Agosto transferência para o Limoeiro, donde sai no final de Dezembro.

 

1970 – Julgamento e condenação no Tribunal Plenário de Lisboa dos implicados na Antologia de Poesia e Erótica e Satírica. Manuel Vinhas ajuda L. Pacheco a pagar a fiança, que o salva de nova prisão.

 

1971 – Luiz Pacheco publica no Diário de Lisboa (11 Fevereiro), “O que é um escritor maldito”, com valiosos elementos para se perceber a sua noção social de “maldição”. O maldito, que se caracteriza pela pedincha, pela loucura, pelo homossexualismo, pela boémia, pela cadeia ou pelo exílio, é uma das metamorfoses finais do abjeccionista como inadaptado social.

 

1974 – Morte de Pedro Oom (26 de Abril). Em Junho aparece Pacheco versus Cesariny, onde se dão a lume as cartas trocadas em 1965 sobre a revista “Abjecção”. Mário Cesariny responde publicando Jornal do Gato, onde, numa nota de rodapé, no quadro da sua ruidosa altercação com Pacheco, aproveita para entrar em ruptura com o abjeccionismo (1974: 22): Escrevi num livro dedicado a Buñuel: “aqui e agora e sempre em todo o lado o surrealismo não tem nada que ver com o abjeccionismo ou só terão de comum o haverem-se conhecido, na cadeia, onde vai tanta gente por tão diversos cantares, e alguns só por recreio, visita de estudo e turismo.” Que o ar é/era um vómito, isso sim seria verdade mas sempre mais em relação ao tecto do que ao caminho apesar de tudo andado. “o ar que todos respiram” não serve de identidade à forma de respiração (“a moralidade de cada um”). O ar respirado por António Maria Lisboa é sem intermediários e altamente destrutor do ar absorvido por Luiz Pacheco em terceira ou quarta narina, enquanto o aparelho respiratório de Pedro Oom não o deixou sobreviver a uma rajada de ar puro. Pode continuar-se esta lista de diferenças até ao arrebentismo grato a L. P., mas acho que se trata de uma lista errada. A abjecção promovida por condições sócio-políticas será a única a explicar a vagabundagem do poeta? Sabemos que não. Artaud fugiu espavorido da democracia francesa dos anos trinta, Mayakovsky suicidou-se em plena gesta do comunismo russo. A estes dificilmente se poderá contar o conto do abjeccionismo nos termos em que, ao contrário do surrealismo, faz ditosa carreira em Portugal. Precisamente: entre os “abjeccionistas” portugueses ninguém abandona o local de trabalho, ninguém descura mostrar ao vizinho o abjecto comum, ninguém mata, ninguém se mata, ninguém enlouquece entre os taraumaras. (…) Pedro Oom desaparece no momento mesmo do primeiro raio de sol e tanto basta para podermos avaliar da sua constipação, da sua sinceridade.

 

1977 – Edição de António Maria Lisboa na Assírio & Alvim, com organização e notas críticas de Mário Cesariny e sem intervenção de Luiz Pacheco. Cesariny reitera nas notas finais a Erro Próprio a sua desvinculação do abjeccionismo – ele que fora entre 1959 e 1963 o artífice do “surreal-abjeccionismo”. Cito (1977: 392-3): Ordenando e vitalizando preocupações do grupo anti-grupo de 1949-1951 e, mais fundo, as do anterior convívio com Pedro Oom, do qual colhe e leva às últimas consequências a ideia ou sentido de abjecção, recolhe contribuições por vezes não identificadas ainda que postas entre asteriscos. É o caso (p. 41 da ed. Guimarães) das palavras “experiência de suicídio”, citação de palavras minhas, eu já oposto ou alheio ao “abjeccionismo” de P. O. Que, recordo bem, gostava de dizer, de já não sei que poeta francês, esta “máxima”: “C’est au fond de l’abjeccion que la pureté attend son oeuvre.” Para mim, hoje como há trinta anos, esta máxima não passa de semi-mínima. É evidente que o homem não é uma flor (o lotus) que se alimenta do lodo e quanto mais lodo ingere mais lotus fica. O contrário será mais verdadeiro: quanto mais infectado, mais infeccioso.

 
 
 
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