REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


ns | número 63 | março-abril 2017

EDITORIAL

Maria Estela Guedes (Portugal, 1947). Poeta, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária, além de exegeta da obra de Herberto Helder. Faz parte do Conselho Editorial da revista Incomunidade, e é membro do Instituto São Tomás de Aquino e da Associação 25 de Abril. Dirige coleções na editora Apenas Livros, entre elas cadeRnos suRRealistas sempRe. Tem umas dezenas de títulos publicados.

Foto: José Emílio-Nelson


MARIA ESTELA GUEDES

Donis de Frol Guilhade n'A Ideia

A Ideia

Num esforço colossal, em período de crise, com mecenato mínimo para todo o espaço cultural português, os responsáveis pel' A Ideia, desde o fundador e proprietário, João Freire, ao mais visível António Cândido Franco, diretor nos últimos anos, deram à estampa um volume quádruplo, o qual, somando-lhe o suplemento, constituído por um caderno de poemas inéditos de Virgílio Martinho, se aproxima das 500 páginas. Foi lançado há dias, mas a data é de 2016.

Três pontos apenas para realçar: os lançamentos têm sido feitos no Aljube, antiga cadeia, hoje Museu da Resistência (e Museu do Teatro Romano). Não é indiferente o local para os autores de uma revista cuja bandeira foi na origem empunhada por anarquistas, e hoje continua abertamente a hastear o seu apelo à cultura libertária, cultura capaz de libertar, não só com a presença de um dos mais icónicos artistas portugueses, o surrealista Artur do Cruzeiro Seixas, mas também com o tema do quádruplo número da Revista, o Abjecionismo. E foi assim que, no lançamento, o assunto veio à baila, por antonímia, no tema das comunicações apresentadas: as prisões em Portugal.

O que mais óbvio se vai tornando, à medida que cresce o número de volumes e páginas da revista, é que ela tem sido um foco de concentração de escritores e artistas, portugueses e estrangeiros, o que se torna notório nos lançamentos, de auditório superlotado. Neste ponto, é justo reconhecer que A Ideia já ultrapassou as suas próprias fronteiras de livro, para ser entendida como instituição cultural, à margem dos lugares comuns e protegidos, como de resto é próprio da cultura que também disso liberta.

Terceiro e último ponto, o tema deste volume, lindíssimo, um objeto de arte valioso, quer pela arte gráfica, quer pela poesia  e pelas reproduções de artistas plásticos, o tema é o do Abjecionismo. Deixemos as definições para mais tarde, fique apenas o alerta de que o abjeto não foi eliminado, existe hoje como há 50 anos, quando os surrealistas prepararam a saída de uma revista que ficou no ovo, para só agora eclodir dentro d'A Ideia, revista essa chamada Abjecção, que o diretor atual, António Cândido Franco, considerou a mais importante revista do Surrealismo em Portugal. Não é difícil concordar, dado o nosso razoável conhecimento da matéria, e muito superior domínio dela por parte de António Cândido, cujo trabalho n'A Ideia tem sido também o de reunir importante espólio surrealista e sobre o movimento no nosso País.

Precisamos de escritores abjecionistas, gente de armas capaz de não cruzar os braços perante a onda de abjeção política e prática que no horizonte ameaça toda a humanidade. Um dos abjecionistas presentes no nº 77/80 d'A Ideia é Manuel Maria Barbosa du Bocage. Bocage sabia que uma das armas mais poderosas para corroer o narcisismo de muitos para quem o Poder só serve para alimentar o ego, é o ridículo. O homem considerado mais poderoso na Terra, neste momento, é um monumento de narcisismo, por isso vulnerável ao riso. Pratiquemos nesse alvo e colheremos alguns bons frutos. 

A Ideia
Revista de Cultura Libertária
Nºs 77/80 . Outono de 2016
Preço voluntário
430 páginas ilustradas mais 18 págs de suplemento:
Virgílio Martinho, Vinte e um poemas
Dir. de António Cândido Franco


Donis de Frol Guilhade: Quem?!

Publicado n' A Ideia, Revista de Cultura Libertária, Nºs 77/80, 2016

 

Um único livro publicado, não por vontade própria, antes por rogo do prefaciador, António Cândido Franco, o qual nos informa sobre o essencial do autor. E essencial no autor, para o autor, parece ser a questão da identidade, pois basta atentar na capa do livro para verificarmos que é um discurso hermético em torno da duplicidade e multissignificação dos seus nomes: primeiro, os nomes de autor, «luiz pires dos reys | donis de frol guilhade»; depois, nomes do autor em título, que por isso apelam para a investigação, oferecendo-se como alvo de descobrimento: «donis: antre luiz i ziul» (Editora Licorne, 2015).

Adónis, apetece então interpretar, contra a evidência das cantigas de amor e de amigo de D. Dinis e Johan Garcia de Guilhade, nomes alheios implicados nos próprios, como esclarece António Cândido. Toda ou quase toda a leitura é possível, incluída a que remete para o narcisismo, enquanto busca da alma refletida no espelho das águas. Porém, já o facto de se integrar a identidade dos antepassados na de Luiz Pires dos Reys, e de em rigor ortográfico não ser este o nome que figura no BI do autor, garante que a situação identitária é algo mais holístico do que egocentismo e narcisismo pessoais.

Que visual apresentam os poemas, antes de mais nada? A língua em que foram escritos não é o português da norma, mesmo dando-se o caso de que a língua da escrita literária, quanto mais original, mais se afasta dela.  Nunca porém o afastamento pode extremar-se ou passamos a confrontar-nos com uma língua que não é a nossa. Pois o livro chega quase a esse extremo, vamos dizer que chega a um estado adonísico do português, e por tal entenda-se um estado próprio de Adónis, deus da beleza e juventude na mitologia grega, por isso objeto de amor por parte de outras divindades.

Esta língua, por se situar na fronteira do reconhecível e do inteligível, lembra o crioulo: a expectativa de acharmos a chave para abrirmos a porta do código torna irresistível o desejo de ler, tal como terá sido irresistível o amor despertado em Afrodite pelo jovem e belo Adónis. E o que há de tão desejado na descodificação, ou na revelação dos segredos encriptados na semente das palavras? Penso que na raiz de todo o desejo existe algo de messiânico, é uma expectativa de salvação que nos move ao longo dos textos. Porque bem sabemos que na matriz do crioulo, como na matriz da língua adonísica de Donis de Frol Guilhade, reside um português de lei, mas sem tempo nem lugar, cujo léxico pode ser constituído por vocábulos usados pelos trovadores, lidos n’ Os Lusíadas, em Aquilino, enfim, trazidos daqui e dali e sobretudo de uma fundura de alma que cria um duplo da língua idêntico ao duplo do autor, algo como um português mítico, assente não só nos arcaísmos, termos raramente usados, neologismos e decomposição das palavras em parcelas autónomas de significação, mas também no nosso imaginário. É uma língua sonhada, sebastiânica, para uma sonhada pátria mais adonísica do que aquela em que vivemos, seja exemplo o poema da página 34, talvez intitulado «… e Ómega : a ínclita regénese da pátria»:

 

eis virá al

fim O que vem

promisso ao jus’to

 

n’O cristi | áfanos

condiz emos mar

a nau’tas alleluias&hossanas

 

em multidom cord’atam-se

os fiéis e os in

deveros ao cordeiro corDato

 

o que i nos prova

se atem prono e há

imo lado imutábil

 

hodierno te filho

geneRey: tôdolos

últimos hão ser primevo

 

alfim se adeja

~u gesto u vem renovo

- virá… e O h’eis.

 

Por isso Adónis adapta-se aos segredos desta poesia que mantém com o mistério uma relação de formosura e encantamento. Adónis era um menino de extrema beleza, transformado em flor – ou frol, como quer o registo de língua medieval – após a morte. A poesia é um culto à beleza e aos mistérios da regeneração cíclica da vida; quer o mito de Adónis quer os textos (de) «Donis de Frol Guilhade» tal documentam.

Quanto à identidade, é certo que faz convergir para ela a multiplicidade dos temas, assuntos e motivos que iluminam os poemas, na maior parte representativos da História de Portugal no seu período glorioso de descoberta de novos mundos; assim, o livro o cada passo nos desvenda navios, ondas, adamastores, velas e ventos, âncoras, mares e rios sagrados e figuras das diversas religiões. A superior missão que o autor atribui aos mareantes, manifesta na espiritualidade de figuras búdicas, egípcias ou das cruzes e referências ao culto cristão, com os seus santos e Trindade, espelham a imagem de uma pátria que é alma. Por conseguinte, é a alma-pátria a real identidade manifesta nos nomes de pessoas.

Navegar na língua é navegar na História, e navegar na História Portuguesa é uma peregrinação em demanda do Santo Graal. Nada de mais belo na nossa aspiração: tal como Adónis, também Sebastião é considerado o mais belo (dos santos).

No rosto refletido no espelho da água, o poeta adonísico encontra-se então com a sua alma, a pátria portuguesa. Exemplo disso é a glossolalia intemporal sobre o seu nome que ostenta o duplo título «em língua d’almo:/almafrol» e remata com as variantes antroponímicas: 

frol de guilhade donis

guilhade donis de frol

donis de frol guilhade (p.45)

Para terminar, confesso que Luiz Pires dos Reys escreve num dos mais originais, secretos e messiânicos registos de língua portuguesa que já me foi dado conhecer.

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploV Blog  
Apenas Livros Editora  
Canal TriploV Multimedia  
Agulha  
Revista InComunidade  
www.triplov.com  
António Telmo - Vida e Obra  
A viagem dos argonautas
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL