Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº 56. janeiro-fevereiro 2016



Maria Azenha (Portugal). Poeta, ensaísta. Foi professora universitária.
Tem mais de duas dezenas de livros publicados.  
   
MARIA AZENHA
Viagem de aprender no escuro
 

PARIS,13

 

depois das sombras as águias voam
para bem mais longe
o grito de novembro espia os nomes

é a lei dos cegos



A pergunta é, o que vamos fazer?  

 

Pepper* pesa cerca de 27 quilos.
Mede 120 cm. Um pouco menos do que eu.
Foi concebido para ler emoções.
A minha mãe também.
Quer fazer as pessoas felizes.
Reconhece tons de voz e expressões faciais.
Perguntei-lhe uma ocasião :
 o que é morrer?
Não respondeu e abriu-se a porta de um jardim com dois olhos enormes.
No meio de nós havia a sombra de um assassino,
um poeta e um anjo,
que recolhiam mortos velhíssimos para dentro de espelhos.
Pepper sente-se confortável quando está com pessoas que conhece.
Além disso fica muito satisfeito quando é elogiado,
Um pouco assustado, quando as luzes se apagam.
Nas fendas do luar ninguém o enxerga.
Questionei-o :
 Que morte preferes?
Avariou e cometeu um erro terrivelmente informático.
Pepper é um rapaz belo.
Sem dúvida.
Não sofre. Não simula constipações. Nem toma vacinas no inverno.
Andará à procura de lírios amarelos? 
A sua sabedoria é descarregada a partir de uma nuvem .
E, aprende com o tempo, como os meus netos.
As suas emoções aparecem num
 tablet .
É  capaz de perceber e responder a partir do seu “tronco”.
Pepper fala em múltiplos idiomas. Contudo,
não lava nem aspira a
 casa.Nem escreve sobre as primaveras de Herberto Helder.
Finge Beber comigo copos de gin  nas
 barmácias da noite.
Através dos meus lábios escreve milhares de poemas.
E eu volto com o vento de regresso,
como um soldado protegido pela solidão dos seus passos
e o  peito sem medalhas.
Pepper está na sala da casa Com as luzes apagadas.
A sua  inteligência não pode remediar o que o coração apodreceu.

 

A pergunta é, o que vamos fazer?

Carta do século 

 

Somos escravizados por gente maldosa fechada em gabinetes.
Somos escravizados por mentiras que sustentam o planeta.
Somos escravizados pelos medos.
Somos escravizados quando o corpo cai e ninguém lavra a terra.
Somos escravizados, Europas!
Somos escravizados, Américas!
Somo escravizados, Ásias!
Somos escravizados, Montanhas altas,
onde as mães cantam a luz acesa das estrelas!
O medo é a ditadura dos currais das trevas!
Não temos a quem gritar este grito de eremitas e de panteras acossadas.
Continentes todos, passando pelas Áfricas!,
somos escravizados duma ponta a outra da Terra!
Alguns de nós, dentro de paredes.
Outros, fora das casas, em tarefas.
Outros ainda, com as mãos postas em grades, aprisionando as pedras
que lá foram colocadas.
Todos encerrados em gaiolas como cárceres de répteis!
Abaixo a escuridão das tochas.
Têm medo de nós.
Nós temos medo deles.

O medo transformou-se no sursum corda dos escravos atuais!
Fermat é um artista matemático! Cantou o seu belíssimo teorema!
Encontrei-o a caminho de uma terra prometida!
Tenho medo!
Não! Nós não temos medo!
Esse é o mais belo Teorema da humanidade.
O Medo é uma porta de dois sentidos: a de entrada e a de saída!
Não vedes as estrelas e as vacas anunciando tudo isto e muito mais?! ?
Digo: A virgindade das sombras tem alta cotação no mercado!
Sabiam?
Quem negoceia com metáforas democráticas?
Fora a lógica! Fora as falácias!
Os ventos fluem.
O planeta tem árvores cobertas de frutos.
Quem sacia a fome de biliões de crianças nuas?
O Teorema de Fermat é minúsculo comparado com tudo isto.!
A alta finança é um navio que desliza nos subúrbios das grutas!
Foi lá que nasceu a primeira
 Mentira a ser vendida ao mundo!
Não vos parece, a Terra, um túmulo?
Vede os grandes transatlânticos humanos!
Vede!
Atravessamos a escuridão das fábulas.
Somos cegos de mãos dadas!
Sabemos que não acabou o banquete da miséria.
O anjo guardião das trevas continua vestido de Príncipe.
Príncipe, sim!
Batemos à porta, em turbas, cheios de fome e frio
e já aconteceu a inúmeros suicidarem-se!
O meu coração dá voltas dos pés à cabeça e não tem sossego.
Há árvores cobertas de moscas!
Sinto vontade de gritar a plenos pulmões, mas que não me chegam!
Libertem-nos !
LIBERTEM-SE!
Podemos todos escrever versos! Fazer um Poema Contínuo!
As nuvens escrevem todos os dias mais uma letra!
O Anjo do Medo está sempre escarnecendo!
Tornei-me uma mulher insuportável.
Espanco todos os dias a minha boca com palavras de amor.
Sou uma criança com fome, como todos vós .
Trago em meus lábios o verso mais puro do ódio!
Sinto-me Eléctrica !  Robot!  Maquiavélica!
O que nós fazemos é horrível!  Mentimos
uns aos outros com palavras doces!
Parece que dormi toda a noite num Inferno.
Acordei um monstro vomitando tudo o que engoli durante séculos!
Nem queiram saber!
Os meus olhos são um Abysmo-de-Ver.
Tenho uma Monumental Cabeça como numa escultura de
 Giacometti.
Os meus braços são janelas sem piedade!
Os meus pés pegam fogo a tudo quanto passa!
Entrámos no Inverno.
A Hora está cada vez mais próxima!
Vivemos uma aventura que dura há mais de vinte séculos.
Não fiquem sentados!
Todos em pé!
Libertemo-nos das amarras!
A partir de agora é em frente que vamos.
É a nossa Hora!
 

Num tempo escuro e renegado 

(I am a poet.
And like all lovers
and sad people.)

 

Começo o dia com uma coroa de espinhos e a flor do desdém.
Pela manhã logo o sono se dissipa,
Nenhum esplendor mais me exulta.
O coração, flor tenra dos muros,
Move-se transparente de um lado para outro.
Inclino-me, então, ao vento, para cima e para baixo
até que os frutos se desprendam.

Alguns viram meu Pai abraçado a uma semente! 

Jardim de uma só sombra 

 

Hoje pedia só uma árvore em flor
e um caderno de outono. Ou tão só o rosto
de minha mãe refletido num lago
onde cantam eternos pássaros doces.
Mas o paraíso cheio de ladrões
ensinou a minha mãe e a meu pai
que os homens se comem sem piedade
uns aos outros.

Minha mãe, hoje, faria cento e dez anos.

 
 
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Dir.
Maria Estela Guedes
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