REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 48 | outubro-novembro | 2014

 
 

 

 

CELLES LETA

De Sol Acções a Sol Unções:
um convite ao sol para que suemos a camisa em nome da prosperidade

Celles Leta, escritor moçambicano, nascido em Maputo.

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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«Disse ele: “Olhem, o Sol ainda vai alto e não é hora de recolher os rebanhos.
Dêem de beber às ovelhas e levem-nas de volta ao pasto”.» (Gênesis 29:11)

 

Depois de dois partos literários, «Espelho», obra em prosa publicada em 2011, e «Contar Ser Gregos», obra poética publicada em 2012, eis que Emmy Xyx, ou se quisermos fazer do senhorio deste pseudónimo literário chama acesa crescendo seus tentáculos de labaredas vivas para além dos domínios da literatura, chamá-la-íamos Manuela Xavier, nome quase sempre em rubro nos meandros das artes e letras da «Pérola do Índico», nos aquece com esta colectânea de luzente poesia, «De Sol Acções a Sol Unções», título que, como ter o sol a centímetros da testa, possibilitou o pôr-do-sol da minha memória de tal tamanho e sorte que me vi totalmente invadido por lendas e mitos sobre esta estrela anã, ou seja, o Sol. 

À luz da história, pode-se dizer que o sol teve sempre o seu lugar ao sol em várias religiões conhecidas no longo percurso da existência humana, ao ocupar quase sempre o título de deus mais importante entre os deuses, sendo portanto para os egípcios conhecido pelo nome Rá, para os sumérios, Shamash, para os persas, Mitra, para os fenícios, Adonai, só para trazer à luz alguns exemplos. 

O mito grego de Hélio, deus que ostenta o nome do qual derivam as palavras «heliocêntrico» e «heliocentrismo», conta que Hélio era um deus que riscava os céus num carro de fogo puxado por quatro cavalos brancos, soltando fogo pelas narinas e que, depois de a Aurora aparecer no horizonte, no seu carro ele saía do oriente e subia até o ponto mais alto do «meio-dia», descendo, em seguida para o ocidente até ao fundo do oceano ou se escondia atrás das montanhas. 

Para os índios, o sol era um «vivant» de nome Kuandú, que tinha três filhos, o mais velho, o sol que aparece na época da seca, o mais novo, o sol que sai na chuva, e o do meio, o sol que ajuda os irmãos quando estão estarrecidos. Quando Kuandú, em consequência a uma desavença que tivera com índio Juruna, foi acertado na cabeça por um cacho do fruto da palmeira inajá, tendo encontrado a morte, tudo escureceu, sendo difícil fazer qualquer coisa que fosse, em virtude da escuridão que se alastrou por toda a parte. Com a morte de Kuandú, a sua mulher mandou os três filhos saírem de casa, o que explica alguns comportamentos climáticos que estamos acostumados a presenciar, ou seja, quando estamos na seca é o filho mais velho de Kuandú que está fora de casa, quando o sol é fraco e finda a época da seca, é o mais novo, e o do meio só aparece quando os outros estão cansados. 

É com este mesmo sol, que já inspirou inúmeros mitos, lendas, estórias e histórias, para além das supra contadas, que Emmy Xyx diz, no «De Sol Acções a Sol Unções», em voz cálida, que «Absque sudore et labore nullum opus perfectum/ Sem suor e sem trabalho, nenhuma obra é perfeita», embora seja verdade que «A vida em baloiço balança/ não pára de baloiçar/ a perfeição não a alcança/ está sempre a duvidar (…)» (p. 19), mesmo «se as existências resistem/ se as resistências existem/ se as penitencias persistem/ e se as pertinências permitem (…)» (p. 19), «na bola da vida o jogo/ no bolo da vida o fogo/ na coca da vida o gogo/ na cola da vida o foco/ de bola em bolo/ de cola em colo (…)» (p. 19) como uma luz no fundo do túnel brilhando para contrariar as trevas profundas que se abrem para dizer que, à luz dos tempos que correm, talvez valha dizer-se que «a esperança é a primeira a morrer», pois a claridade de tal inquietação pode ser encontrada nesta frase, «Até que o sol não brilhe, acendamos uma vela na escuridão.», frase do grande pensador e filósofo chinês Confúcio (551 – 479 a. C.). 

«Ainda não inventaste outro lugar

ainda não inventaste outra esfera

ainda não inventaste outra terra

na que julgas

que crocodilos te acolhem

ainda não inventaste outro espaço

ainda não inventaste outra guerra

E enquanto não a inventaste

finge que inventaste esta terra!»  

Este poema, intitulado «Finge» (p. 37), é o clarão que ilumina o chamamento colectivo para que interiorizemos que, se não formos nós a tomarmos a dianteira na luta pelo que queremos, ninguém mais estará de mãos arregaçadas pronto para suar a camisa em nome da terra que nos viu nascer, posto que, como ressalva a autora de «De Sol Acções a Sol Unções» no poema «Nosso Moçambique» (p. 60), «Tirou as mãos do chão/ alegria de viver!/ Cresceu, cresceu sem saber/ às mãos a água não levou./ Colares de pérolas, brincos e pulseiras/ cobrem o corpo de água/ quem te viu e que te vê:/ Moça que não lê.», poema inspirado de um poema de Walter Sergio, estamos diante de um «A luta continua!» aos homens do nosso tempo, nessa passagem de testemunho que estabelece a dialéctica da manutenção e transformação das sociedades, faltando, por conseguinte, que, através de acções, ou como diria Xyx, «Sol acções», sejamos a este chame colectivo eco ensurdecedor ao respondermos todos juntos, «A luta continua!», provendo soluções e «Sol unções» para o escuro dos dias que em nossos olhos correm. 

Como que dizendo que a manutenção cultural é o garante para se chegar a luz da prosperidade que buscamos em cada baga de suor a que nos damos nas diferentes lutas que levamos a cabo, a autora de «De Sol Acções a Sol Unções» confunde-nos com os ritos de iniciação que mudam para dar nome a um poema intitulado «Gritos de iniciação» (p. 41), «Oiço teus gritos ao longe/ voltas calado, inocente/ guardas sofrimento de monge/ sei que quem cala dor sente.», aliás, característica de maior ocorrência na poesia de Xyx, como podemos constatá-lo em outros poemas, «Agá cem “B”» (p. 10), «Auto Cura no Autocarro» (p. 18), «Beber guala» (p. 20), «Com par acção» (p. 22), «Dinheiro mendigo» (p. 28), de «De Sol Acções a Sol Unções», ou no poema «Contar ser grego», o mesmo que dá título ao seu segunda obra. 

Vale no entanto pôr a relevo a advertência que a autora faz, através do poema «Definição» (p. 25), «Como comer banana/ com casca/ se é a casca da banana/ que me faz cair?!», para que, ao longo deste longo processo de busca pela prosperidade, ou seja, desencadear «sol acções» que permitam que consigamos chegar a «sol unções», nos precavermos das enfermidades que possam nos impedir de suar a camisa, podendo as referidas enfermidades se fazerem representar em nossas vidas através das convulsões sociais, instabilidade política, guerras endógenas e/ou exógenas, ou ainda as crises económicas mundiais, que podem nos levar a uma situação de incapacidade mais acentuada, perante o desenvolvimento que tenhamos conhecido. 

Nesta luzente colectânea de poemas ao falto de sol da nossa consciência de trabalho, «(…) a lucidez/ que ilumina a vida.» (p. 63) sobre ela reluzindo, celebramos a vida cantando, mesmo nos primeiros momentos de nossa vida, ao longo dela e, quem sabe, no seu fim, como a autora sublinha ao deixar a descoberto que o «sol», neste «De Sol Acções a Sol Unções», tanto pode tratar-se da estrela anã quanto da quinta nota na escala musical, ao brindar-nos com o poema «Notas musicais» (p. 61):  

«A dor em mim!

Faz sol.

Lá, se dói.

Adoro sim

lá sol faz

em meu redor.»  

Este poema tem a particularidade, diga-se, bem explorada pela autora, de substantivos, verbos, complementos e pronomes se confundirem com notas musicais: o «dó» e «dor» e «dói», «mi» e «mim», «fá» e «faz», «sol» e «sol», «lá» e «lá», «si» e «se» trocam de papeis, sugerindo-nos a mesma esperança que brilhou nos olhos dos nossos antepassados, enquanto escravos. 

Se «De Sol Acções a Sol Unções», mais do que uma obra poética, é um convite ao sol da nossa sempre viva vontade de vencer sobre as adversidades próprias de um país que está na trilha do desenvolvimento, então a sua autora, através dos 80 poemas que esta obra iluminada congrega, poemas que se apresentam norteados por uma ascensão alfabética de “A” a “V”, a mesma ascensão que devemos incorporar na nossa força de vontade, na coragem para vencer, quando nos damos ao trabalho, talvez, a autora deste parto literário, através desta colectânea de poemas, queira dizer-nos: em vez da boca, que passemos a suar a camisa, pois não existe nas trevas da vida sol que se faça alto sem acções nem sol que se deite tranquilo sem unções.

 

 

© Maria Estela Guedes
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