REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 46 | junho-julho | 2014

 
 

 

 




CLAUDIO PARREIRA

O mundo flutuante



 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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— Olha só — eu disse. — Meio metro acima da cama!

A minha mulher se virou lentamente, abriu um olho só. Olhou pra mim com aquela cara de quem não tava entendendo nada, depois roncou involuntariamente, aquela coisa engraçada, ela com um olho aberto e roncando, prova de que o olho aberto não significava que ela estava acordada coisa nenhuma, era apenas aquele estado confuso em que a gente pensa que está mas não está nada.

Algumas horas mais tarde, eu já no chão depois de testar, sozinho, todas as possibilidades da flutuação, ela acordou, os dedos pequenos esfregando os olhos, a boca aberta num bocejo interminável.

— Engraçado — ela disse enfim. — Tive um sonho tão estranho...

Eu fiquei olhando pra ela, um sorriso maroto nos lábios.

— Você parecia distante, sabe? — ela continuou. — Assim, meio embaçadão, não sei bem explicar. Parecia coisa de mágico, sei lá.

Eu pensei na melhor maneira de contar a ela, escolher as melhores palavras, essas coisas. Não queria assustá-la. E ela, de qualquer forma, não se assustou, mesmo quando, ao invés das melhores palavras, eu me pus outra vez a flutuar na sua frente.

— Não sei como isso aconteceu — eu disse. — Eu agora flutuo, e isso é tão natural quanto respirar ou pensar. E não adianta me pedir explicações.

Depois de me observar por alguns segundos, ela falou:

— Tô com fome.

Tomamos o café da manhã em silêncio, ela sentada na cadeira e eu, um palmo acima da mesa.

 

Confesso que fiquei chateado com o descaso da minha mulher. Eu esperava uma reação eufórica, de surpresa, ela me enchendo de perguntas e telefonando para os amigos, olha, ele flutua, que lindo que é isso, nenhum de vocês faz igual — mas nada, só o silêncio, nenhuma pergunta a respeito, nada nada. Coisas assim, de maneira geral, sempre vêm acompanhadas de entusiasmo. No caso, porém, o único entusiasmo era o meu. Minha mulher, como todos os dias, foi cuidar da própria vida, nem uma palavra sequer sobre o assunto, eu ali sozinho com o brinquedo novo nas mãos, querendo compartilhá-lo com alguém que sequer o havia notado.

Apesar da minha recente leveza, fui para a rua me sentindo um tanto pesado. Fui flutuando, é bom que se diga — e uma parte em mim pedia pelamordedeus que alguém notasse o fenômeno. Afinal, não tem a menor graça ser portador de uma habilidade especial e não ter ninguém para apreciar. O entusiasmo, sim, essa a mola da vida, da minha vida, pelo menos. Mas ninguém à minha volta, percebi, parecia concordar comigo. No caos das ruas congestionadas, das buzinas, das pessoas apressadas, no meio dessa bagunça toda não tinham olhos para mim e, assim como a minha mulher, tanto faz. Em tempos de cinema e efeitos especiais, um homem flutuando não significa muito, é parte de uma nova peça publicitária ou coisa assim.

Levado por esses e outros pensamentos — e também pelo vento —, fui me distanciando cada vez mais de casa. Do chão eu também já estava distante, uns quatro ou cinco metros, não sei direito, o que me proporcionava uma visão bem divertida, diferente de tudo o que eu já havia visto. De uma hora para outra toda a minha perspectiva do mundo tinha mudado, mesmo as coisas mais corriqueiras ganhavam novas formas, e as pessoas, uma nova dimensão. Foi aí que eu ouvi, enfim, o chamado dos meninos:

— Ei, ei — eles gritaram. — Ei!

Eu sorri. As crianças, ah!, elas são sempre mais atentas, mais espertas que nós. Percebem aquilo que os adultos nem mesmo sabem que ignoram.

— Sim — eu falei. — Estou mesmo flutuando. Não é genial?

— Aproveita que você tá aí em cima e pega aquela pipa ali no poste — falou um menino. — A gente não alcança!

Eu quase caí de raiva. Mais uma vez, sobre o fato de estar flutuando, nenhuma palavra. Dane-se. Os meninos perceberam isso, é claro, mas usaram a coisa em benefício próprio. Não sou apanhador de pipas, eu pensei enquanto me afastava. Lá embaixo os meninos, indignados, disparando todo tipo de palavrões pelo fato de eu não tê-los atendido.

Não sei se isso é um fato, nunca li ou ouvi nada a respeito, mas acho que a solidão de quem flutua é bem maior que a dos demais homens. Assim, pelo menos, é como estou me sentindo. Não tenho par lá embaixo; aqui em cima, muito menos. Mesmo as criaturas voadoras se afastam; os pássaros não me querem por perto, voam pra longe quando me aproximo. As borboletas não me alcançam por causa do seu vôo delicado. Os urubus planam centenas de metros acima da minha cabeça e acho que não consigo alcançá-los. Ou seja, estou num vácuo flutuante, no meio de tudo. No meio de nada. Foi por isso que me enchi de alegria ao ver, alguns metros à minha frente e no mesmo plano, um outro homem flutuante. É difícil descrever a minha satisfação, e talvez por isso mesmo eu tenha me comportado como um moleque bobo, deslumbrado com a habilidade que eu considerava especial:

— Olá! Eu flutuo também — falei.

O homem se voltou lentamente na minha direção, me deu uma olhada cheia de tédio. E falou:

— Grande merda.

Em seguida deu-me as costas novamente e ficou ali parado, ocupado com seus próprios pensamentos. Pensei em falar alguma coisa, afinal não é sempre que se encontra alguém em situação semelhante, era o que eu pensava, mas assim que vi outro homem flutuante, logo mais à frente, resolvi me calar. E o sujeito não estava só: ao seu lado havia outros homens, altos e baixos e magros e gordos, flutuando leves ao sabor do vento, assim como eu. Mulheres flutuantes também. Bonitas, jovens, velhas, feias, mulheres-balão, várias mulheres. Um curioso rinoceronte com asinhas azuis pastando nuvens. Um cabrito alado, dois anjos vermelhos fumando charuto. Uma parcela significativa do mundo, definitivamente, flutuava ao meu redor. O mundo flutuante bem diante do meu nariz. E do meu sorriso:

— Genial! — eu falei, mais uma vez encantado com a situação. — Genial!

O que notei a seguir, no entanto, me deixou triste: o entusiasmo, mais uma vez, o entusiasmo só existia ainda em mim. Nenhum dos outros flutuantes parecia feliz. Por quê?

— E você acha que flutuar é motivo de alguma espécie de comemoração? — falou a mulher-balão. — Coisa nenhuma! A vertigem, meu filho, a constante vertigem que não nos deixa olhar pra baixo. Daqui por diante é só pra cima, sempre, mais alto, mais alto.

— Não tem nada de especial aqui, rapaz — disse um dos anjos, a fumaça fedorenta do charuto chicoteando o meu nariz. — Tal qual lá embaixo, aqui também é o inferno.  

A infinita tristeza dos seres, eu pensei. A minha tristeza, que eu também já não era o mesmo. Um céu imenso acima da minha cabeça, a terra lá embaixo, distante. A incômoda certeza de não pertencer a lugar nenhum.

   
 

 

 Claudio Parreira é escritor e jornalista. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos on line, Agência Carta Maior, entre outras publicações. Teve contos incluídos nas coletâneas CONTOS DE ALGIBEIRA, FIAT VOLUNTAS TUA, DIMENSÕES.BR, PORTAL 2001, A FANTÁSTICA LITERATURA QUEER, FRAGMENTOS DO INFERNO e também LINHAGEM MONTESSALES – RETRATOS DA INQUISIÇÃO. 
Recebeu Menção de Honra para o conto O Jardim de Esperanças (Der Garten Der Hoffnungen), da Revista de Assuntos Latino-Americanos XICOATL, Áustria, em 1996. Foi ainda o ganhador do 1º Concurso de Contos da Revista piauí, em março de 2007 e, no ano seguinte, integrante do folhetim despropositado A Velha Debaixo da Cama, da mesma revista.
É autor, pela Editora Draco, do romance GABRIEL.
Mora em São Paulo, SP, e mantém na Internet o
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