REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 45 | abril-maio | 2014

 
 

 

 

JOÃO S MARTINS


Ferry street . Rua da palavra (II)

 

João S Martins, 59 anos, natural de Manteigas, residente nos EUA há vinte e seis anos.Poesia publicada em sete livros. Muitos outros poemas. Histórias de viagem. "Mãos verdadeiras", o livro mais recente. Para breve a publicação dos livros/poemas: "Ferry Street Rua da Palavra" e "quando menino eu lia...". E muitas palavras disponíveis.... ( www.artamarte.blogspot.com ) joaomartins54@aol.com

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
Revista InComunidade  
Apenas Livros Editora  

Arte - Livros Editora

 
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
   
 
 
 
 
 

história da barbearia


dançam o pente e a tesoura
(tic tic tic tic)
os cabelos vão caindo,

algumas brancas


conta histórias de encantar,

sim, era assim,

de futebol e doenças,

ai que doi, 

 

põe a conversa em dia

com os segredos

que nem ao padre confessa,

pois então 

 

sai com um novo visual,

quem o diria,

tirou uns anos de cima,
mas que bom

 

a idade, já lá vai,

essa é real,

os olhos não mentem,

não escondem

 

e as rugas da alma

ninguém vê.

aqui e ali abre caminhos

e avenidas

 

lá na terra cortava

o pão ao vento

que lhe cortava os sonhos

pela raiz

 

sente-se como novo

e foi para a rua

adeus senhor barbeiro

até para o ano ...

até para o ano ...

até para o ano ...

 

A comida, os largos, as casas, as sardinhas

cheiravam ao mesmo fumo da lareira de lá,

os restaurantes, (aprendeu os nomes bem depressa).

E o bacalhau, o galo de barcelos, o vira, o fado e o corridinho

("Estamos na romaria - dizia ela –

da Senhora ...lá da terra,algumas dores e agonia")

Aprendeu nomes de aldeias de lá,

tantas que nunca sonhara, mas as falas

eram iguais. E andavam de cara lavada,

levantada, com orgulho, de sol a sol

trabalhavam, não era novidade, já

vinha de lá o costume, a necessidade.

("mais uns anos - dizia ela - e adeus...)

Era um outro desejo...

                                  

As procissões que nos ligam como um rosário de contas e penitências, promessas e alegrias, juntas com o perdão, as angústias e as tristezas.

(“Senhora de lá do céu – dizia ela – dai-nos a boa viagem!...”)

 

O vento sopra nas esquinas dos prédios

do encontro e do desencontro. Os relógios marcam tempos diferentes. Culturas, fusos horários..

Nos cafés

("aquele cheirinho - diz ela – "que lembra a bica de lá")

onde se aquecem mãos e coração, 

há janelas que deixam passar os rostos,

e os vidros não bloqueiam os pensamentos

(para o longe) nem os olhares de cobiça,

rostos embalsamados num outro tempo pessoal

que já lá vai,  porque – dizia ela - o vento sopra mais forte...

   
 
   
 

4. VENTO                                                                        

canção do vento que sopra                                                                      

pássaros e folhas em fuga

remoínhos em conflito

ventos velozes que mudam

os sentidos desta rua

 

ao ritmo intermitente

das luzes que piscam

informações inseguras

direcções de risco

 

balançam os nomes

das ruas nos candeeiros

esquinas de encontros

em clarões inseguros.

 

é o vento são as cruzes

no corpo de uma cidade

do pavimento pisado

cruzadas indecisões

 

sombras que alteram os passos

dos passantes insensíveis

trespassados pelos ares

e olhares enregelados

 

o vento sopra mais forte e

mais frio nas encruzilhadas

 

Lá na esquina,

dizia ela, (dizia ele ...)

era um diz que disse contínuo,

entre revistas, marchas e um rio

que se espraiava, e parecia a cidade dos doutores,

onde um outro basófias se espalhava.

Verdades ou mentiras,

assim asssim ou talvez não,

entre um café, um palito e o jornal.

Era a voz da caserna… como tantas!

 

Escuta-se o futebol nas esquinas, coisa fina,

e cada golo é um salto de alegria.

(quem marcou? não importa - diz ela - foi golo)

Amanhã, os jornais darão as notícias,

e nas cores das camisolas vestiremos a paixão.

 

            No prédio que se lavanta ali ao lado

“pimba, pimba” – malhavam no ferro

na esquina mais à frente,

“pimba, pimba”

entre bandeiras e outros artefactos

santos e barros

 

Lado a lado, os pregões das varinas

são trazidos pelos vendedores da sardinha e do carapau

("chegado ontem de Portugal" - dia ela -

"ainda fresquinho e com sangue na guelra")

 

cheiro a mar de um outro modo

de quanto ele nos dá e conforta

há pregões de varinas que o são

nas origens de um mar que abraçavam

a canastra na cabeça, nas ruelas

outrora estreitas, agora rua larga

para deixar passar um caudal de sonhos

de povos, de gerações e de rostos...

 

cheira a Ferry- cheira a mar  

ando a procura de cheiros

de cheiros que são memórias

cheiro da terra e do vinho

que lembram velhas histórias

junto à porta do vizinho

 

saem cheiros das janelas

perfumes do rés-do-chão

são os aromas antigos

dos cominhos dos enchidos

do forno que cheira ao pão

 

são os cheiros que nos falam

das letras de outras palavras

um perfume sempre novo

o cheiro às vagas do mar

e o coração nos diz: cheira a povo

 

sons e cheiros se misturam

de tantas terras e origens

são cores e sons que falam

e os cheiros não me enganam

são bilhetes de viagens

 

abre-se a porta é o marisco

na outra porta o florista

fumo da carne na grelha

F de frango e de Ferry

cada letra tem seu cheiro

 

cheira a óleo da estação

algodão doce e farturas

com chuva cheira a frescura

ao chá de tília das folhas

árvores que cheiram na sombra

 

o aroma do café

faz lembrar a bica de lá

cheira a cravo e à saudade

dos cheiros da outra margem

e ao perfume a cidade

 

vivo das novas dos sons

e dos cheiros que me chegam

de tantos momentos bons

dos cheiros que me aconchegam´...

mas no final cheira a nós 

 

Bem ali mesmo ao lado... 

“que olhas tu, pelo vidro – dizia ela -  que queres tu para além, rosto parado, endurecido; quem te fez mal, ou melhor, quem te fez assim” - dizia ela - “outros barcos e caravelas já passaram por aqui e deram nome, deixámos para trás ilhas e peninsulas, são outros os desafios de agora”

 

a Ferry Street não pára
não há feriados nem folgas
só sábados e domingos
e muitos dias de semana

dia a dia nela passam
os cansaços as pernas
dos sonhos e as férias
que os aviões voam alto

as montras reflectem
rostos e imagens do longe.
sem salas de cinema a Ferry
é uma sessão contínua

de passos e momentos
de adeus, nuvens e beijos,
um comboio lá ao fundo,

e corações e países

 

ferry Street... - dizia ela - o que me dizes... a quem o dizes!...

 

Em caves nos escondemos dos papeis que não tínhamos, aprendemos a conduzir o nosso destino na escola do dia a dia, carro, caminhão, bicicleta. E o regresso altas horas!...                                   

 

todos os dias 

o homem dos bigodes

o mesmo todos os dias

e da bata semi-branca

a mesma de todos os dias

impassível aos olhares

os mesmos de todos os dias

 

sobe e desce no buraco

em qualquer dia

de onde renasce algo novo

em qualquer dia

uma esperança em cada ida

amanhã também é dia

 

é esta sina que carrego

todos os dias

nas caixas que descarrego

todos os dias

pesadas de tantos anos

e tantos dias

 

não há sorte que mude

um só dia!...

ou que o relógio do passeio

cada dia

acerte as minhas horas

e os meus dias

 

crescem-lhe os bigodes

todos os dias

e por mais que cresçam

as horas no verão

não crescem os dias

os seus dias

 

os que passam não escondem

as sombras dos dias

mas ele não se esconde

na noite dos dias

cara fechada que esconde

o escuro do dia

 

com um sorriso responde

aos bons dias

e esconde as dores

todos os dias

nas mãos da rotina

de muitos dias

 

 

são os mesmos degraus

todos os dias

é o mesmo o salário

de outros dia

quando conta os degraus

dia após dia                           

 

e  à noite sonha

com todos os dias

no buraco de onde sai

mais um dia

morreu mais um sonho

de mais um dia

 

pela manhã quando acorda

para mais um dia

que passe veloz é o desejo

oração de cada dia

e que a noite aconchegue

o corpo do dia

 

dia a dia que passa

é mais um dia

entre a dor e a esperança

de um novo dia

desperta! força! e avança

para mais um dia

 

amanhá também é! será?

será... dia

diferente no olhar distante

do dia?

um dia novo? mais um

ou um novo dia...

 

Todos os dias, todas as noites as mesmas pedras,     

a mesma calçada, as mesmas palavras...

salpicadas aqui e além de ouro e filigranas.

as cores vivas das desfolhadas e romarias.

 

... mais adiante

nas esquinas de opinião

 

Cronistas de uma nova era

são engenheiros de ocasião,

registam para a posteridade

e para o presente as mudanças,

ao mesmo tempo que lavram no vento

as opiniões de uma solidez arrepiante.

Conhecem os camiões que passam

e descarregam os materiais

que serão a fundação

de uma nova rua,

nova nas pedras e janelas,

a mesma lenta evolução

nos passos e nas visões.

 

As esquinas com nomes de rua

são observatórios da história;

conhecedores empíricos

desta mudança gradual

testemunhas de um processo

de crescimento, comentadores de relatos

em discussões acaloradas.

 

Passam pessoas e horas,

sol ou chuva nada os demove

da fundamental missão,

indiferentes aos mirones,

ninguém os arranca do posto

onde fielmente cumprem

horário e função, de sol a sol.

vão e vêm os anos. eles ficam.

evelhecem mas não mudam.

 

Os trabalhadores disseram boa tarde,

os carros já se foram. Agora eles,

engenheiros, arquitectos, orçamentistas,

satisfeitos por mais um dia passado

sem incidentes, regressam aos seus lares,

depois de mais um extenuante dia

de análises; debruçam-se

sobre os acontecimentos suculentos

de mais um dia, elaboram relatórios,

actualizam os projectos.

 

Fazem, escrevem, guardam a história

para futuras memórias.

 

Descansam agora ao lado das esposas.

Elas sentem-se orgulhosas

dos seus maridos dedicados

constructores de opinião, peças

fundamentais deste processo de vida

de uma rua que eles têm como sua.

 

Sobre ela, 

têm uma importante palavra a dizer:

amanhã

também é dia.

 

e há mais esquinas

 

... onde se vende de tudo um pouco,

telhados, casas, paredes,

sonhos afixados nos murais,

nos mercados da saudade,

indiferentes às maçâs douradas,

uvas, melancias, há os rapazes da fruta

 

... ombro a ombro, há jogos cruzados,

de passeio para passeio,

jogos diagonais de xadrez

dos meninos peões-soldados.

 

... do ouro da terra ao ouro de lei,

de todos os quilates,

alheios aos aromas, aos odores,

lutas diárias onde imperam

os passos e as procuras.

 

As máquinas de costura já não cantam,

as vozes das costureiras se calaram,

silêncios das canções

de embalar os dedos doridos,

trabalho de peças contadas,

para alindar as festas dos outros...

 

São mudanças, são ausências,

e o renascer de novas palavras

na mesma rua de outrora.

 
 

5. Portugal das 5 quinas  

 

A outras horas, outros lugares, “outras” esquinas, quatro, cinco ou seis...

Noite fora (as obras da noite, tascas, go-go bars, a limpeza do lixo e de alguns despojos e destroços humanos, sonhos apodrecidos entre detritos acumulados durante o dia)

 

É a música que agora embala os sonhos de quantos,

descendo à realidade, procuram esquecer

a ausência, a distância, mergulhando nos copos

e nos corpos suados.

São batuques nos passeios, nas pedras,

rebolam os corpos aos ritmos de longe,

trazidos perto para este diálogo em que nem sempre

as palavras são mais importandes: olhares e corpos falam por si.

 

E logo...                                                                               

 

Vem um dia, vem o vira,

outro dia é o malhão,

o fandango, o corridinho,

são danças do coração.

 

Há guitarras, cavaquinhos,

saias que voam em balão,

dançam os pares arrumadinhos

trocam os lenços de mão.

 

Os pares rodam e as chinelas

vão ao centro e mais além

riem-se os olhos, vaidosos,

este orgulho quem não têm?

 

Vamos à festa!... euforia,

vimos da festa, cansaço,

bebe-se um copo a preceito,

amanhã também é dia. 

 

É o Dia!   

Dia de país, comunidade e povo, dia nosso, com direito a notícias, televisão na rua mais portuguesa, de tão universal no encontro das culturas. E são tantas; é tanto o linguarejar que, de diferente, a todos une. Aprendido na escola, disperso em tantas escolas.

 

Chegámos num dia de comunidade,

de comunidades, em junho ou noutro mês qualquer.

 

Era dia de escutar cantar a voz mátria, de bandeira na janela, de ler em português os anúncios do bacalhau e do pão, do continuar a sorrir ao bom dia! ao obrigado! E, de qualquer rua Portugal, fazer porto de partida para mais voltas ao mundo, cantando o fado antigo sempre novo, cruzar terras, mar e nuvens, “até onde se estende a alma de povo.”

                                                                                                                 

A meio da rua, no meio do caminho, no meio da vida...

 

- "espera aí, - dizia ela - que para trás ficou...

que ficou?”

- “aquela esquina, aquela espuma, aquela nuvem

a mesma que adiante encontrarás...

- "mas diz-me bem - insiste na pergunta -

que mais deixaste lá para trás"?

- “papeis...de embrulhar sentimentos”

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL