REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 39 | junho-julho | 2013

 
 

 

 

 

ALEXANDRE HONRADO

Uma ideia de Europa como Ideal de Elite para Portugal

                                     Alexandre Honrado, IECC-PMA
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Apenas Livros Editora  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
Arte - Livros Editora  

Revista InComunidade (Porto)

 
 
 
   
 

“Tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade”
Fernando Pessoa

 

            A torre gigante de introspecção – e o vendaval de cultura em seu redor – que o poeta Fernando Pessoa ergueu e assinou, na primeira metade do século XX, é um dos pontos de que parto para sobrevoar o território da minha residência europeia, onde sou um tão pequeno inquilino, interrogando-me se tenho, ou não tenho, o dever de me fechar em casa nesta hora de grande crise, de modo a percorrer com soluções, dos alicerces às telhas, este espaço -  para reencontrar nele um sentido de progresso da civilização e as formas capazes de um alargamento da consciência de uma humanidade ferida e desorientada. 

            Posso até começar por questionar se tenho casa, ou seja, recuar – e complicar – pondo em causa o título - Uma Ideia de Europa Como Ideal de Elite -, que melhor seria simplesmente, ser: uma ideia de Europa.

            Na verdade, nós, a termos casa, fabricámo-la de raíz, nós combinámos que o quintal do vizinho começava nos Urais, mas um geógrafo mais ortodoxo nos diria que somos uma península, um grande excrecência. Mas somos, e não é preciso ser historiador para senti-lo e para saber que séculos de História abafam o que qualquer mapa possa gritar.

            Enrolemos então o mapa. 

            Para Fernando Pessoa, Portugal é o rosto da Europa, aquele que “fita” – mas a nova interrogação é esta: para onde olhamos nós, agora que somos um corpo dorido e muito menos a face indiferente que contempla?

            Agarro-me à cultura, que é a um tempo o espelho patrimonial de uma memória colectiva de resíduos e a malha flexível que não só nos une como nos sustenta em cada desequilíbrio, em cada náusea provocada pelas quedas da História, naquilo que a História tem de mais cruel, intoxicante, incompetente e injusto. E procuro, nos novos caminhos de uma história cultural, Uma ideia de Europa como Ideal de Elite para Portugal, sabendo que nos últimos decénios essa mesma ideia foi um íman de esperança, fugidos que vínhamos do Estado Novo, que se afirmou com um ideário declaradamente anti-europeu, consubstanciado na afirmação salazarista do “orgulhosamente sós”, para se tornar num equívoco de interpretações que urge corrigir com iniciativas como a deste Congresso Internacional que se realiza no contexto das celebrações do Dia da Europa. Não deixo de ressalvar ainda que Elite é um termo sempre em sobressalto  e que as elites se definem não só pelo seu poder e pela sua influência intrínsecas, como também pela sua própria imagem, que o espelho social reflecte.

          Entretanto, ao contrário de algumas interpretações ligeiras, nós, portugueses, não aceitámos a Europa como um destino facilitador, na nossa adesão à Comunidade Económica Europeia. Isto é, não nos tornámos europeus por inocência ou inevitabilidade, por assinatura ou por pedido, porque sempre o fomos. Sempre fomos Europeus desde a antiga fundação da nacionalidade, e com um lugar cimeiro no Mundo, desde a nossa Expansão e ousadia empreendedora. 

            Depois de muito protagonismo – um povo com pouco mais de um milhão e meio de pessoas dominava o Mundo no século XVI – enfrentámos todas as decadências. Em algumas etapas, a nossa Elite procurava na Europa uma solução para Portugal.         

            O País de Garrett e de Herculano é o da requisição de um novo Portugal Europeu, por exemplo. O Portugal de Eça, também. E o de Antero e Oliveira Martins, e o de Torga e António Nobre, e o de Teixeira de Pascoais, e o de José régio e de Jorge de Sena e de tantos outros. A vontade de libertar Portugal do seu arcaísmo, era inspirada na grande Europa, o espaço imenso que, por contraste, mais fazia evidenciar as nossas imprefeições e a nossa pequenez.

            Uma página aviltante da nossa História deixou-nos meio século de costas voltadas, à Europa e ao Mundo, durante o Estado Novo em que fomos um povo adiado– e produziu em alguns de nós o fascínio enorme da vontade de sermos cidadãos de pleno direito do Velho Continente e não os seus parentes pobres. Em contrapartida, o mesmo período cavou a cicatriz de muitos outros, agrupados à sombra de um País sempre em crise que tomou posse da nossa mentalidade e postura - evidenciando em nós uma falsa imagem de nós, que chega a ser sufocante.

            Cabe-nos a gestão de uma herança pesada e fascinante: nós, portugueses, temos da civilização romana e dos valores matriciais da ideia de Europa que nela germinaram a variedade e os matizes do conceito de Europa erguidos sobre um enraizamento profundo. Isso denota-se em muitos exemplos, como na herança da poesia latina – poucos países da Europa têm tantos poetas para mostrar - , na perduração de modelos comportamentais e pedagógicos; na utilização de critérios de civilização, na visão dos socialmente desprotegidos como indivíduos e seres humanos; na tolerância religiosa; na percepção do outro e do exótico; na integração do outro...Tudo isto numa abordagem do mundo romano enquanto paradigma da União Europeia...

            Aceitar esta linha de pensamento, distancia-nos também da matriz grega anterior e dos seus valores onde o espaço Europa era mais um conjunto de micro-universos fechados do que uma extensão civilizacional comum. Curiosamente, isso distancia-nos de outros povos europeus. Repare-se no que diz George Steiner no (seu) A Ideia de Europa : a singularidade da cultura europeia encontra-se na síntese de duas culturas, a de Atenas e a de Jerusalém "Muito frequentemente, o humanismo europeu, de Erasmo a Hegel, procura diversas formas de compromisso entre ideais áticos e hebraicos." E conclui "A 'ideia de Europa' é (...) um 'conto de duas cidades'."  

             Os portugueses não frequentaram ideologicamente essas duas cidades. A sua visão da Europa é mais a de Roma do que a de Jerusalém, e bem pouco será a de Atenas e muito mais a de Ceuta ou a de Casablanca e de toda a África revelada!

             À Europa Romana e Grega, a Cristandade, para alguns entendida como a pré-História da Europa, somou novos efeitos – e ainda assim a nossa herança foi original. A denominação “história moderna” foi consagrada pelo historiador francês Cristóvão Keller que a situou cronologicamente após a “idade média”, definindo-a como o período entre a Antigüidade e a própria época do autor. É o espírito “moderno” o responsável pela lógica do eurocentrismo, que coloca a Europa da Renascença ao Iluminismo como a percussora da modernidade, responsável pelo progresso humano e científico e, depois, como o berço do mundo contemporâneo em que vivemos. Essa caracterização da Europa moderna é feita pelo historiador inglês Trevor-Hope, onde podemos observar o espírito moderno e eurocêntrico: “se considerarmos os trezentos anos de história europeia que vão de 1500 a 1800, poderemos considerá-los, de uma maneira geral, como um período de progresso”. Com o fim da Guerra dos Cem Anos ( 1340-1453 ) começa a tendência à centralização que marca o princípio da Idade Moderna, que se inicia, pode dizer-se, com um novo movimento de domínio da Europa por parte dos Habsburgos, designadamente Carlos V (1500-1558 ).

            A Europa e a ideia de progresso aparecem plasmadas, responsáveis pelo espaço geográfico e temporal onde tem início a chamada civilização contemporânea.  Do Helenismo ao Cristianismo; do Humanismo ao Iluminismo, da supremacia da “autoridade interna” face à “autoridade externa” à cultura dos direitos e aos Tratados de Roma, Nice e Lisboa que produziram novas interrogações sobre o “espírito europeu”, a nossa História é lugar à parte, oscilando entre restolhos de esperança e profundos diagnósticos negros de auto-comiseração. Aliás, o Tratado de Lisboa, de tão recente memória, «representa um passo em frente decisivo - para tirar a Europa do impasse em que se encontrava, desde a rejeição dos referendos francês e holandês, ao Tratado Constitucional. Se esse passo decisivo não fosse dado, em Lisboa, a Europa entraria numa crise institucional gravíssima, donde poderia prever-se, com razão, que resultasse o pior. A própria desagregação não seria de excluir».

            No século XX, a Europa é o território das guerras – e do relançamento. E Portugal é poupado ao esforço colossal dessa barbárie que arrasou o Continente de 1914 a 1918 e que se repetiu de 1939 a 1945, que massacrou a Bósnia, que sufocou a URSS...

            Se séculos antes, Verney, Ribeiro Sanches, Pereira de Figueiredo e Frei Manuel do Cenáculo, tinham trazido do coração da Europa reflexos de oiro e brilhos de cultura cobiçáveis, as notícias da frente de batalha traziam agora, no século XX,  a desilusão e a vontade da distância.

            «Para a matriz aqui designada do iluminismo português, canonizado com timbre oficial e estatal, contribuíram modelarmente pensadores de craveira como Luís António Verney, António Nunes Ribeiro Sanches, António Pereira de Figueiredo e Frei Manuel do Cenáculo. Os dois primeiros ao lado de Pombal, no conhecimento por dentro da Europa mais avançada, isto é, viajando, vivendo e trabalhando no coração dessa Europa pulsante de razão, arte e ciência novas, onde se destacaram países como a França, a Holanda, a Itália, a Inglaterra e a Áustria[1]».

            Para o português comum, a Europa torna-se assim muito menos uma meta utópica – e mais o espaço inexplicável e distante de sucessos surpreendentes, que vão da destruição e do massacre à glória, à reconstrução e ao progresso. Europa-mito – que somos todos nós sem o sabermos. 

            Sobretudo, a Europa Comunitária é a Europa dos Direitos do Homem.

            Os direitos do Homem, a democracia e o Estado de Direito são valores fundamentais da União Europeia. Consagrados no seu Tratado fundador, foram reforçados pela adopção de uma Carta dos Direitos Fundamentais. O respeito dos direitos do Homem é uma condição indispensável para os países que desejam aderir à União Europeia e para os países que com ela concluíram acordos comerciais ou de outra natureza.  E é bom que o seja; era o que faltava que o não fosse! É que na nossa memória colectiva pesa – há que dizê-lo também – os primeiros colonialismos, a subjugação de outros povos, o truncar de outras civilizações, o arrasar de outros templos. Foi deste continente que partiram os navios negreiros. Isso também nos une a quase todos como europeus – uma argamassa de má qualidade, com areia salgada ( de lágrimas ), porém uma argamassa. E já que queremos ser família, temos de assumir, como nas famílias, que estamos juntos em festas e enterros.

            Não haverá decerto catarse melhor para essa dor na nossa memória de europeus, do que sermos agora um baluarte na defesa dos direitos do Homem.

            E essa é a mensagem de maior orgulho para ostentarmos na nossa casa comum.

            Manuel Antunes é considerado um dos mais distintos pensadores portugueses do século XX, com percursos intelectuais e cívicos ímpares. Dirigiu a revista Brotéria entre 1965 e 1982 e aí assinou, sob o seu nome e sob dezenas de pseudónimos, textos notáveis, de uma dinâmica interdisciplinar e de uma abertura ideológica plural. Reflectiu como poucos sobre a tensão dos contrários: mudialismo versus etnocentrismo; e sobre a ideia de Nação Europeia, a que podia repensar a Europa de modo optimista. Ressalta a felicidade com que encara o espaço comum e de libertação, de um Continente capaz de tornar-se um espaço de fronteiras abertas, ou onde se constituissem fronteiras entre povos e culturas não como lugar de divisão e conflito, mas como lugares de encontro e trocas. O seu texto Europa: da comunidade económica à comunidade política  apresenta a meta da edificação de uma Nação Europeia. Uma meta que se persegue até hoje[2]...

            Na vizinhança de Eleições Europeias e na inquietação das governações nacionais em tempo de crise, o trabalho para a consciência política dos cidadãos deve ser reforçado sobre a prioridade à representatividade comunitária no espaço europeu. A influência popular devia ser o lobby efectivo, sobrepondo-se aos habitantes do hábito político, isto é, aos eternos “proprietários” do espectro político-partidário. Em cada um de nós, elementos como liberdade, igualdade e progresso científico deviam ser  parceiros quotidianos. É de um logo processo de mutação e de maturação cultural que aqui se trata. Mas cabe a cada um de nós a interpretação e a aquisição dos intrumentos para atingi-los. Que ninguém nos mude – isso cabe-nos decidir.   

            Hoje, julgando ter grande sentido crítico, limitamo-nos a emitir juízos de valor, numa vergonhosa demissão na discussão pública, que se deseja acesa e preponderante. Num mundo de globalização, a classe política parece remeter-se a uma dimensão provinciana – entenda-se : faz província o seu próprio círculo de influência - e a quase inexistente ideologia do nosso tempo pode querer significar que acabaremos por assistir à vitória da incomensurável grandeza do Homem como senhor efectivo do seu destino. No entanto, para os críticos, é a globalização a causa do actual colapso financeiro a nível mundial, das crescentes desigualdades, do comércio injusto e da insegurança geral. Para os seus defensores, ela é a solução para todos estes problemas.  Não sabemos quem tem razão.

            Todavia, impõe-se perguntar: à medida que avançamos no século XXI, se estamos em tempos de mundialização, ou de redefinição de uma nova grande fronteira, a do Velho Continente, a procurar sobreviver no mapa novo das mutações inesperadas?  Ou acabaremos por ir atrás do autoritário Bismarck quando sentenciava que Quem fala em termos de Europa está enganado?

            Recorrendo à memória e relendo o discurso de Robert Schuman, As Causas Sociais e Políticas de Angústia, datado de 7 de Setembro de 1953, proferido nos Encontros Internacionais de Genebra, bem como as respostas que o mesmo deu às interpelações que lhe foram feitas no debate público do dia seguinte, encontraremos algumas respostas. A Europa que ele pretende é uma Europa aberta e ampla, mas com um denominador comum, porque sem esse denominador comum teríamos apenas a simples justaposição de países que nada têm de comum entre si. É a comunidade cultural, a comunidade das economias, a comunidade do esforço e a comunidade do aproveitamento comum dos recursos . 

            Já dizia Abraaão Lincoln que «Para saber o que é preciso fazer e como fazê-lo, é preciso primeiro saber de onde se vem e para onde se vai». E em poucas ocasiões do nosso viver colectivo estivémos tão necessitados de saber o que é preciso fazer e como fazê-lo.

            É de memórias que falamos aqui, portanto, mesmo desejando o grande e farto espaço do futuro... Porque a memória é intensa e hoje é requerida para o entendimento do que somos... 

            Para usar palavras de Guilherme de Oliveira Martins, ele próprio um dos produtores de novos compromissos e conceitos,  «Só a memória pode preservar-nos de um futuro que esqueça a humanidade». 

            Segundo Paul Ricouer, tudo assenta no « trabalho da memória». Diria eu, um trabalho que parte do assumir da herança histórica para a percepção da transformação necessária.

            Não podemos esquecer que não podemos esquecer-nos. Não podemos perder a memória de nós! Não podemos esquecer que somos aquilo que fazemos – no todo complexo e metabiológico que criamos.

            A cultura – é cultivar e cuidar. Temos cultivado pouco; cuidado ainda menos.  As receitas tradicionais são, no fundo, insatisfatórias. Já não permitem uma resposta adequada aos desafios presentes .

            É ela, a cultura, a minha teia de Penélope. E a minha fidelidade, assediada e concorrida por tantos pretendentes, consolida-se pelo combate que travo dentro de mim. Os desafios de hoje - e as oportunidades futuras - requerem liderança com visão, competências, respeito por culturas diferentes e uma dedicação ao progresso. Através do treino, da educação e de mudanças culturais, de mentores, da investigação – e o compromisso inclui obrigatoriamente as minorias e os seus direitos e a emergente multiculturalidade que é a própria Europa a renascer – encontraremos a solução. É a cultura que opera a reforma dos povos – e não as leis. Os povos passam ao largo do «furor legislativo», desconhecem o conteúdo do Tratado, do Decreto, mas, em contrapartida, a cultura pode fazer entender o epicentro da lei: muda as mentalidades, transforma as práticas quotidianas, forja as instituições, promove valores, gera instrução, edifica, põe em movimento.  E o movimento cultural é o sustento da nossa Europa.  A Europa da livre circulação de bens, produtos, pessoas, intelectos. A Europa da Democracia – construída de dentro para forma com uma intenção cívica de progressão e não um atavismo de conformistas e de indiferença.

            Entende-se então quanto de dificuldade emerge dos conceitos: cada povo é a cultura que o alicerça. São um e outra indissociáveis. Ou, como diz Eduardo Lourenço , «Cada povo só o é por se conceber e viver justamente como destino, isto é, simbolicamente como se existisse desde sempre e tivesse consigo uma promessa de duração eterna. É essa a convicção que confere a cada povo, a cada cultura, pois ambos são indissociáveis, o que chamamos ‘identidade’[3] ».  E esta interiorização da identidade é, talvez, dos mais importantes desafios. Num mundo que se mistura, quando cada vez mais carregamos connosco as âncoras que fundeamos longe do nosso espaço geográfico, social e religioso é importante, é vital, será um dos grandes desígnios da Europa continuar a ser Europa nessa mescla. É que de continente de partidas massivas passámos a ser a terra do acolhimento. Os ventos mudaram e a diáspora é agora um filme que vemos ao contrário. Nós, tão habituados a fazer visitas, somos agora anfitriões. O ser europeu hoje, passará por, nesta nova situação, usar a mundividência que temos obrigação de ter e usá-la para aplacar histerias nacionalistas e xenófobas que nos ficam tão mal, a nós que temos essa tão decantada patina milenar.

            Eduardo Lourenço apontou o excesso de imaginário mítico e de passado que Portugal carrega sobre si. Este excesso de passado, se é uma  vantagem identitária, em alguns aspectos, é também uma ficção mítica que aprisiona o olhar sobre a sua história e o impede de olhar decididamente o presente e de projectar o futuro, enredado que fica na espera agónica de sebastiões de outro tempo que possam ressurgir para resolver a nossa crise - os problemas de um Portugal-sempre-em-crise[4].

            “Eduardo Lourenço surpreende-nos ao falar de uma Europa desencantada. A Europa era, de algum modo, vítima do seu próprio sucesso. Acabara a Guerra Fria, o império soviético desmorona-se e havia novas expectativas e novas perplexidades a ditarem a sua lei. A fragilidade europeia estava à vista, provindo quer da dificuldade interna de superar contradições antigas, quer de uma campanha externa persistente no sentido de não deixar o velho continente ser aquilo que desejaria ser”.[5]

            Nós, europeus, somos um ponto no mapa. Só o continente australiano tem uma superfície menor do que a nossa, que anda à volta dos dez milhões de quilómetros quadrados. Em relação com outros, somos um continente pouco povoado – e a envelhecer a olhos vistos.  Podemos atravessar o nosso Continente a pé – coisas de que poucos podem gabar-se. E temos a obrigação de saber arrumar um espaço assim, que parece apto às hegemonias e à resolução dos antogonismos, por ser um espaço de proximidades.

O historador Jacques Pirenne dizia que um cidadão que viajasse de Eburacum (Iorque) a Cádis sentia-se no seu País. Hoje isso torna a ser possível, de Lisboa a Varsóvia?  O Evangelho de Augusto foi substituído pelo Evangelho de Cristo, pelos idos de 380 d.C. e pelo Edicto de Tessalonica do Imperador Teodósio I – e isso fez a unidade do território. Hoje, os Estrangeiros e Fronteiras permitem a livre circulação de bens, pessoas e serviços. Mas será que o tal cidadão sentir-se-ia mesmo em casa? Não é essa, penso, a unidade que nos une. Não adianta escamotear: é brutal a nossa diversidade – meia dúzia de quilómetros percorridos e já não nos sentimos em casa. Andamos há muitos séculos a fazer este patchwork com retalhinhos diferentes na cor, na textura, no material. É a convivência dessa diferença que nos une e não a normalização. Nesse campo, talvez outros continentes tenham essa unicidade, mas o intrincado da nossa História fez com que tenhamos de buscar denominadores comuns mais elevados, mais conceptuais.

            Seguindo as palavras do próprio Jean Monnet, importa sublinhar que o projecto de 9 de Maio de 1950 não era uma mera escolha técnica, mas antes um processo de inventar formas políticas novas... As primeiras linhas da declaração redigida por Jean Monnet, comentada e lida à imprensa por Robert Schuman, Ministro dos Negócios Estrangeiros da França, dão imediatamente uma ideia da ambição da proposta: "A paz mundial não poderá ser salvaguardada sem uma criatividade à medida dos perigos que a ameaçam".

            É de uma nova paz que se trata agora, neste conturbado início do século XXI, que para não ser mais um século de falências, de ignomínia, de especulação, de corrupção, de genocídios, de guerra indiscriminada, como tantos outros, exige a urgência de novos ideiais. É de uma nova paz - que repudie os fundamentalismos, económicos, sociais, políticos, mentais, religiosos, institucionais...culturais e que devolva o Homem ao centro das acções, contrariando este tempo em que vivemos, onde a pobreza é a dos valores tradicionais do humanismo, a pobreza que escorraça o Homem de si mesmo – é nessa paz, é nisso sim, o século XXI poderá ser pioneiro.

            Em 1985, nos Encontros Internacionais de Genebra sobre a «Europa de hoje», Edgar Morin dizia que «o drama da Europa e o que torna o seu futuro tão problemático é o facto de historicamente a Europa não ter passado».

            Vou, então retomar no passado o que pode constituir a alavanca do futuro; de Fernando Pessoa, a outras inspirações: Camões, Vieira, António Sérgio, Manuel Antunes, Fernando Gil, Ortega y Gasset, Oliveira Martins, Eduardo Lourenço – até Adorno, Habermas, Kraus, Marcuse..., e a George Steiner e àqueles que, na diáspora, fizeram a Europa em todos os locais. E que Europa? O continente real ou o imaginário de identidades múltiplas? A que teve Sócrates e a filosofia? A Europa grega ou a romana?   A Eslava? A Ibérica? A Europa positivista ou a da Teoria Crítica? A dos Economistas ou a dos Pensadores? A de Shakespeare, Baudelaire, Rosseau, Marx, Freud, Marcuse, ou da massa anónima? A Europe des Patries, a «Europa do Atlântico aos Urais» do general Charles de Gaulle? A que teve Auschwitz, a Bósnia e o luto? A Europa Islâmica, Judaica, Cristã, Agnóstica, Ateia, Multi-sensível ou a Europa desorientada, a Europa dos descaminhos, do desemprego, da corrupção e da insensibilidade? Como afirmar  Uma ideia de Europa como Ideal de Elite para Portugal”, tal como no passado pensei encontrá-la nalguns dos meus mais dilectos pensadores?

            A deusa Europa, filha de Agenor, rei da Fenícia, está idosa mas solteira – e quer um novo sentido de ser, até porque a esperança de vida é maior nos nossos dias e ela trabalhou de mais, exige o privilégio simples da dignidade. Até porque a Europa é mais do que uma “senhora” idosa, é uma senhora culta, e  a cultura  “ mais do que erudição e eloquência, significa cortesia e respeito”. 

            A qualidade da História identifica paradigmas e exemplos – e a historiografia trata duma criação da memória colectiva, que se traduz numa complexa diversidade, confinada à temporalidade, à factividade e à própria memorialidade. Dos baús, retiro as palavras de Churchill , ditas no cerne da nova construção que nos trouxe aqui. Devemos proclamar a missão e concepção de uma Europa unida, cujo conceito moral granjeará o respeito e a gratidão da humanidade e cujo poder físico será tal que ninguém ousará molestar o seu tranquilo percurso (...) Espero ver uma Europa em que homens e mulheres de todos os países darão a mesma importância ao facto de serem europeus como ao facto de pertencerem ao seu torrão natal e em que para toda a parte que forem neste vasto domínio possam pensar verdadeiramente: "Aqui, estou em minha casa". Sem querer corrigir Churchill, eu diria antes que espero ver uma Europa em que homens e mulheres de todos os países darão a mesma importância ao facto de serem europeus como ao facto de serem seres humanos e que ecologicamente interiorizem o planeta como uma – a única – casa comum. 

            Estará esta ideia de casa europeia, produzida por Churchill, muito distante da casa do espírito pessoana? Não pretendem ambos o mesmo progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade?

            Ocorre evocar Antonio Sérgio:

            "Não sei se a saudade nos libertará desta lógica da História: mas creio que não. E visto que não temos entre nós uma disciplina tradicional do trabalho, uma educação, ou como lhe chamar, vivemos e respiramos uma atmosfera de inércia parasitária, é esse o elemento que havemos de pedir ao estrangeiro: os métodos, a técnica, a educação para a produção crematística ".

            Talvez em nossos dias este conceito aristotélico - Crematística - que advém das idéias de khréma e atos - busca incessante da produção e do açambarcamento das riquezas por prazer, se torne de impactante actualidade! A prática crematística consiste em colocar a procura da maximização da rentabilidade financeira (acumulação de numerário) antes de qualquer outra coisa, em detrimento, se necessário, dos seres humanos e do meio-ambiente. É da natureza da prática crematística recorrer a diversas estratégias de acção nocivas, como especulação financeira, degradação sócio-ambiental etc, sem preocupação com as consequências.

            A Ideia de Europa deve sublinhar, exatamente, que se preocupa com as consequências – e identifica bem as causas. Que deve estabilizar-se a partir da plataforma segura da Justiça, para partir das adversidades para uma nova felicidade disposta na casa comum dos povos em espaço antropológico convergente. Um futuro, como se estivéssemos todos reunidos na mesma esplanada em tarde de sol.

            Aliás...

           "A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo (…). Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da 'Ideia de Europa'". É assim que George Steiner escreve em A Ideia de Europa, livro que recupera o texto - e o título - de uma palestra que o escritor proferiu no Nexus Institut de Amesterdão. As palavras trazem-nos à memória tardes de estudante em esplanadas de vida. Mas A Ideia de Europa tornou-se com a crise a sombra negra a pairar sobre esplanadas vazias, por não termos o que beber, o que comer, o que pensar...

            Como disse Rob Riemen, Presidente do mesmo Nexus Institute, tudo se centra “na questão de saber se a Europa continua, ou não, a ser uma boa ideia e qual é realmente a importância e a relevância politica do ideal europeu de civilização”. Fernando Gil, argumentaria: «As controvérsias mais importantes e mais interessantes são, em geral, as mais indecidíveis e, sobretudo, aquelas em que - antes ainda das divergências sobre as melhores soluções - os objectos não são os mesmos para todos»[6].

            O ex-presidente português Mário Soares, em entrevista ao jornal El País, em Março de 2009, dizia que sem uma integração europeia conduzida seriamente (...) a UE tende a desagregar-se. Mário Soares frisava então que o restabelecimento da confiança da população «é fundamental» para sair da crise e advertia que isso não será possível «se os grandes responsáveis pelos erros e pelas fraudes continuarem impunes e se os responsáveis políticos não mudarem de ideias e de comportamentos».

            Impõe-se-me o raciocínio: só há explicação na História; no instante passado. Já que o instante presente é tão ocasional que impede a crítica – e o futuro é um investimento que não podemos garantir em absoluto.  Só António Vieira – entre muitos que aqui ficam citados - falava de milagre e profecia. Em contrapartida, fazia-o concebendo uma vontade legitimadora, capaz de contrariar o fatalismo e a decadência. Creio que é no passado e no presente que encontraremos as respostas aos novos desafios. “ Da Construção histórica da “Ideia de Europa” ao voluntarismo construtivista da “Ideia Europeia”, o caminho tem sido cheio de obstáculos...

            Os historiadores têm uma tarefa cívica muito importante que é lutar pela memória das memórias.

            É essa, em suma, a reflexão. “Não sei o que amanhã trará” – mas é hoje que a vida nos reclama. Regresso a casa, ficando em casa. É o segredo de ser Europeu.

 
 

[1] FRANCO, José Eduardo e RITA, Annabela, O mito do Marquês de Pombal: A mitificação do Primeiro-Ministro de D. José I pela Maçonaria, Lisboa, Prefácio Editora, 2004. 

[2] ABREU, Luís Machado de, e FRANCO, José Eduardo, Padre Manuel Antunes, S.J. 1918-1985,Um mestre do pensamento português e europeu, Porto,  Estratégias Criativas, , 2008.

[3] LOURENÇO, Eduardo, Portugal como Destino, seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa, Gradiva, 1999

[4] FRANCO, José Eduardo, O mito e o espelho:A ideia de Europa em Eduardo Lourenço, versão pdf disponível na Internet em ww.eduardolourenco.com/6_oradores/oradores_PDF/Jose_Eduardo_Franco.pdf

[5] MARTINS, Guilherme d’Oliveira, Portugal: Identidade e Diferença, Lisboa, Gradiva, 2007. 

[6] in Mimesis e Negação

 
 

Alexandre Honrado (Lisboa, 1960). Jornalista, escritor, professor e investigador (na área da História, membro do CLEPUL -Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias e do IECC-PMA (Instituto Europeu de Ciência da Cultura-Padre Manuel Antunes). Tem quase uma centena de livros publicados, alguns premiados e traduzidos, a maior parte dos quais para a infância e para a juventude. Tem escrito, encenado, produzido e realizado regularmente teatro, televisão e cinema. Como investigador trabalha atualmente no âmbito da História das Religiões.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL