REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 34 | dezembro | 2012

 
 

 

 

 

ARSÉNIO MOTA

Um relance ao céu

Jornalista e escritor. Nasceu em 1930 (abril) em Oliveira do Bairro e vive no Porto, Portugal, desde 1963. Começou a publicar em 1955 (poemas sob pseudónimo); sua bibliografia, já extensa, inclui volumes de crónicas, ficções e estudos diversos, além de traduções, organização de antologias, etc. É também autor, desde 1985, de contos para crianças. Em 2005 saiu "50 anos de escrita", livro de autores vários organizado por Serafim Ferreira. Mantem desde 2008 o blogue que tem o seu nome. Email: arseniomota@gmail.com
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Apenas Livros Editora  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
Arte - Livros Editora  

Revista InComunidade (Porto)

 
 
 
 

             Não foi apenas a astronomia que, como se sabe, nasceu do que foi a antiga astrologia. Também dessa origem comum saíram alguns dos elementos fundamentais da religião e tão marcantes e perenes são esses elementos que ainda podemos encontrá-los visíveis nas três principais religiões monoteístas do mundo nascidas do berço comum. Vamos recordá-los num breve relance.

            Para todos os efeitos, a humanidade sempre se afligiu com a questão essencial que desde o início teve de enfrentar ao descobrir-se no seio da natureza: - de onde veio, o que estaria a fazer aqui, para onde iria em seguida - em resumo, o que era o homem. Foi preciso procurar explicações, articular respostas e, naturalmente, a humanidade demorou-se a olhar para o céu que via cósmico (isto é, perfeito, belíssimo), grandioso, infinito.

            Acreditou, à falta de melhor explicação, que teria vindo de lá. Não se enganaram muito nesse poético imaginar os homens primitivos, sabemo-lo hoje, quando vozes credíveis, não menos poéticas, garantem que fomos feitos da matéria das estrelas. A vida tal como a conhecemos aqui pode germinar a partir de uma simples bactéria das que circulam, alojadas nas pedras, pelo espaço interestelar. E se os nossos antepassados sonharam, de pálpebras escancaradas no escuro fundo das órbitas, que para lá iriam voltar talvez, um dia, apenas se anteciparam um monte de séculos aos astronautas do futuro.

            Não há dúvida, se a humanidade pertence à Terra-berço, o terceiro planeta que gira em torno do Sol pertence ao céu, espaço que vemos azul e que abriga este e milhares de milhões de outros sóis integrados, lá longe, nas galáxias da Via Láctea (derrame de leite criador, útero materno), e que tudo isso, enfim, pertence ao Universo. O sentimento religioso terá nascido nos homens primitivos de olhos fitos na perfeição da abóbada celeste. A intuição devia sugerir-lho: eles teriam de perceber aquela grandeza incomensurável para chegar a compreender um pouco a si próprios na sua origem e destino.

            O céu continuou a brilhar aos olhos das gerações em sucessão. O fogo que o primeiro xamã dominou pode ter sido tomado por lume roubado às estrelas. A luz em geral, viesse da irradiação solar, do fogo ou das estrelas, ganhou naturalmente todo o significado (pois fazia existir as coisas na medida em que as tornava visíveis). Deste modo, ao sentimento “religioso” latente da humanidade ficou aderida uma porção de vocábulos ligados ao céu e à luz. Alguns deles são bastante expressivos.

            “Ir para o céu”, num sentido porventura ainda não teológico, poderia significar, para a intuição de homens primitivos, “voltar ao ponto de origem”. Quem partia deixava concluída a sua passagem pela Terra. Sem perder nada do seu mistério, a morte seria deste modo interpretada como um regresso mítico à forma inicial, transformada à vista pelo enigma do nascimento.

            A evolução metonímica alargou também o campo semântico do que era designado como celeste no tempo remoto da religião natural. Celeste (ou o adjetivo derivado, celestial) passou a designar não somente o que era “do céu”, do firmamento, pois se imbuiu de um sentido hermético, de carácter teológico. Esse céu ganhou maiúscula distintiva. Ordens sacras, de instituição divina, adjetivaram-se como “celestiais”.

            Alusivos ao espaço sideral, portanto ao céu, temos no dicionário vocábulos como sideração (ato ou efeito de siderar; suposta influência dos astros na vida ou na saúde de alguém; horóscopo), siderado (espantado; atónito), siderar (pôr perplexo, atónito; “sofrer as influências dos astros”) e sidério (celeste).

            De facto, os antigos contemplaram longamente o manto estrelado que os cobria na obscuridade noturna. Podemos mesmo imaginá-los, algures no Médio Oriente, maravilhados e atentos aos movimentos da Lua e de toda a incrível máquina celeste, sem dúvida a procurar entendê-los para avaliar até que ponto tais mudanças poderiam atingi-los. Quando pretendiam sondar o futuro, punham-se a con-siderar, ou seja, ficavam com o espaço sideral, observando-o a fim de tomarem decisões mais prudentes e refletidas. Os horóscopos dos antigos tomavam a posição dos astros no céu como base para vaticinarem a sorte de cada pessoa.

            Assim virados para o céu - de onde se derrama a luz do sol, a chuva, etc. - os antigos acabaram em adoração. Vestígio de culto antigo, herdado do paganismo, é um dos tantos nomes com que ficou a designar-se o demónio: Lucifer, ou luciferário, é o portador de luz, referência à estrela da manhã, ou seja, a Vénus, que antecipa o dealbar. Há notícia de inúmeros cultos solares.

            A auréola dourada que costuma iluminar a cabeça dos santos na arte sacra simboliza por certo uma luz sagrada colhida do espaço celeste, numa espécie de legitimação de algo com origem longínqua, transcendental, a querer dizer que os santos foram bafejados por um sinal vindo de longe. A abóbada dos nichos da devoção popular é frequentemente pintada de azul e decorada com estrelas purpurinas. O hábito da tonsura, que perdurou até meados do século XX, distinguia os clérigos como ósculo sagrado recebido do alto. O fenómeno das aparições sobrenaturais, feitas de luz etérea, de que têm nascido casos de adoração em determinados sítios e épocas, relaciona-se em parte, igualmente, com o sentimento humano (antes intuição), de que, estando nós aqui, podemos manter-nos em comunicação com a fonte primigénia da vida localizada nos astros. O que traz à memória que o termo “comunicação” evoca o derivado “comunhão”.

            A religião dos antigos apontava diretamente para o céu, inspirando-se nos dados empíricos recolhidos da astrologia então possível. No seu interior pulsava com força a perceção (instintiva?) que lhes arregalava os olhos perante a imensidade cósmica. A religiosidade primitiva, deste modo, terá tido a forma de uma conceptualização mais ou menos tosca através da qual o indivíduo, inserido numa interdependência grupal, se sentiria religado à sua espécie, religando esta à natureza e, simultaneamente, à evidência cósmica. A “religião” servia o processo complexo de uma religação do homem atomizado ao mundo em geral. E terá sido este mesmo o significado remoto que o termo assumiu.

            Numa base assim espontânea, as diversas crenças foram sendo elaboradas e organizadas. A busca tateante da maravilhosa fonte da vida, decerto remota porque secreta, logo transcendente, manifestou-se de variadas formas no culto da mulher geratriz, fecunda como a terra. Mulher e terra produtiva careciam por igual de fecundação.

Aquando da emergência do culto cristão oficializado no começo da presente era, a Cidade ganhou todo o poder sobre o Campo. Os cultos que neste vigoravam foram sendo combatidos, eliminados ou assimilados por um processo árduo e conflituoso em que o caldo cultural onde se gerava o cristianismo teve força para limpar o que podia expurgar. Definhou a variedade de cultos. Os poderes político e religioso (imperiais) arredaram definitivamente a concorrência pela abolição do paganismo – isto é, do “ruralismo”, digamos assim, no sentido (condenatório por ditame da Cidade) de cultos camponeses na medida em que “pagão”, etimologicamente, equivalia a “aldeão”.

            A evolução religiosa posterior concorreu em geral para afastar o céu, antes próximo, do espaço humano, embora a existência de cada indivíduo tenha continuado a decorrer no plano situado exatamente entre a cobertura cósmica e a terra chã. Ficou banida a astrologia e acusada de superstição a credulidade vulgar que recebia os oráculos. A Igreja tomou para si o exclusivo da palavra profética.

            A expansão das cidades multiplicou os órgãos de controlo dos poderes religioso e civil, reforçados em influência e eficácia através do mundo a encolher-se. Pouco a pouco, os homens deixaram de olhar para o céu (exceto para se orientarem), que entretanto se tornou no Céu, categoria teológica com valência própria. O natural cedeu o lugar ao sobrenatural. As igrejas prometiam o Céu no Além.

            Foi o ponto da viragem crucial, concretizada no termo de uma longa evolução. Teve consequências tremendas. O acesso da pessoa ao céu, quer dizer, à experiência do sentido da pertença individual ao transcendente – por degraus sucessivos: à comunidade, à nação, à humanidade, à natureza e à evidência cósmica – passou a ter acesso indireto, através de mediação.

            Tudo o que na linguagem quotidiana antes aludia ao espaço sideral, à maravilha celeste original, perdeu a conotação primeira para servir uma linguagem simbólica que se oferecia como substitutiva e melhorada. No entanto, os símbolos funcionam como representações de algo que, nessas condições, à força de repetição, se torna misterioso e de significação irredutível, logo inesgotável. Depois é fácil levar a multidão a olhar para o dedo de quem, falando, lhe aponta o Céu metaforizado.

            Se a transformação em símbolos dos vocábulos ligados ao céu pretendeu aproximar a cobertura sideral dos humanos, a intenção falhou redondamente. A dimensão humana vivida desceu para a escala das ambições mesquinhas ao fixarem-se as atenções nas lutas individuais pela sobrevivência ou pela glória, deixando os astros, cada vez mais, como matéria de estudo especializado dos astrónomos. Por este caminho, perdeu-se a ligação, não apenas visual, ao céu, que ficou escondido pelo esplendor citadino das luzes artificiais. O céu deixou definitivamente de ser motivo de con-sideração que não fosse a de alguém desejoso de prever o tempo, bom ou mau.

            Perdeu-se também (e isso será o pior) a perspetiva que o céu dava, da finitude humana. A transitoriedade da existência, antes sensível, apagou-se, levando consigo o sentimento da pertença de cada um à transcendência que é a matriz da vida em palpitação infinita nos conglomerados astrais. Atomizado, o indivíduo quis-se unívoco e absolutizado, princípio e fim; a religião identificou-se com uma tradição e não mais com uma efetiva re-ligação.

            Em resultado, a prática religiosa tornou-se formal, exteriorizada numa série de comportamentos e de preceitos percorridos em circuito fechado até não mais se distinguir na multidão, por exemplo, quem seja de facto muito religioso de quem o seja pouco, ou nada. Sem ligação ao céu e à natureza próxima, os indivíduos deixaram de ser gregários; perderam a noção da relatividade das suas frágeis existências e chega-se ao ponto de se tornar incompreensível uma velha história: a do médico que aconselha o doente, na idade madura, a desistir de comer batatas fritas. Para o doente, o seu estômago queixoso tinha somente a idade dele próprio; para o médico, porém, o órgão era velho, tinha toda a imensa idade da espécie. A novidade das batatas fritas iniciara-se ali havia poucos segundos.

            Do que antecede conclui-se claramente que a religião tal como veio a ser praticada pela doutrinação eclesiástica soube colocar-se, pouco a pouco, no lugar antes ocupado pela religião natural. Com predomínio e autoridade crescentes, a Igreja canalizou em direção conveniente a inquietude visceral que atravessava a espécie (e fazia nascer a “procura de Deus”), de modo que avultou o seu poder efetivo e enfraqueceu a religiosidade natural, transformando aquela inquietude, por fim, numa prática ritual recheada de referências simbólicas e baseada na “fé”. Não servindo mais para “religar”, isto é, para cumprir o motivo essencial da religião natural - conseguir a integração da espécie humana no sistema de vida cósmica de que proveio e de que faz parte para todos os efeitos -, a religião vencedora concorreu para distanciar cada homem da natureza, proclamada como criação divina, e cada homem dos outros homens, de modo que mergulharam na voragem crescente das paixões do Eu.

            A clerezia atiçou esta evolução gradual ao longo do tempo ao ponto de se investir em exclusivo do papel sagrado que usurpou ao ocupar o lugar da religião anterior, politeísmo espontâneo e canhestro, sem dúvida, mas vivamente sintonizado com a ordem natural das coisas. Dir-se-ia, deste modo, que a clerezia episcopal, ao implantar-se enquanto hierarquia sólida e coesa, fomentou no homem uma tendência para o individualismo e uma diluição da consciência da finitude da existência rematada pela aspiração insaciável às glórias do mundo. A palavra viva, se não morreu na viragem, tornou-se mero recitativo das horas solenes.

            Evidentemente, o máximo apoio dos dados da filologia é útil para podermos avaliar um pouco a extensão da viragem operada do natural para o místico. Neste sentido, ajuda decisivamente a informação que se tenha disponível acerca da evolução semântica de vocábulos relacionados com a tradição religiosa desde os seus primeiros vagidos. Estas linhas já apontam alguns, mas outros, também expressivos, serão alma (anima, respiração), anjo (mensageiro), evangelho (recompensa, ação de graças ou sacrifício oferecido por uma boa notícia), liturgia (serviço religioso popular), hóstia (vítima expiatória), breve amostra da carga simbólica que a teologia neles acumulou.

            Poderá questionar-se, por fim, perante a provável reação de estranheza causada pela presente abordagem, que matéria assim clássica e compartilhada ainda possa constituir para tantas pessoas uma notável novidade. Todavia, os clérigos, incansáveis, insistem na recitação. Quer dizer, não estão para dar lições de filologia de graça e quem sabe e poderia dar explicações cala-se para não estragar a santa liturgia da missa. Logo, vê-se que quem isto escreve não é clérigo nem filólogo especializado, apenas um espírito curioso e indagador. 

   
 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL