REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 33 | novembro | 2012

 
 

 

 

 

CRISTINO CORTES

Trabalhos de Verão

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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Eis o que depois de muito pensar, oh meus amigos, me parece mais próprio do espírito das férias, decerto predominante nesta altura do calendário, logo a seguir ao meio do ano. Tenho para comigo que um poeta __ tal como um padre ou um bombeiro, um polícia ou um jornalista, isto é, profissões caracterizadas por um elevado grau de voluntarismo __ jamais deixa de estar ao serviço: pode estar mais ou menos activo, mais aéreo ou ruminativo, mas a predisposição para a poesia, o caso que nos interessa,  jamais o abandona. E uma vez poeta é poeta sempre __ mesmo nos períodos de mais prolongada abstenção, mesmo nas temporadas de mais escassa inspiração. 

Mas, sendo embora assim as coisas, forçoso é reconhecer que o poeta não passa incólume pela diminuição do ritmo da sociedade em que se insere. Quer queira quer não, os editores estão de férias e não lhe pedem coisas; os jornais e as revistas com que se relaciona remetem-no, sempre, para Setembro __ «ah, agora só a partir de Setembro, ligue-me nessa altura»; a maior parte dos seus amigos está a banhos... E o bardo fica forçosamente mais livre. Livre para os seus trabalhos de Verão, evidentemente. 

Falo da minha experiência,  mas se aqui a reporto é por me parecer que na mesma poderá haver alguma representatividade mais alargada. A correspondência, por exemplo. Em que outra altura do ano é que eu posso arrumar aqueles papéis, até então a granel numa gaveta onde os vou acumulando, resolver o problema do espaço, separar os que morreram daqueles que continuam vivos, enfim... gerir um pouco toda aquela papelada dotada de uma tão pertinaz tendência para se desenvolver e multiplicar?!  

E não há nada a fazer, oh meus amigos: se, há uns anos atrás, os correspondentes até à letra D, por exemplo, cabiam todos num único dossier , há dois anos tive de o dividir e estou a ver que não será por muito tempo que poderei evitar a repetição de semelhante tarefa ... É sempre assim, e sempre no mesmo sentido, sempre da esquerda para a direita. Mas é este exercício que às vezes me permite descobrir as faltas lamentáveis em que incorro e, por essa via, me possibilita também, não só remediá-las como evitar a sua repetição em futuro próximo. 

Semelhante é, ainda, a reavaliação da actividade poética a que, lá de tempos a tempos, também gosto de proceder. Faço-o, quase sempre, após a publicação de um novo livro __ o qual, por estranho que pareça, permite ler numa óptica completamente diversa o material existente. Há coisas que, por repetidas, se não justificam; outras ficaram aquém de um nível qualitativo facilmente (auto)reconhecível; não convém contemporizar com razões sentimentais que, em outras ocasiões, impediram que alguns textos vissem concretizado o seu natural destino: a fogueira. ( E só o não é em sentido real porque, como digo, estamos no Verão. ) 

Também neste campo sou pressionado pelo espaço que ( não ) tenho: quando o dossier normal começa a ficar muito cheio é sinal de que tenho de tomar medidas... Ora eu não pretendo legar à posteridade nem uma sombra do que o mais prolífico de todos os nossos poetas lhe deixou __ e deixou-lhe, também, uma grande carga de trabalhos... e para tantos é certo,  uma autêntica mina. ( É a famosa arca do Pessoa, claro. ) Quer isto dizer que para uns poemas entrarem é preciso que outros, previamente, saiam. Tenho, talvez, a ilusão de, que assim procedendo, a qualidade média, qual garrafeira seleccionada, se vai apurando. ( Quando morrer estará no ponto. Mas então também já a não poderia apurar mais. ) 

É um trabalho muito agradável, esse, hesitando entre se rasgo já ou se deixo para mais tarde... Às vezes há associações, misturas, relações inesperadas, um poema de há vinte anos pode encontrar eco, ser substituído ou integrar-se numa composição mais recente. Uma experiência mais antiga, aparentemente fechada, depara-se, quem diria, com inusitadas possibilidades de desenvolvimento. Enfim, porventura não deveria entrar em tantos pormenores, mas é facto que no Verão também o poeta relaxa e descansa um pouco... ( Há até quem diga que o próprio Homero dava as suas cochiladas. ) 

É ainda no início do Verão que ocorre uma coisa agradável, ao menos aqui em Lisboa. Refiro-me à Feira do Livro __ e sobretudo ao seu rescaldo. Uma pessoa chega a casa e faz o estendal das aquisições: para, de alguma forma, fazer um juízo de como a coisa correu, qual balanço entre o sonho e a realidade; e  também para que os outros elementos do agregado familiar se possam admirar, ou felicitar, com o nosso génio aquisitivo.  

Um ano houve em que me dei ao luxo de comprar uma nova edição de Os Lusíadas, e nada barata. Volume de grande formato, parecia um daqueles livros de igreja, uma Bíblia ou um Flos Santorum, aquilo era quase um missal da autêntica religião que é o patriotismo. ( Por pouco me não cabia na adequada prateleira, mas à tangente... coube. ) A tribo familiar a olhar-me de lado, porventura pondo em causa a minha sanidade mental... «Mas o texto não é o mesmo?», perguntam-me os meus filhos. E eu tenho o gosto de lhes explicar algumas coisas. 

Seguir-se-á, normalmente num fim de semana seguinte, a magna tarefa de arrumação desses livros. Sim, porque esse conjunto, o das obras que aguardam leitura, é também uma secção da biblioteca com sérios problemas de espaço. No entanto, reconheçamo-lo, um tanto sui generis: ao passo que as outras secções todas crescem, com maior ou menor rapidez, esta tem tendência para ir diminuindo ao longo do ano. É nessa fase que descobrimos os livros que, repetidamente, de novo adquirimos __ por termos esquecido que já os tínhamos comprado em certames anteriores... mas ainda os não havíamos lido. 

A Feira do Livro, manda a verdade que se diga, já não tem o fascínio de outros tempos. Por um lado não tem mais novidades, e estas nem nas livrarias resistem muito, tamanho é o ritmo de publicação de novos títulos que caracteriza o nosso tempo! Pelo contrário a impressão que prevalece é a repetição de vários livros, sempre os mais badalados, em muitos e vários pavilhões... Nem sequer o aspecto económico é particularmente atraente: ao longo de todo o ano abundam na cidade os saldos, os salões, as promoções e quejandas realizações! Tenho para comigo que este modelo de Feira do Livro, à semelhança, por forçado exemplo, da revista à portuguesa no Parque Mayer, está condenado pela evolução do tempo e da sociedade. Ou encontra outro paradigma, como agora se diz, ou inevitavelmente morre, é tudo uma questão de tempo. 

Mas enquanto o pau vai e vem folgam as costas, é sabedoria do povo, e enquanto ela existir eu não deixarei de a visitar. Fundamentalmente motivam-me duas realidades: pesquisar nos saldos, de livros a um euro, dois euros, pague dois e leve três, coisas assim __ e é por isso que gosto de o fazer no último dia, o do encerramento, quando os feirantes não querem voltar a carregar o material para casa e baixam ainda mais os preços... Por essa razão, talvez, ou também, é nas bancas dos alfarrabistas que progressivamente vou perdendo a maior parte do meu tempo. E depois, porque não dizê-lo?, para encontrar outras pessoas. Há mais malucos como eu e, sem combinarmos nada, sempre se encontra um ou outro, se conversa, se sabem novidades.  

Um pouco derivada de todas estas tarefas é a própria organização da livraria__ aqui com a «agravante» de que nada se deita fora, e como tal é muito mais premente a questão do espaço. Uma regra geral, e quase única: poesia super omnia. Colecções vêm da cave e para lá regressam, improviso sítios para livros aguardando leitura, mas tudo é um pouco provisório, e quase inútil: ano após ano os poetas expulsam outros géneros; já retirei os vates estrangeiros e estou a ver que os livros colectivos não resistirão muito mais tempo. E, mesmo assim, eu já não vejo muitos espaços em branco para aquela estantaria poder respirar. ( É essencial essa respiração, oh meus amigos, entre outras coisas os livros também precisam de se espreguiçar de vez em quando... Bem o tenho observado, sobretudo de noite. ) Podem crer que é essa a única perspectiva porque, às vezes, penso como seria bom que os meus filhos saíssem de casa: ocupar-lhes-ia  o mobiliário logo a seguir, ah isso é tão certo como dois e dois serem quatro. 

É ainda o Verão a altura ideal para fazer determinadas leituras. Durante a maior parte do ano há muitas coisas que temos de conhecer por quase obrigação: são os nossos amigos que nos oferecem os seus livros e nós temos de lhes dizer qualquer coisa; são intervenções públicas que temos de fazer; são as nossas próprias colaborações; há aqueles que falaram de nós e a quem temos de agradecer... e retribuir.  

Completamente diferente, com uma muito maior dose de liberdade e gosto pessoal, é o leque dos nossos ócios e erudições pessoais: no ano passado foi a Ilíada __ sob o pretexto da nova tradução do Frederico Lourenço __ e este ano será o Fausto (do qual tenho duas edições e há que comparar). Se o tempo ajudar talvez me abalance a reler o D. Quixote, não preciso de qualquer motivação específica para tal, mas do próximo ano decerto que não passará, assim nos não falte o Verão. 

E com tudo isto, oh meus amigos, é este um tempo de pensar o futuro, de ver o que a seguir poderemos fazer... Não é tempo perdido, não. O poeta, como disse, não é imune ao ritmo mais geral da sociedade __ e, de alguma forma, o adequa ao próprio equilíbrio. Eu férias nem sei o que são __ e só desta forma me interessa este tempo de repouso e pousio... Quem vai ao mar prepara-se em terra, e eu tenho para comigo que para produzir no Inverno é preciso repousar no Verão. Eis, pois, como eu gosto do Verão __ destes trabalhos de Verão, quero eu dizer. Experimentem e verão.

 

Cristino Cortes

 

 

Cristino Cortes nasceu em Fiães (1953), uma pequena aldeia do concelho de Trancoso. Licenciado em Economia, reside em Lisboa desde 1971. A sua actividade profissional decorreu, quase toda, no Ministério da Cultura. Fundamentalmente poeta, publicou 10 livros desde 1985.Havendo de destacar alguns citaremos: Ciclo do Amanhecer, por ter sido o primeiro; 33 Sonetos de Amor e Circunstância, em 1987, por ter tido uma segunda edição em 1993; Poemas de Amor e Melodia, em 1999, pela mesma razão, dez anos mais tarde, em versão aumentada e definitiva; O Livro do Pai, em 2001, por ter sido traduzido em francês ( 2006 ) e em castelhano ( 2011 ), tendo tido uma segunda edição bilingue no primeiro caso; Sonetos (In)temporais, em 2004, por ser uma edição exclusivamente para o Brasil; e Música de Viagem, em 2008, por ter sido o último.
Tem, também, versado outras modalidades ( o conto, a crónica, o artigo de opinião, a página de diário ) em vários jornais e revistas, nacionais e estrangeiras, tendo reunido alguns desses trabalhos em quatro livros. Para a Universitária Editora organizou, ainda, duas antologias. Apresentou publicamente livros e proferiu conferências. A sua obra tem tido algum eco em países estrangeiros ( Espanha e França, sobretudo, mas ultimamente também na Alemanha, na Bélgica e no Brasil ) e ele próprio, tem traduzido e publicado poemas em francês. Os seus livros tiveram apresentações públicas em diversos locais do País. Está representado em várias antologias e livros colectivos. A sua obra tem sido objecto de alguma atenção crítica destacando-se, em forma de livro, José Fernando Tavares, Júlio Conrado e Isabel Gouveia.

 

 

 

 

© Maria Estela Guedes
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