REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 32 | outubro | 2012

 
 

 

 

 

HERMINIA LIMA

«De olhos entreabertos», de Aíla Sampaio, um cantar feito de voos de pássaros e partidas de trens

Hermínia Lima (Brasil). Professora da UNIFOR              
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Quando faço as minhas leituras, gosto sempre de alternar um livro em prosa com um livro em versos. Na tarde da última sexta-feira, eu havia concluído a leitura de um romance policial. Satisfeito pela dose de boa prosa, meu cérebro pedia, então, uma leitura poética. Visitei, na minha estante, a prateleira que se destina à morada dos vates. E, lá, entre vários títulos à espera da minha leitura (essa é uma angústia de todo leitor: nunca se extingue a lista de espera. Só cresce!), deparo-me com o livro de poemas De olhos entreabertos da escritora cearense Aíla Sampaio, recentemente adquirido na ocasião do lançamento. Ele olhou para mim, eu olhei para ele. Outros livros se ofereciam... Mas senti, nem sei por que, que aquele era o momento de ler Aíla. Pedi desculpas às obras que não foram escolhidas e mergulhei, de olhos bem abertos, nos “olhos entreabertos” de Aíla. Tomei o cuidado de não ler, antes, nenhuma apreciação crítica. Queria sentir a obra sem estar impregnada por outras opiniões. Assim o fiz. Para descrever a sensação do primeiro contato, recorro a uma expressão que sei ser lugar comum, mesmo assim, uso-a aqui, porque se torna oportuna: li de um fôlego só! E quase fiquei sem fôlego de tanto prazer poético! 

A satisfação foi tanta que resolvi registrar por escrito as minhas impressões sobre o livro que muito me encantou. E começo por dizer que o tema do livro de Aíla é o maior e mais universal de todos: o amor. Além de maior e mais universal é ainda o mais explorado, o que torna a tarefa de cantá-lo ainda mais difícil. Mas, apesar dos milhões de poemas sobre o amor, Aíla nos oferta mais uma prova das finitas possibilidades de uso da palavra poética, num exemplo de inesgotabilidade temática e semântica.  

Os poemas de Aíla não se apresentam ao acaso, eles estão ordenados em cinco blocos que nos contam uma história de amor. Uma história que começa, desenvolve-se e se conclui como se fosse um romance em prosa, mas com capítulos revestidos com as vestes mágicas das metáforas. O mais interessante é que qualquer o leitor, com o mínimo de experiência de vida, provavelmente, irá se identificar com o eu lírico que fala nos versos. Ora a identificação virá pela alegria, ora pela tristeza, ora pelo começo, ora pelo final, ora pela presença, ora pela ausência, mas virá sempre.  Quem não tem uma história de amor para lembrar?  Os versos nos levam para além de uma história de amor, porque a autora, enquanto nos conta e canta o amor, oferece-nos uma densa e profunda reflexão existencial em torno do tema. É o Amor-Eros, com todas as suas pulsações e cores, a nos fazer feliz. E o Amor-Tânatos com todos os seus cortes e dores a nos fazer sangrar. O que os versos revelam já está plantado em nós, já foi vivido por nós, mas talvez não tenha sido verbalizado com tanta beleza e originalidade, dizendo aquilo que gostaríamos de dizer e, principalmente, como gostaríamos de dizer. E diz com palavras revestidas de encanto. A beleza dos poemas está exatamente nisso: no como dizer. Aíla diz por meio de uma profusão de imagens que nos surpreendem a cada momento, provocando em nós o estranhamento estético próprio do contato com o Belo. 

Li o livro em dois momentos. A princípio, uma leitura rápida, “comendo” com sofreguidão cada linha, consumindo, ávida, cada poema. Depois, voltei e reli, desta vez, calmamente, saboreando, analisando, decifrando metáforas e visualizando as cores, ouvindo os sons, entregando-me ao curso e ao ritmo dos versos. E segui, fazendo descobertas. Descobertas que comentarei aqui sem a preocupação acadêmica de aplicar um aporte teórico a esta leitura, mas apenas vivenciar o prazer de partilhar a percepção da beleza poética.   

Para exemplificar parte do que percebi nos poemas, cito aqui um elemento que aparece, com certa insistência, na poética da autora: o pássaro; ele ora aparece explicitamente, ora apenas em forma de sugestão. Considerando o conteúdo dos textos e o curso da história de amor que eles nos revelam, torna-se coerente dizer que a recorrência dessa imagem não acontece por acaso. O pássaro pode sugerir a materialização da ideia de liberdade, pela qual o eu lírico tanto espera. Há um desejo explícito, uma necessidade de libertação; há a declarada confissão do anseio por alçar voo para libertar-se das amarras de um amor que foi felicidade, mas se tornou grilhão. E é exatamente isso que o final da história contada nos revela: libertação. São muitas as passagens em que este pássaro-de-palavras surge. E quando ele pousa, a beleza se espraia sobre o papel:

   
  POEMA                                 VERSO
 
   
 

Como se pode ver, por meio desta amostra, há quinze momentos em que o pássaro presentifica-se no dizer da poetisa. Ora o pássaro é metáfora do feminino, ora do masculino, num processo de zoomorfização em que as asas, que propiciam o voo, são os elementos mais marcantes. E há sempre a sede de voo. Há sempre a ideia da libertação. O ser que fala nos versos quer “saber viver sem abismo/ e aprender a voar sem asas.”

Juntando-se a essa metáfora da libertação simbolicamente presente na figura do pássaro, outra imagem chamou-me a atenção: o trem, possível metáfora da partida que antecede a esperada libertação. Em muitos poemas, o trem e seus vagões aparecem, parecendo confirmar essa ideia da partida, da tragédia anunciada e racionalmente aceita: “”a vida é um vagão de um trem...”; “sigo como um vagão...”; “quando te vi, partiram todos os trens...”; “fiquei para sempre na estação vazia...”; “e a certeza de que és tu/ o mesmo homem que me acenou/ de um daqueles vagões.”; “Em vão te asseguro alheio/ à escassez do porto/ e te vejo vagões afora/ - anônimo passageiro.”; “pouco importa o voo proibido,/ os vagões fora dos trilhos.”; “trens, aviões, quedas d´água...”. Trens partindo, pássaros voando. Relações que se findam, pessoas se libertando. É assim que percebo o canto temático maior na poética de Aíla.

De olhos entreabertos lembra-nos a pujança dos versos de saudade de Florbela Espanca, as cartas pulsantes de Sóror Mariana Alcoforado ou, ainda, as declarações ficcionais de Flória Emília a Santo Agostinho, no Vita Brevis. De olhos entreabertos é o cantar de todas as mulheres que amaram imensamente e souberam dizer bem ou bendizer este amor. Há muito ainda a saborear na obra: os momentos intertextuais, a metalinguagem, o uso da figuração etc. Contudo, deixo a outros este prazer ou a mim mesma em possíveis futuros escritos. Para finalizar, destaco ainda o momento áureo em que a autora conclui a obra com um verdadeiro ‘fecho de ouro’, quando dialoga com o Coríntios, num momento de rara beleza intertextual. E, nesse acorde derradeiro, o mais encantador é ver que, nem mesmo toda a dor existencial provocada pela vivência amorosa fez a voz lírica calar-se ou maldizer o amor. E assim se finda o livro com o texto Como na Carta de Paulo: “o amor ficou, como profetizava a Carta, porque o amor jamais acaba; aniquila profecias, cessa as línguas, faz desaparecer a ciência, mas não acaba. Assim foi, assim será”.

   
 

 

Revista InComunidade (Porto)

 

 

 

 

© Maria Estela Guedes
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