REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | Número 25-26 | Março-Abril | 2012

 
 

 

 

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA

 Exumações

(excertos)

                                                                  

Parábola sobre o Castanho Sofrimento
Primeira parte

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Apenas Livros Editora  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
Arte - Livros Editora  
 
 
 
 

 I

 

Foi com um gesto de desânimo

que

Deus expulsou Adão do paraíso

anatemizou Caim com a eternidade da sua cólera

e

nos ensinou a penitência do sofrimento

 

II

 

Foi fascinado com o pecado

e

com a imprevisibilidade da vergonha

que

Deus inundou com o estigma da dor 

as faíscas de doçura

que

incandesceram 

os corpos primordiais

do amor e da paixão

instituiu a culpa

no inescrutável coração da mágoa

e

se prostrou em expiação

                                                                       ante

a impiedosa sensualidade da mulher

 

III

 

Depois

de se ter feito 

solilóquio e reverberação do verbo

e

de ter criado Adão

de uma pedra de basalto

entumescida

em terra de massa-pé

 e do sopro fugaz do mistério

a que se chama vida

 

criou Deus a mulher 

a Eva das  nocturnas fantasias de Adão

 esculpindo-a

em corpo e melenas de paraíso

à imagem e semelhança 

da sua incorrompida beleza

 

IV

 

Foi num assomo

de tédio cansaço e tensão erótica

que

Deus fez de Eva a sua diva

e de Adão o serviçal

dos seus momentos ociosos e libertinos

 

V

 

Perpassava a bruma

sem cansaço sem tempo e sem espaço

entre as ervas

estavam Eva e a serpente

lânguidas e perversas

e

cientes do amor e do conhecimento

sob uma mangueira estiradas

num leito entrançado

de folhas de coqueiro e de bananeira

 

VI

 

Perpassava o tempo

tenuemente exausto e ausente da memória

entre o crepitar dos risos

quando  surpreendeu Deus às fêmeas

e ao olhar de Adão

 libidinoso e alucinado

com a subversiva ejaculação do prazer

 

VII

 

Da infidelidade de Eva

 e da ousadia de Adão

 da irremediada frustração divina

e da iluminada estupefacção do adultério

nasceram dois gémeos

ambos de cor parda

 

pois que

era Eva tão alva

como a imperturbada brancura da neve

e

Adão tão negro

como o nocturno rumor da chuva

sobre o esplendor das trevas e do escurecido verde

que precederam o mundo

 

pois que

era Adão tão claro

como as cristalinas nascentes

rumorejantes 

nos montes intocados

e

Eva tão escura

como as ribeiras

por onde as intempéries e os frutos da natureza

desfraldam a sua impúdica alegria

e

fazem germinar

a infatigável e atónita memória do ébano

 

VIII

 

Ao primeiro de entre os gémeos

chamaram-no Caim

e

destinaram-lhe

uma funda  um alforge de pedras

 e

o pastoreio de vacas e de cabras

nas achadas das imediações do paraíso das águas

do éden chamado Pombal

 

e

o segundo

que seria amante da música 

da contemplação e da masturbação dos sentidos

respondia por Abel

e

breve seria a piedade divina

face ao seu cadáver

e à fratricida exasperação de Caim

em trágico e guerreiro mimetismo de Gitano

 o seu touro predilecto

 

IX

 

Morto Adão

(da doentia nostalgia a que chamam saudade

da entristecida saudade a que chamam banzo  )

depois de longo exílio

após dolorido desterro

num ermo do mundo

situado entre o Rincão e o Monte Negro

era Eva

ainda jovem e bela

e rispidamente sensual

face à velhice de Deus

 

Morto Adão

(por humana fraqueza de Deus)

enamorou-se por Eva Caim

e

fugiram ambos

para o desabitado interior do mundo

que se estendia pelas distâncias

das ilhas periféricas

as desertas chamadas

e

cresceram e multiplicaram-se

em faces castanhas

escurecidas

pela inospitalidade das terras

devastadas

pelo abandono pela secura

e pelo árido olhar de Deus

e

pereceram e ressuscitaram

entre cabras e pedras

e

o sincopar

dos cantos

que foram inventando

e

a dolência 

dos lamentos

que iam entoando

na ourela do mar

no fundo das ribeiras

no alto das assomadas

e

crestaram as faces

de persistência e de melancolia

e

saíram pelo mundo

e

fizeram-se diáspora

em busca

e

em rememoração

do perdido paraíso do verde e das águas

 

X

 

Remordido pela náusea

possuído pelo inapagável rumor da vingança

fez Deus petrificar Adão

e, depois, Eva

(ou o que do seu rasto latejava sobre os areais)

e

colocou-os sobre o cume

do monte mais alto

-Pico de António chamado -

cobrindo-os com o fosco e basáltico azul

da distância e do esquecimento

e

agora e para todo o sempre

da hora da nossa morte

em estado de aparente coma

sadicamente

tudo isto 

(isto é, o nosso purgatório de inveterados habitantes da secura)

no seu leito de martírio e morte

observa

 

XI

 

 Eis pois

desvendado o segredo

do irascível mau humor de Deus

e da ciclotímica longevidade

do sofrimento sobre a terra:

 a vítima

da primeira sublimação

do primeiro adultério

do primeiro incesto

do primeiro remorso

da primeira irreverência proletária

foi Deus, ele próprio,

inerte sobre o ócio

e a sua imensa sabedoria

 

XII

 

Vocifera a criatura

cabisbaixa e estupefacta

com a desmesura  da sede e a imensidade da seca

 

Com árida raiva

vocifera a criatura

em face das águas assanhadas diluvianas

carregando para o mar

as últimas colheitas

 as derradeiras esperanças

e

verbera:

e

continua o sofrimento

sobre as crinas incolores do tempo

e

sobrevive o  escárnio da terrena tragédia

nas águas tementes

que descaem

dos sulcos inclementes

que compõem

a inconfundível fisionomia

da alucinação e da resignação

 

Segunda parte

 

 Levantado da ressaca

 no junino e festivo umbral de novas as-águas

pressagia a criatura

ainda aridamente cintilante: 

quando

 se soerguer

da apatia da letargia e da prostração

e despido das vestes antropofágicas

de seu heterónimo, Lúcifer

(também denominado Diabo, Demónio, Satanás ou, simplesmente, Sujo)

Deus se erguer

como um arco-íris 

entre o cieiro e a bruma seca

 

e as plantas e as pedras

se inundarem de insónia

e

da memória dos tempos

da angústia e da solidão

da desolação e da secura

que incendiaram as almas

e

sob o frio olhar do pelourinho

transformaram

os ossos das gentes

em sahel e sul-abaixo

- nomes recentes do inferno -

e

transmutaram

em enxada da penúria

o insuportável e antiquíssimo destino

do corpo

sob

a miragem  da cruz

e

gravaram

com o nome  de Gessua e Gervásio 

o silente chicote do martírio

 

 

Reencontrar-nos-emos

e

às efígies ancestrais de Adão e Eva

e à ousada tenacidade de Caim

reconciliando-se

com a alma limpa e solidária de Abel

em Cristo transfigurando-se

no olhar penetrante

do Homem da Achada Falcão

 

Amílcar chamado

pelos que lavravam árduos os dias

e

comungavam a suculenta hóstia das madrugadas

entre as brumas da Serra Malagueta

 

Reencontrar-nos-emos

e

às raízes

do sangue e do suor

dos séculos de dor e esperança

no ritmo do pilão

e

no poilão da sabedoria

em Txororó vivificando-se

tais corações de Lázaro e valentes de Julangue

pelas mãos latas

fraternitárias

do Homem de Ponta Belém

 

em Madina de Boé

Abel Djassi proclamado

lume de ouro

festejado

entre

as flores defumadas  

em fumo sagrado

consagrado

entre

os risos orvalhados

perfumados

no mistério livre

da floresta e da noite, oh mãe!

 

Reencontrar-nos-emos

num tempo outro

sabido

sabendo-se nosso

inundando-se

das palavras da profecia

desferindo-se

sobre a carne agrilhoada

da terra e da desgraça

 

Reencontrar-nos-emos

Abel de Eva e Maria de Magdala

Adão de Deus e Judas de Cristo

Abel de Iva e Caim de Adão

Jesus de Maria e Eva de Deus

redimidos  no regaço da pietá

e no seu rosto

desenhando-se

escuro

na fisionomia islenha

da mãe idolatrada

da mão companheira

 

presentes em cada manhã

sobrevivente  ao umbigo inicial

para sempre enterrado

na comunhão da terra com o nunca mais

ausentes da morte

lacrimejante esculpindo-se 

no derradeiro sorriso germinando

na interpelação aos traidores

no rosto amoroso da mulher

a um tempo Eva e Iva

na noite de Conacry

 

Reencontrar-nos-emos

e

à nossa obsessão do verde

- nome edénico da paz -

e

à nossa  saudade  

da atlântida

das hespérides

da savana e do baobab

do zion train

e

dos vários imaginários

do sonho e da viagem

em torno do paraíso das águas

 

ou

simplesmente

de um cabo um lugar verde

onde

descansar-nos  possamos

das atribulações da escassez e da carestia

da esquizofrenia de Deus

da tentação de Satã

 da possessão do Demo

e

 pensar-nos

e

assumir-nos

como criaturas decentes e dignas

sob o olhar finalmente compadecido

da lonjura fraterna da terra prometida

da distância próxima e tacteável

de uma outra terra dentro da nossa terra

da ilha de todos os poemas

pasárgada

de carne e espírito saciados

 

Reencontrar-nos-emos

pardos e castanhos

estonteantes e incrédulos

e

limpos dos antigos alaridos

regressados

à verde e líquida memória do ébano

ao antigo lugar do exílio e do desterro

situado entre o Rincão e o Monte Negro

ou algures

onde seja possível

perscrutar Adão e Eva

  e partilhar dos frutos

do seu éden pétreo

do Pico de António

 

Lisboa, Abril de 2007

  ESTÁTUA IMAGINADA
 

Em homenagem de Amílcar Cabral
e do primeiro hino nacional do meu país

  Sentado
            desenhas a espuma
               que dos ossos dos sonhos se erige
                      e progride rente à noite do martírio
 
De pé
            frondoso entre as frondosas árvores
                   estilhaças o crânio
                        das antigas odes e das suas rememorações
                              para o teu povo celebrar
                                    e os seus heróis
                                         erectos no alfabeto de um novo tempo 
 
 
 
Debruçado
                 sobre a lonjura
                     dos séculos de dor e esperança
                           tal sombra em busca de corpo
             escrutas o azul
                    que do silêncio em mar se transfigura    
 
          Expectante
               as penedias entre os regaços
                    e as secas ribeiras sobre o dorso
                do mar constróis
                     um novo verde mar
                           que se petrifica entre os dedos
                                 inundados de sol e  suor
                                    e da flor do nosso sangue
 
 
             Caminhante     
                     floresces um hino infante dos séculos
                          que em pátrias se plasmam
                                 na sua demanda do verde
                                       ainda apenas pressentido     
                                        e
                               a espuma
                                  é então
                             o rosto mais recente
                             a face mais dançarina
                             da memória e da esperança
                                 nuas e límpidas 
                               na terra  dos nossos avôs
 
   NHU XINHU
 

à memória de Nhu Xinhu, tecelão de Pombal

  As mãos          enrugadas
tecem a vagarosa e calada amargura
         que do rosto        sulcado de velhice
          em fímbrias vegetais se transmuta
             para os dias utilitários
                     das mulheres dos cortadores de cana de açúcar
            e ilumina a castanha resplandecência
                     do milho e de outros frutos de Pombal
 
Padece a alma
      - escalvada          escalavrada ribeira
         alagada de pétrea mágoa
         e do último suspiro     
    das águas e da agonia do verde -
   onde o rústico coração floresce
      e em silêncio amadurece
 
Fenece a alma
          e absorta assombra
          o espectro do sobrado
        ensombrando o basalto nu e negro
            e o humilde colmo do casebre
            ajaezado e circular refúgio
                  em funco estigmatizado
            sob a penumbra das montanhas
            e do finar da esperança
quando o  preto-fino
         do rumor irredutível do djato
       e do ébano esplendor da valentia
      e da pele rebelde
      da já antiga altivez dos cabelos crespos da mocidade
     se perdem no preto-negro
     da serena e já anciã servidão
        das mãos tranquilas
        e do corpo sentado
        sobre os restos
       e as cicatrizes   do poilão
 
 Descai o rosto
           réstia apenas da ribeira crucificada
                  no altar do riso cúpido do morgadio
                   e do pelourinho
                  da repentina violência
                                 das cheias de Agosto
                     sobre a ferida
                    da plenitude rubra do tempo
                           despojado de rancor
                              indiferente às mãos de Nhu Xinhu
                              tecendo calosas a memória
                              da melancolia e o fulgor da acrimónia
                               escorrendo da sombra cerimoniosa do casebre…


                                                                         Lisboa, 22 de Junho de 2003
 

 

 

 

 

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA (CABO VERDE).
Jurista, poeta, ensaísta, analista e comentador radiofónico. Nasceu no sítio de Pombal, Concelho de Santa Catarina, ilha de Santiago, Cabo Verde (1960). Reside actualmente em Lisboa. Licenciado em Direito pela Universidade Karl Marx, de Leipzig, e pós-graduado em Ciências Jurídicas e em Ciências Políticas e Internacionais pela Faculdade de Direito de Lisboa. Desempenhou as funções de técnico superior em vários departamentos governamentais e de Director do Gabinete de Assuntos Jurídicos e Legislação da Secretaria-Geral do Governo. Associado a diversas iniciativas culturais em Cabo Verde, como o Movimento Pró-Cultura (1986), o suplemento cultural Voz di Letra do jornal Voz di Povo (1986-1987) e a revista Pré-Textos; director da revista Fragmentos (1987-1998); co-fundador da Spleen-Edições (1993) e dirigente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (1989-1992/1998). Participação regular em colóquios, em diversos países, como Senegal, Cuba, Bélgica, Brasil, Angola, Portugal, Holanda, Suíça, Moçambique; colaboração assídua em jornais e revistas literárias e jurídicas, com destaque para Fragmentos, Pré-Textos, Direito e Cidadania, Lusografias, A Semana, Liberal-Caboverde. Representado em diferentes antologias poéticas estrangeiras. Organizou Mirabilis – de Veias ao Sol (Antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos (1998) e O Ano Mágico de 2006 – Olhares Retrospectivos sobre a História e a Cultura Cabo-Verdianas (2008).
Publicou: À Sombra do Sol, I e II, (1990); Assomada Nocturna (1993), Assomada Nocturna – Poema de NZé di Sant’ y Águ (2005); Orfandade e Funcionalização Político-Ideológica nos Discursos Identitários Cabo-Verdianos (2007), e Praianas (Revisitações do Tempo e da Cidade) (2009). Utiliza os nomes literários Nzé di Santý Águ, Zé di Sant´y Águ, Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral de Almada (poesia), Tuna Furtado (artigos e ensaios) e Dionísio de Deus y Fonteana (crónica literária e prosa de ficção).

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL