REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 21

 
 

 

 

 

RAQUEL NAVEIRA

Sangue português

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Agulha Hispânica  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
O Contrário do Tempo  
 
 
 
  SANGUE PORTUGUÊS
 


Fiz jus
Ao meu sangue português,
Este foi o meu fado:
Deixar o passado,
Arremeter-me contra o desconhecido,
Acima da minha pequenez.


Desejei tudo:
Uma nova estrela,
Uma nova sorte,
Atribuí ao fado
O meu cansaço
De alma forte.


Estaria morto,
Absorto em mim mesmo,
Se não tivesse partido;
Velas ao vento
Entre rosas e cruzes,
Viajei em busca do meu ideal,
Bem ou mal,
Não sei quando chegará minha hora,
Minha vez,
Mas sei que fiz jus
Ao meu sangue português.

   
  CONFISSÃO DE MARIANA
   
 

(a Sóror Mariana Alcoforado, que nasceu em Beja, 1640. Desde menina professou no Convento de Nossa Senhora da Conceição em sua cidade natal. Em 1663, conhece Chamilly, oficial francês servindo em Portugal, durante as guerras da Restauração. Apaixonam-se. Ele regressa à França por ordens militares. Trocam cartas, das quais só ficaram as escritas pela freira, que falece em 1723, após dolorosa penitência)


Foi aqui,
Neste convento
Cheio de varandas
E flores perfumadas,
Perto daquela fonte,
Daquela bacia esculpida,
Que eu, freira clarissa,
Conheci o amor da minha vida:
O oficial francês Chamilly,
Paixão proibida,
Insana,
Incontrolada.


Foi aqui,
Neste convento,
Na cela e no porão
Que me entreguei a ele,
Sufocando-o com meu manto negro
Brocado de estrelas.


Depois que ele partiu,
Foi daqui,
Deste convento,
Que enviei a ele cartas
Tão tensas e dramáticas
Que estilhaçaram meus nervos
Em transes e sangrias.


Foi deste banco de mármore,
Perto do laranjal, que,
Traída e abandonada,
Escrivã sem pejo,
Expeli toda minha fúria,
Minha ânsia,
Meu ódio
De fêmea pagã
Queimando de desejo.


Escrevi:
“A esperança me proporciona prazer,
Só quero sentir a minha dor,
Que seria de mim sem esse amor e esse ódio
Que enchem o meu coração?
O que vai ser de mim?
Morro de vergonha.”


Neste convento
Feneço
Na carne e no espírito,
Eu, amante suprema,
De doçura extrema,
Ofereci-me a um cínico,
A um ingrato
E por ele me mato
Como Cristo
Nas dores do calvário.

   
 

FLORBELA ESPANCA
(a ela)

  Florbela,
Fada branca,
Dolorosa,
A dor foi teu dote,
Teu embate,
Teu prazer,
Transfiguraste o mundo
Em arte.

Florbela,
Asa branca,
Amorosa,
O amor foi tua sede,
Tua loucura,
Teu vinho forte,
Choraste sempre
O ausente.

Florbela,
Égua branca,
Potranca insaciável,
Eros foi teu amante,
Bebeste fel amargo,
Na luminosa taça
De um sol agonizante.

Florbela,
Branca castelã,
Princesa de boca rubra,
Isolada numa torre de névoa,
Espalhaste sangue
Pelos cravos
Da volúpia.

Alavanca de quimeras,
Primavera na charneca,
Força demoníaca,
A poesia de Florbela Espanca.
   
  FIGUEIRA DA FOZ
  Eram de Figueira da Foz
Os meus avós.

Figueira,
Árvore sagrada,
Leitosa,
Cujos frutos
Se abrem roxos,
Testículos do outono.

Foz,
Encontro do rio e do mar,
Lá onde a areia é cor de prata
E forma uma renda
De espuma e nata
Pela costa atlântica.

Deixaram a pesca,
O sal,
Os navios,
Os molhos de trigo
E atravessaram o oceano
Rumo à América.

O vento moderado soprava,
O relógio girava na torre,
A claridade era forte na praia
Quando meus avós
Vieram de Figueira da Foz.

Um albatroz acompanhou a viagem,
Em nenhum momento se sentiram sós,
Havia um chamado,
Uma missão,
Uma voz
E aportaram no cerrado.

O tempo passou tão veloz
Desde que meus avós
Chegaram de Figueira da Foz,
Por isso há dentro de nós
Sementes de figo
E gotas do Mondego.
   
  RICARDO REIS NO RIO DE JANEIRO
  Encontrei
Ricardo Reis
Certa vez
Na esquina do Flamengo,
Estava magro,
Caminhava trôpego,
Os olhos fitos na baía de Guanabara,
Andamos entre palmeiras,
Ele me falou da infância,
Do colégio jesuíta,
Das lições helenistas
E, saudoso monarquista,
Lembrou das caravelas
Que chegaram ao Brasil
Exatamente
Naquela paisagem bonita.


Senti-me com Lídia
Quando ele disse que minha testa branca
Ficaria bem coroada de rosas
(Rosas que se apagam tão cedo),
Abelhas voavam ao nosso redor
E as folhas estalavam aos nossos pés.


_Netuno está quieto
Sob as águas tranquilas,
Ninfas passeiam
Com asas de libélulas
Enquanto as Parcas
Tecem os fios de nossas vidas;
Logo será noite,
Após o ouro de Apolo
Segue-se a prata de Diana
E a chama estremece.


Por algum tempo
Ficamos mudos,
Inscritos na consciência dos deuses,
Depois seguimos rumo à igreja da Glória,
Ele contou que não temia a morte,
Que fugia da dor
E lutava contra a timidez.


Confessou que era dolorido
Ser um expatriado
Mas que vivia alto,
Acima das circunstâncias,
Acima de onde os homens têm prazer ou dores,
Cheio de lucidez.

Não foi embriaguez,
Encontrei Ricardo Reis no Rio de Janeiro
Certa vez.
   
 

 

 

RAQUEL Maria Carvalho NAVEIRA (BRASIL)
RAQUEL NAVEIRA nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957. Formou-se em Direito e Letras pela UCDB/MS, onde exerceu o magistério superior, desde 1987 até 2006, quando se aposentou. Doutora em Língua e Literatura Francesas pela Universidade de Nancy, França. Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP. Trabalhou por nove anos como revisora da Editora UCDB. Apresentadora do  programa literário “Prosa e Verso” pela TV UCDB e do “Flores e Livros” pela UPTV e pela ORKUTTV. P
rofessora do Curso de Letras da Faculdade Anchieta, de São Bernardo do Campo/SP, desde julho de 2008 a março de 2011 e da Faculdade HOTEC, como professora de Comunicação Aplicada. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e ao PEN CLUBE DO BRASIL. Diretora da União Brasileira de Escritores/Seção SP. É palestrante, dá cursos e oficinas na Casa das Rosas. Escreveu vários livros, entre eles: ABADIA (poemas, editora Imago,1996) e CASA DE TECLA (poemas, editora Escrituras, 1999), finalistas do Prêmio Jabuti de Poesia, da CBL. Os mais recentes são  o livro de ensaios LITERATURA E DROGAS-E OUTROS ENSAIOS (Nova Razão Cultural, 2007) e o de crônicas  CAMINHOS DE BICICLETA (Miró, 2010)raquelnaveira@oi.com.br
raquelnaveira@gmail.com
www.raquelnaveira.com.br

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL