REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 19-20

 
 

 

 

 

 

RISOLETA PINTO PEDRO

Língua e inconformismo
 

 

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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Em tempos, Carl Rodgers foi um dos meus melhores alimentos intelectuais para a alma. Já não o lia há muito tempo, mas eis que me chega à caixa de correio uma generosa e providencial encomenda, oferta da Padrões Culturais, onde mergulhei de imediato. O que li na primeira página não me deixou indiferente. Rodgers nunca me deixou indiferente:

“A questão pronominal ou, para ser mais exacto, a saída para a situação “o/a”, tem-me inquietado bastante. Partilho, inteiramente, o ponto de vista segundo o qual as mulheres são subtilmente inferiorizadas pelo emprego do pronome masculino quando se fala, na generalidade, de um membro da espécie humana. Gosto, por outro lado, de uma escrita convincente e um “ele/ela” no meio de uma frase destrói-lhe, muitas vezes, o impacto. Não acredito que se possa encontrar uma solução satisfatória, até que alguém sugira um conjunto aceitável de pronomes sem género.

Decidi abordar o problema desta maneira: todas as referências gerais a membros da nossa espécie serão, num capítulo, femininas e no seguinte masculinas. Por isso, utilizo, no primeiro capítulo pronomes femininos onde a referência é geral, no seguinte pronomes masculinos, e assim sucessivamente, ao longo do livro. Foi a melhor solução que consegui encontrar e que satisfizesse os meus dois propósitos: um objectivo de igualdade e um desejo de convivência.”

Carl Rogers, “Nota Especial” in: O Poder Pessoal, Padrões Culturais Editora

Por sua vez, Fanny Van Laere, em El Resurgir de lo Femenino, afirma:

“Desde pequeñas, a través del lenguaje, las niñas tienen que asumir que están incluidas en el masculino genérico universal, en el cual lo femenino queda invisibilizado. En la mayoría de los idiomas, se utiliza el masculino como genérico referencial para ambos sexos. En gramática se enseña que: “La concordancia se hace según el género masculino, incluso si es minoritario o implícito”. Todos los niños y niñas en la escuela aprenden de memoria: “El masculino abarca a lo femenino”, es decir, que lo femenino se hace invisible quedando englobado.”

Refere também o exemplo do francês, em que “le masculin l’emporte sur le féminin”, que o mesmo é dizer-se que o masculino predomina sobre o feminino. “Emporter”, o mesmo verbo utilizado para significar uma vitória.

Por isso, esta escritora opta por “usar, a veces, un femenino genérico universal, otras veces el masculino genérico universal habitual; y en otras ocasiones, utilizo ambos.”

Opta, como Rodgers, pela alternância de géneros. Já passou o tempo da queima dos soutiens. Evoluiu-se. Agora, o que se pretende está explícito noutra passagem do mesmo livro, da mesma autora:

“Me gustaria aclarar que el resurgir de lo femenino, por supuesto, no significa que los hombres lleguen a estar subordinados a las mujeres, ya que esto no seria más que irse al otro extremo; sino que invita a establecer un equilibrio entre los valores femeninos y masculinos en nuestras estructuras mentales, emocionales y sociales.

Cualquier relación que no sea de cooperación está basada en la negación, o en la represión del lado femenino: negación de las necesidades afectivas, de la intuición, de la creatividad, de la visión de conjunto, de la necessidad de búsqueda y de las vivencias espirituales, […]”

Também Álvaro García Meseguer, professor e investigador do Conselho de Investigações Científicas,

“publicó un libro en 1977 donde afirmaba que la lengua española era profundamente sexista.” Mais tarde, vem dizer que “un estudio más profundo del género gramatical me hizo ver que había confundido género por sexo. Ahora afirmo que la pobre lengua es inocente y que el sexismo lingüístico radica en el hablante o en el oyente, pero no en la lengua.”

La Opinión. 23 de noviembre, 2002

Portanto, o problema está no utilizador e não na língua. O que vem dar razão aos dois autores acima citados que resolveram, por sua alta recreação, mudar as regras do jogo. O que faz sentido: uma vez adquirida a consciência de uma dada realidade, temos uma de três coisas a fazer: ou não podemos fazer nada e aceitamos o que não podemos mudar, ou podemos mudá-la e isso é pacífico para todos, ou podemos mudá-la e, embora não sendo pacífico em termos sociais, assumimos as consequências e contribuímos para pôr em movimento a lenta alavanca da mudança. O que os dois autores fizeram. Este seu gesto assume, implicitamente que a língua não é sexista, que são os falantes (ou os legisladores) que a fazem. A língua, em si, é inocente.


Mas quando Álvaro García Meseguer ainda afirmava que a língua espanhola era sexista, publicava os seguintes resultados comparativos da sua investigação, quantificando e ordenando os países/línguas quanto ao grau de discriminação apresentado nos seus idiomas em relação à mulher:

Finlandês: 1%; Sueco: 8%; Inglês: 15%; Alemão: 30%; Russo: 35%; Francês: 40%; Catalão: 70%; Italiano: 75%; Castelhano: 80%; Árabe: 90%.

O Português não parece constar deste estudo.

A mesma Fanny Van Laer, em Renacimiento y Purificación Espiritual, vai mais longe, e “mete-se com” o género de Deus:

“A mi me gusta usar la palabra Divinidad ya que no conlleva, en general, tantos condicionamentos, al tiempo que nos recuerda el aspecto femenino de la vida; lo cual há sido tan olvidado por las religiones en general y por nuestra civilización. La Divinidad, la Vida, Diós o el Espíritu Eterno, ya que abarca todo lo que existe, no és ni solo femenino ni sólo masculino. Sin embargo, no existe en la mayoría de los idiomas una palabra de género neutro para poder describirla.”

Mas não é novo, este inconformismo em relação a certas características da língua.

Já António Telmo, em Gramática Secreta da Língua Portuguesa, apresenta uma interessantíssima reflexão do poeta Teixeira de Pascoaes acerca do “y” (esse filho pródigo que agora voltou até que alguém volte a pô-lo fora) “que os foneticistas expulsaram do alfabeto por se mostrar supérfluo” (isto faz-vos lembrar alguma coisa da actualidade?). A. Telmo acrescenta que “Teixeira de Pascoaes escreveu que na palavra “lagryma” o “y” exprimia graficamente a queda da própria lágrima e, com este e outros exemplos, insurgia-se contra a tentativa de uniformizar a ortografia.” E não sei porquê, este texto publicado em 1981 parece-me muito actual e familiar. Continua A. Telmo: “O argumento era demasiado ingénuo no seu sabor poético para poder sugestionar homens práticos que usam o “uniforme” para unir e formar. Defendia o poeta a liberdade de cada um exprimir como sentisse a palavra. Não queria talvez ensinar que não se tratava só de sentimento, mas também de conhecimento.”

Eu adoro a ironia e a polissemia (para quem não navega pelas águas técnicas da língua, eu explico: a coexistência ou possibilidade de diferentes sentidos numa mesma palavra) que ele põe no termo “uniforme”.

O conhecimento a que Telmo alude é a profundidade simbólica do “y” (e do Português) do ponto de vista cabalístico. Mas não vou internar-me agora nesta selva conceptual. Porque já cheguei onde queria chegar. E onde eu queria chegar era precisamente ao ponto que cada um entendeu para si.

 

 

 

 

Risoleta C Pinto Pedro (Elvas, Portugal)
Publicou até hoje: A Criança Suspensa, Prémio Ferreira de Castro, O Corpo e a Tela, Hugin, O Aniversário, Prémio Revelação APE/IPBL 1994, Difel, O Arquitecto, Hugin, Venite In Silentio, Unicepe, Porto, 2004, O Sol do Tarot de Sintra, Indícios de Oiro, 2009, Adelaide Cabete e a Palavra encontrada, Padrões Culturais, 2010, entre outros. Foi também premiada na poesia pela SLP, tem escrito teatro, canções,  libretos de ópera, cantata, musical, texto para bandas desenhadas. Fez crónica (“Quarta-Crescente”) para a Antena 2. Continua a publicar crónicas em periódicos generalistas,
literários e de artes plásticas.
http://aluzdascasas.blogspot.com
risoletacpintopedro@gmail.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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