REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 17

 

 

Na vasta extensão rodeada de terreno arborizado, sedosa pradaria dividida pelo curso em arco de um regato bem nutrido, ao princípio do outono, quando a Lua perseguia sua plenitude circular, enigmático e aprazível apareceu o Ente. O velho Liparus Glabirostris, da família dos Curculiónidas, profundo pensador e professor exímio, receou sempre. Desconfiava do suposto deus inclusive na época de general arroubamento. Não era para menos, a estranha aparência -tamanho e forma- ajudava em alto grau despertando braçados de suspeita.

O Ser, delimitado por linhas suaves e planos carentes de ângulos, aceitava as olhadas interrogantes sem suspender a emissão de sons compassados, sugestivos até para ouvidos insensíveis à cadência ordenada. No seu interior impenetrável abrigava, sem assomo de dúvida, algum tipo de vida afastada da convencional. Livre de fome e sede, em harmonia com a agradável temperatura ambiente, atuava como qualquer recém-nascido satisfeito, ainda que desprovido do gracioso bracejo e do gesto encantador. Permanecia no próprio lugar de sua aparição, expressava-se utilizando um complexo linguagem de signos visuais e acústicos, e não manifestava dependência alguma do exterior. Resulta compreensível que centenas de conjeturas se tecessem ao redor de sua privativa natureza.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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PEDRO SEVYLLA DE JUANA

 

Chegada e partida de Deus

 

 

                                                                  
 

O velho Liparus pôde reconhecer nele determinadas qualidades da condição divina. Saltava à vista que era alheio a tudo o conhecido. Certo, diferia sua essência das peculiaridades primordiais dos três reinos; não parecia pedra, não parecia planta, não parecia animal. O estado de repouso em que se encontrava imerso devia de ser transitório, pois tinha chegado até ali desde algum lugar tão remoto que não lhe precedeu a notícia de sua existência. A aptidão para trasladar-se ao ditado do desejo lhe proporcionava uma independência amplíssima: rasgo que distingue aos seres superiores. Único, autónomo e inexplicável: semelhantes atributos constituíam os fios que bordavam a perfeição de sua índole. Carecia, pelo contrário, da primeira das qualidades que os deuses exibem: a capacidade sem limites de influir no curso dos sucessos, geradora de prodígios que ressaltam uma trajetória extraordinária. Atitude oposta à de um demiurgo amoroso de sua obra, aparecia, somada, uma inescusável despreocupação pela formosura da verde floresta, pelos inverosímeis raios de sol que filtrava, pelo rumor harmonioso da água ao acometer os meandros e estreitezas, e até pelos curiosos que lhe cercavam com ânimo investigador. Nesse ponto exato, equidistante do sim e do não, impossibilitada para desprender-se, ancorava Liparus sua dúvida.

Talvez fora só um clarão da mobilidade potencial, mas a agitação se ensenhoreava do interior. O que podia ser tomado pelo rosto, superfície circular de um cilindro achatado, espelho do sensível coração, efetuava estranhos trejeitos a cada instante. Os reflexivos pesquisadores, encabeçados por Calathus Melanocephalus, pertencente à família dos Carabídeos, e seu mais direto colaborador, Agonun Dorsale, primo seu; constataram que mudava a forma seguindo um processo repetido a cada dia. Tomando o anoitecer como ponto de referência, a metamorfose reproduzia seus passos, um após outro, de crepúsculo a crepúsculo; reiteração, método.

“Prodígios? Consegue ser portento suficiente a comoção ocasionada pela sua vinda até nos mais céticos”: argumentavam os partidários, dirigidos pelo eleito coordenador de famílias Prionus Coriarius, o maior dos Longicórneos: “Negligência ante a criação? Veio para permanecer a nosso lado; eis aí o grande exemplo de carinho que necessitava este mundo egoísta”. “Sim, sua existência é monótona e repetitiva, mas, feitos a sua imagem e semelhança, nossa própria existência é repetitiva e monótona. Nos deslocamos perseguindo o alimento, nos agita o desejo de copular, corremos para atacar ou fugir. A Divindade repousa porque se basta a si mesma: nada lhe falta e a nada teme”.

Os religiosos vincularam com esse argumento, mais que com nenhum outro, o meritório modo de alinhar as condutas pessoais trás a forma de ser atribuída à Divindade. “Aquilatemos o processo de nutrição rejeitando a gula. Limitemos a cópula às exclusivas exigências da propagação da espécie. Abracemos nossos inimigos. Só dessa maneira seremos capazes de amansar nossa agitação culpável. E sentenciaram: “A calma é o bem e o tumulto o mal; na redução das necessidades apoia-se a virtude”.

Surpreende a instabilidade das convicções generalizadas na sociedade: os Escolítidos, cavadores de galerias corticais -até então tachados de simples e parcimoniosos- passaram a ser percebidos como coerentes e equilibrados. “Viver para ver”: pensavam os suspicazes.

O Círculo de Teólogos, por encargo do estamento crente, soldou entre si várias cavilações formando um verdadeiro corpo de doutrina, dogma de obrigado conhecimento e imediata difusão. Avançava o credo pela senda racional até o limite de suas possibilidades, momento em que fazia uso da fé. “A Divindade existe desde antes dos inícios, porque é o início; e seguirá quando tudo se extinga, porque o conhecido e o suspeitado têm nela sua raiz e seu sepulcro. A Divindade não necessita engendrar descendentes, porque sendo única ao tempo é eterna”.

Dytiscus Latissimus, da família dos Ditíscidos, aparecia em público luzindo a casula amarela e preta de aparência solene, ladeado por seus acólitos, dois luminosos Lampírides. Partindo das verdades teológicas propagadas há pouco, tinha fundado o Imobilismo Expectante, irmandade integrada por um crescente número de adeptos. Subido a qualquer saliência, e dono de todas as respostas, perguntava: “Que razão teve a Divindade para tomar corpo e vir em nossa companhia? Mistério. Mistério que as mentes correntes como as nossas não podem compreender. Veio, e isso deve encher-nos de orgulho e regozijo; quis servir-nos de guia e exemplo, e isso deve bastar-nos. Mas, cuidado, poderia ir-se; devemos cumprir, num instante e até o último pormenor, os ditados de seu temperamento. Me encarregarei de interpretar e divulgar suas mensagens com a assistência dos discípulos mais comprometidos. Eles e eu renunciamos desde este mesmo momento ao acasalamento, e nossa mobilidade roçará o limite da estática. Os irmãos na fé construirão uma Ara onde os fiéis possam adorar à Divindade e pedir-lhe dons. Além disso contribuirão a nosso parco sustento”.

Enquanto tudo o dito sucedia na pastagem que bordeia o arroio, o extravagante Ser continuava sua atividade mínima. A deidade, uma cabeça redonda e plana da qual surgiam dois grandes apêndices desiguais, amorosos braços dispostos a fechar-se ao redor de qualquer eleito, apenas dava sinais de vida. A estranha entidade encarnada dessa guisa, carente de tronco e de extremidades traseiras, insensível ao interesse suscitado no seu ambiente, continuava a sistemática reforma dos rasgos faciais e a entrecortada emissão de sons, audíveis a considerável distância.

Sem estorvos dignos de ser tidos em conta, Carabus Coriaceus, caçador astuto e guerreiro de tenacidade reconhecida, tomou o mando dos soldados em uma cerimónia memorável. Ao pé do altar -argila ainda húmida recoberta de pequenas pedras de cores- uma charanga formada por Gryllus Campestris e Oecanthus Pellucens, músicos estrangeiros, batia os élitros em homenagem à Divindade. Animosa, atacava com brio marchas capazes de alertar aos casacas verdes, guarda composta por Lytta Vesicatoria; e aos casacas roxas, escolta de Meloë Violaceus. Ao seu compasso, a coorte de ferozes machos Lucanus Cervus, desfilava em estado de excitação combativa. Chefes, soldados e uma boa parte da população, viam na Divindade o grande caudilho que tornaria respeitado e temido à ordem Coleóptero; orgulhoso da complexa diversidade das famílias que o integram, das poderosas mandíbulas de seus indivíduos, da beleza das asas, da funcionalidade de antenas e escudo e do notável modo de vida conseguido. Por último se apresentava a ocasião de submeter aos povos vizinhos, exigindo inchados tributos. Teriam a oportunidade de vingar a histórica afronta dos odiados Himenópteros, em particular dos Apócritos, em extremo laboriosos e rápidos viajantes.

Dytiscus, Prionus e Carabus andaram distanciados durante uma comprida temporada por questões de âmago: haviam de dilucidar quem dos três ostentaria a supremacia. A força proporcionava argumento a Carabus, Prionus esgrimia sua representatividade, a genuína vontade do povo; mostrava Dytiscus na sua mão a chave da vida eterna. Reunidos em parlamento sendo já noite cega, após ásperas discussões se descobriram compartilhando objetivos: a permanência da Divindade, a proteção da identidade coleóptera e o estabelecimento de uma nova organização social. Acordaram unir seus esforços e tomar o poder formando um triunvirato de pares. Como primeira medida sopesaram as consequências de ilegalizar a investigação filosófica, atividade supérflua quando se conhece cada palmo das numerosas ramificações da verdade. Só o temor à rejeição dos puristas lhes inclinou a penalizar as condutas em vez dos princípios. No dia seguinte, o obstinado praticante da lógica Calathus Melanocephalus, e o escrupuloso docente Liparus Glabirostris, perseguidores da certeza dos fatos provados, acusados ambos de intrigantes foram confinados no seu domicílio.

Um estrangeiro, Lygaeus Saxatilis, Grande Sacerdote do aliado ordem Heteróptero, com o propósito de introduzir o novo culto entre os seus, solicitou licença para estudar a natureza da Divindade e as teorias que a explicavam. Locusta Migratória, chefe dos Quelíferos, pelo contrário, denunciou que o crescimento do exército coleóptero –soldados, armas e bagagem- transgredia os acordos do pacto assinado depois da Grande Derrota. Se somaram à desaprovação, Tettigonia Viridissima em nome dos Ensíferos, Blatta Orientalis, Grande Chaberlán dos Blatarios; e muitos outros: Dermápteros, Odonatos, Apterigotos e Efemerópteros, que no crescente belicismo dos Coleópteros viam um perigo para a paz entre as diferentes Ordems.

Calathus e Agonum, na sua tentativa de escapar de uma morte certa, burlaram o cerco imposto a seus domicílios. Se ocultaram logo na derme telúrica, e seguindo túneis larguíssimos surgiram no território dominado pela ordem dos Himenópteros, vencedora da Grande Guerra, que após um longo período de coexistência pacífica, volvia a ser considerada hostil por causa da portentosa mobilidade de seus indivíduos. Ali prosseguiram Agonum e Calathus o estudo dos numerosos dados recolhidos, ajudados por conscienciosos pesquisadores locais: um grupo de Apis Mellifera e o controvertido Vespula Vulgaris, dissidente himenóptero amparado ao asilo dos coleópteros e retornado a sua pátria de modo encoberto. Tal escrutínio derivou em um melhor conhecimento da substância divina, de cujas características podia derivar-se utilidade prática. As raias de forma cambiante desenhadas no círculo capital, coincidentes uma e outra vez em momentos semelhantes de diferentes dias, serviriam para dividir o tempo em frações exatas e alcançar a tão desejada simultaneidade das atividades comuns.

Seguindo indicações de Véspula, duas vezes traidor, a incursão noturna dos Lamia Textor ao serviço de Carabus Coriaceus, encontrou o laboratório, destruiu os valiosos documentos e degolou aos pesquisadores absortos nas suas coisas. Sofreram os opositores um revés próximo ao desastre, e a Divindade foi adorada em qualquer lugar, pois os fiéis reproduziam ad líbitum a sagrada imagem, traçando o círculo capital e as duas raias laterais de seu emblema.

Estendido o culto, generalizados os sentimentos piedosos, sincronizada a vontade comum, a ordem dos Coleópteros entrou na etapa mais frutífera de sua história, carregada de motivos para ficar agradecido à Divindade. Era indubitável que a Entidade, protetora dos crédulos, propiciava o progresso com sua única presença. Entre isto e aquilo se desnudaram as árvores de folha caduca, orgulhoso de sua força paralisante chegou o frio, e em um lapso breve foi expulso pelos dias radiantes de sol e sossegados de ventos. A vida eclodia de novo e um grupo de crianças de Homo Sapiens se apresentou na esplanada com sua ordinária algaravia. Desde os mais profundos cantos das luras, desde as taças mais altas das árvores, medrosos, cautelosos, os insetos todos perceberam a renovada calistenia das evoluções lúdicas. Ao entardecer ouviram com nitidez as seguintes palavras, cujo significado desconheciam: “Olhem, um nicho de argila adornado com pedras de cores. Guarda um relógio de pulseira. Ah! A pilha está já nas últimas: os números mudam muito devagar e a música quase não se ouve”.

Horas mais tarde, apaziguado o contorno, caiu a noite e a normalidade se hospedou na pradaria, no terreno arborizado circundante, no arroio que os cruza. Só então os insetos se atreveram a sair de seus esconderijos: um pé e depois outro, receosos ou temerários; e tudo para descobrir que a Divindade tinha partido deixando vazio o altar. O Chefe Religioso Dytiscus Latissimus, lembrou orgulhoso seu vaticínio acerca do que acabava de ocorrer. Alguma ação ou omissão ofenderia à Divindade. Unicamente a penitência podia favorecer seu retorno. Começou então um reiterado exercício de laboriosidade e obediência cega às autoridades civis, religiosas e militares. Ainda ficava alguma esperança.

 

PSdeJ

 

 

PEDRO SEVYLLA DE JUANA (ESPAÑA)
Descendente de lavradores e artesãos da forja, Pedro Sevylla de Juana nasceu em Valdepero (Palencia), Espanha, março de 1946. Estudou o bacharelato no Colégio La Salle em Palencia; e se fez publicitário na Escola Oficial de Publicidade de Madrid. Diplomando-se, ademais, em marketing, psicologia, fotografia e desenho gráfico. Viveu em Palencia, Valladolid, Barcelona e Madrid; passando temporadas em Genebra, Estoril, Tanger, Paris e Amesterdão. Publicitário, conferencista, tradutor, articulista, poeta, ensaísta e narrador; publicou vinte livros e colabora com diversas revistas da Europa e América, tanto em língua espanhola como portuguesa. Trabalhos seus aparecem em seis antologias internacionais. Reside em El Escorial, dedicado por inteiro as suas afeições mais arraigadas: viver, ler e escrever. Página pessoal: www.sevylla.com