REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 17

 

 

A voz vinha lá do ermo galgando em tons diferentes por entre os ramos das árvores próximas. Nunca percebi se era o sussurrar dos ramos ou a descida da brisa no apertado vale.

Todos os dias ia para a ouvir. Descia a colina onde se situava a casa de família que para mim era a casa de férias, levava a espingarda como poderia levar a máquina fotográfica, qualquer das coisas servia como uma arma para o desconhecido. Uma ansiedade crescente se apossava da minha força vital à medida que me aproximava do sítio.

            Se um dia faltava, qualquer coisa clamava que não tornasse a acontecer. Quando o sol rasava quase o solo, e a tarde se trocaria pela noite, o chamamento surdo avisava-me. No próprio instante em que a bola de fogo submergia por de traz de um renque de árvores, a voz elevava-se do pântano. Primeiro era um fio de som abafado pelo lodo, e depois mais sibilante como um pássaro libertado de asfixia. Quando o medo escorregava de dentro para fora da pele, premia com as mãos húmidas a coronha da espingarda. Quem me conhecesse das andanças pelos canais da cidade, entre a Faculdade e o lar de estudantes, não me reconheceria neste ermo.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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Manuela Nogueira

 

O ESTALAR DE UM CICLO

 

                                                                  
 

Ali, naquele pântano que anteriormente fora um lago alimentado por um ribeiro, hoje desviado, meu pai conhecera a minha mãe.

As Quintas, na sua enorme vastidão, não estavam completamente muradas, e a enteada do Brasileiro, na hora da sesta, conseguia evadir-se do seu  lar/cativeiro. Os passeios solitários com o livro de ocasião, constituíam  a sua única liberdade. Através das conversas enviesadas de Ricardina,  conseguira saber isto de minha mãe.

Foi assim que meu pai, de quem herdei apenas a espingarda, nem tão pouco a pontaria, veio a conhecer aquela com quem casaria. Nunca poderei saber o que aconteceu .Poucos anos depois de eu nascer aconteceu o desastre. Tudo me esconderam e tudo me disseram, para que eu desistisse de perguntar. Fiquei sempre com a convicção que minha mãe não caíra ao lago e se suicidara.

Quando uma mulher na força da vida procura a morte tendo um filho pequeno, tem uma forte razão que lhe abalou o equilíbrio.

Tudo na casa, sempre que a ela regressava, me falava dela apesar do seu nome nunca ser pronunciado. O quarto de meu pai era um quarto de homem só. Revistas de agricultura, de xadrez, envelopes com facturas, os jornais da região. Nenhum toque de feminilidade. Afinal, ela partira há já tantos anos. Porque seria que o voltar à Quinta, me trazia recordações, intuições tão lúgubres?

Nunca me tinham deixado em pequeno aproximar-me do lago, hoje pântano.

Agora que interrogo a vida com a angústia dum tempo não explicado, procuro a solidão no sítio proibido. E parecem-me os passos dirigidos, os sentidos predispostos a chamamentos primários. Até recuso a lógica e os ensinamentos analíticos que fizeram de mim um homem e não um adolescente adiado. A brisa corre insistentemente numa direcção, também ela obedece ao destino das conjugações dos astros, também ela cumpre o fado que eu cumpro nos veios do sangue.

A minha natureza, que facilmente reagia ao esplendor da idade e da Primavera, buscava sem que eu a dominasse, os fantasmas da infância. Lembrava-me dos medos buscando protecção debaixo dos cobertores, num escuro morno, e do refúgio debaixo da mesa da casa de jantar, onde a comprida toalha de croché  velava a realidade.

Se o meu cavalo não tivesse sido abatido por ter quebrado uma perna, estaria cavalgando por outros caminhos que não estes onde tudo me recorda alguém que pouco conheci. Nos dias que cavalgava havia comigo uma promessa de renovação e de reposição das coisas perdidas. Deixava de me punir, por não ter conseguido acorrentar à vida com o meu sorriso infantil, aquela que se tornou uma lenda. Digo lenda, porque nos ais que Ricardina deixava escapar quando a inquiria, em criança, havia sinais de mistério.  A Tia Joana, sempre me pareceu, a figura perversa do “Monte dos Vendavais”.           

Sentei-me no tronco decepado pelo último temporal e segurando a carabina fincada no chão deixei descair a cabeça. O tom  rosado do céu vislumbrava-se através das pálpebras serradas, e o som, ou a voz, ou o eco da minha mágoa antiga, elevou-se. Mas desta vez era como um canto de embalar que convidava a um repouso. Fiquei, não sei quanto tempo, alheado, mas tranquilo. Lembrei-me que hoje o jantar seria servido mais cedo.

Quando entrei ouvi logo a voz da tia Joana, “ Duarte, espero que não se tenha esquecido, avisei-o que comíamos mais cedo, também o que digo nunca tem importância…” E, sem que acusasse o tê-la ouvido, pousei com força a carabina no suporte da entrada e fui arranjar-me. E aquelas palavras que apenas duraram segundos, somavam-se a tantas outras que me habituara a alienar, porque sempre vinham acorrentadas a alguém que sempre me incomodava. Os sentimentos são ás vezes pouco mais duráveis que o eco das palavras. Duram o tempo que vai do entusiasmo ao tédio.

A casa, o jardim, o curral, a solitária cavalariça, e a organização que a geria não me interessavam, contudo estava a terminar o curso de agrónomo para tomar o lugar do meu pai. A vida toma o seu feitio quando ainda não temos feitio.

O jantar agradava-me. A Ricardina, que se lembrava de todas as minhas gracinhas de criança, procurava fazer os pratos que eu mais gostava. A tia Joana bem se torcia na sua natureza mal amada.

Haveria algum mistério no seu passado que lhe transformara a índole e a pusera do avesso? Sei lá! Os mistérios sempre geraram mistérios. Meu pai pouco falava, ou atirava com enigmas que parecia ter aprendido nas revistas de charadismo. O campo que antigamente me seduzira, porque me proporcionava o prazer de andar a cavalo, estava a estender-me um tapete de seduções malignas. Teria eu tido interferência na escolha da minha vida até esta altura? Por os adultos dizerem que muito nos querem, é que nos talham a vida que lhes parece bem …o facto é que, estava convencido, ter sido a minha escolha …e pensei em Freud e na decomposição dos fantasmas afectivos. Estaria a precisar de tratamento?

Salvo o jantar que estava uma beleza, e o amor que Ricardina sempre punha no que fazia, eu sabia que o apelo do pântano e as vozes ou sons que ouvia, me estavam a perturbar seriamente. Jurei não mais me dirigir para essa banda dolorosa das minhas obsessões. Com este propósito adormeci cedo.

O sol entrava pela janela  fortíssimo. Esquecera-me de correr o cortinado. Levantei-me num pulo, tomei o duche e resolvi levar a espingarda e o Valete. O cão corria à minha frente de rabo no ar saudando uma liberdade maior. As borboletas, se antes as houvera por ali , não reparara, agora volteavam rente ao chão. Rodeei o  muro da Quinta do Brasileiro, e fiz pala com a mão direita para olhar contra o sol. Pareceu-me ver movimento ao longe. Esquecera os óculos escuros. Acelerei o passo e encoberto por um  arbusto, tornei a parar e a olhar para o sítio onde pressentira qualquer presença. Ouvia as vozes das figuras que vinham na minha direcção.

Eram três raparigas.  Deixei-as aproximar, e quando já estavam perto, saí de trás do esconderijo inútil, acenei com o lenço que trazia ao pescoço e perguntei? “ Oh! Oh! São daqui?

Juntaram-se num grupinho. Combinavam certamente se deviam responder-me ou ignorar-me. Depois, uma delas, tirou o chapéu e saudou-me, enquanto as outras fugiam pela encosta donde tinham surgido. Como ainda não estavam ao meu alcance, dei uma corrida seguido do Valete que se alegrava com qualquer desafio. Ouvi a mais alta, chamar pelas que corriam monte acima. As três raparigas ficaram paradas, mas distanciadas entre si. A mais alta,  que entretanto tinha tirado o chapéu, talvez a mais segura de si, cujo cabelo vermelho lhe caía pelas costas em desalinho, disse então:

- Não vale a pena esfalfar-se, temos pouco que ver …

A mais baixa, sentou-se no cascalho ressequido de Agosto e, riscando o chão com um graveto,  sem me olhar, foi dizendo como se falasse consigo própria:

- A Sara e a sua mania de mandar …

- Sou daqui, o meu pai é o dono da Quinta do Rei – informei eu, com o ar ridículo de alguém que dá uma resposta a quem nada lhe pergunta.

- E, é ele ou você, o Rei?

As outras duas desataram a rir e eu fiquei com a resposta que merecia.

- As apresentações não estão a correr bem – disse eu, um pouco agastado e resolvido a dar meia volta e  descer a encosta que mal começara a subir. A rapariga  que ainda não falara quebrou o silencio.

- Parece que ninguém fez apresentações, eu sou Rita, a minha prima que está ali sentada olhando para o chão é a Nela e, a minha irmã Sara, é a nossa manda-chuva, como já viu …

- Estou em casa de meu Pai … como só venho aqui nas férias,  já não sei como são os hábitos do campo. Julguei que devia cumprimentá-las. Desculpem se lhes estraguei o passeio…

- Isto é campo ou um salão renascentista? – e dizendo isto Sara tornou a pôr o chapéu de palha na cabeça, com as fitas para a frente.

- As fitas azuis, memo em cima dos olhos, condizem na cor, mas devem tapar-lhe a vista…

Puseram-se a rir as três como se eu tivesse acabado de contar uma anedota e Sara, logo que  recuperou,  disse:

- O nosso pai e tio da Nela, está a negociar a Quinta do Brasileiro, desta vez resolvemos vir dar um passeio. Põem-se numas conversas e nuns copos, que não há pachorra… 

Aproximaram-se e  eu, que sem um propósito justificável estava especado, dei uns passos na direcção delas. Juntaram-se, como se a união fizesse a força, para me enfrentar. Acenaram com os chapéus de palha na mão e a ruiva veio ao meu encontro. Era a minha vez: “São daqui?” perguntei já sabendo a resposta. A alta aproximou-se mais, enquanto as outras fugiam como lebres. O cão ladrou porque pertencia a este encontro.                       

Sara veio  ter comigo e, muito devagar, como estivesse a ser movimentada por um controlador à distância, deslizava, parecia uma figura irreal. Depois sentou-se num tronco meio sedimentado com o terreno e declarou:

- Elas comportam-se assim, só quando estão comigo. Parecem umas meninas da primária de um colégio de freiras …

- E agora pergunto eu … como é que a Sara sabe como elas se portam quando não está presente?

- Quando se conhecem as pessoas advinha-se o que se não vê …

- Bem gostava eu de ter essas certezas …as pessoas são quase todas enigmas…

 - Assim é que é excitante! Só o conheci agora, e já estou a meter-me nos seus mistérios. Um caçador sem caça! Um cavaleiro sem cavalo! Um escritor sem inspiração! – e riu-se. 

Deveria ter imaginado que ela era imaginativa, e esperava divertir-se um pouco com um desconhecido, deveria ter levado a conversa para um terreno neutro, onde tudo que dissesse fosse inconsequente, mas fiz precisamente o contrário sem uma desculpa plausível. Mais tarde verificaria, que, mais uma vez, o destino calcetava as estradas por onde eu devia seguir, mesmo quando julgava fazer as opções. O livro que lera recentemente sobre os modelos significativos da sincronicidade, e que nos aparecem num momento específico ou numa nova ligação, veio-me perturbar ainda mais.

Sara era o correio de uma carta que esperava há muito tempo. Seria? 

- Já estiveram no pântano? – perguntei-lhe, e sem que lhe desse tempo a responder continuei -  acha que vai gostar de viver aqui? O campo é só bom para os citadinos… - a minha primeira pergunta assustara-me e, por isso, desatei a falar parvamente. Quando me calei ela abriu uma fresta da sua vida. 

- A minha irmã e eu somos agora a preocupação máxima do nosso pai desde que a nossa mãe morreu. Percebemos as razões dele querer largar a casa de Lisboa … sabe, é que a casa conserva o seu perfume. Eu julgo que os cheiros sempre vão registar a minha vida. E você? … deve achar isto ridículo?

- Não, não, percebo o que me está a dizer …comigo tudo se regista por sons.           - Que tipo de sons ?

- Musicais, ou mesmo ruídos desconfortáveis. Ruídos e músicas que marcaram a minha infância que foi dolorosa – depois, e sem razão lógica, comecei a contar o meu passado e a descobrir os enigmas que me afligiam.

Duarte, muito baixo, quase sussurrando, continuou:

- Você perdeu a sua mãe há dois anos, e eu perdi a minha quando tinha cinco anos. Afogou--se no lago quando era profundo. Hoje é apenas um pântano com rãs.

Sara olhou-me rapidamente bem nos olhos, e, de chapéu no colo, com o cabelo luzindo num cobreado fascinante, ficou para me ouvir. Eu continuei:

- Meu pai nunca me falou disso. A tia Joana, que vive desde essa altura aqui na Quinta, nunca me proporcionou perguntas. É uma criatura amarga que finge que se sacrificou pelo meu pai, servindo-lhe de governanta.

Nela e Rita, agora que as enquadrava dentro duma história apenas esboçada, apareceram a correr pela encosta abaixo, já eu estava no final do relato. Vinham ruborizadas e perguntaram a Sara:

- Vens ou não vens?

Esta frase pôs fim a este primeiro encontro que, para mim, fora tão importante. Depois de uma despedida muito casual, vi-as subir e pareciam figuras românticas de um livro inglês de contos. O campo, a luz, os chapéus de palha, enfim …

Nada mais foi combinado. Poderiam vir a ser vizinhas ou não. Pensei que, apesar de lhe ter contado a parte da minha vida que mais me perturbava, pouco tinha falado no presente. Como numa sessão de psicanálise, estabelecera-se campo para a minha catarse. Inexplicavelmente não fiquei envergonhado. 

Quando voltei a Lisboa, os dias tornaram a enrolar-se num horário de obrigações que me deixavam poucas horas para o sono. Apesar de não estar de acordo com esta alienação forçada, tirei disso um benefício: falta de tempo para congeminações. Com os trabalhos de grupo, as partidas que o computador me ia pregando, os dias escorriam.

Num Domingo que se tornou num vazio repentino, peguei de novo no livro que me levantara o véu sobre as coincidências, e li o parágrafo seguinte: “ O sabor especial da sincronicidade vem do facto dela ser ao memo tempo um acontecimento único e de uma Ordem Universal. Envolvida de um espaço/tempo, manifesta uma natureza transcendental.”  Mais adiante F. David Peat dizia: “Os acontecimentos da nossa vida são um pouco como os blocos de mármore para o escultor.”

Tudo isto vinha ao encontro da minha realidade e tomava-me imediatamente como um discípulo que apenas andava distraído. O espiritual entrava por uma janela diferente daquela em que eu tinha sido criado. Para além de todas as religiões, crenças ou mitos pagãos, enxergava um Plano Universal onde estava, como tudo e todos, inserido. Com este pensamento apaziguador, mergulhei em vários livros que me iniciavam num rumo que já não podia desviar-me. Sara fazia parte deste rumo. Saberia ela isso?

No fim do trabalho de grupo fui de novo à Quinta. 

Ricardina, a quem nunca contei o encontro com as meninas da propriedade vizinha, veio dar-me a novidade.

- A Quinta do Brasileiro foi vendida. Vivem agora lá duas meninas muito engraçadas, o Duartinho tem de as conhecer.

- Sorri, e dei-lhe umas pancadinhas nas costas. Ela também fazia parte dos blocos de mármore que me pertenciam para que eu edificasse.

Num alvoroço sem medida, peguei no boné, só para ter uma coisa na mão, e  lá fui para o local onde as tinha encontrado. Nem arrumara o saco no meu quarto. Ao sair a porta, reparei na postura de Ricardina na soleira da porta, fingindo que não me seguia com o olhar, e fazendo festas no Valete que se dispunha a seguir-me. 

Seria desolador contar que encontrei Sara com um rapaz que lhe prodigalizava alguns afectos. O facto é que depois de uma desilusão sem fundamento, comecei a conviver com as meninas da Quinta do Brasileiro, como toda a gente as chamava.

Passado um ano, tinha-me apaixonado pela Rita. Menos vistosa que a irmã, mais introvertida, tinha o condão de me resguardar de toda a melancolia. Ao pé dela estava em paz, e esquecera completamente as vozes do pântano.

 

 

Manuela  Nogueira (Portugal)
Maria Manuela Nogueira Rosa Dias Murteira é poeta, ficcionista, autora de obras para a infância, colaboradora de jornais e revistas, rádio e televisão.
Co-fundadora da Fundação Fernando Pessoa.