REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 17

 

AÍLA SAMPAIO

 

De olhos entreabertos

 

                                                                  

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
Contacto: revista@triplov.com  
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Desvarios de maio

  Desse olhar esgarçado sobre o poente,

dessa lamúria que é o vento antes da chuva,

fiz a tarde com seus desvarios de maio.

Não fosse hoje um domingo qualquer

eu teria motivos para não ler nada

e veria TV, bandeira branca a meio-palmo

e mansidão para seguir as procissões de Maria.

 

Mas não é assim o meu desenho

tão fácil de distinguir as cores e as linhas

rascunhadas.

Surpreendem-me vontades de sesta,

sono profundo ao meio-dia

e saudades que não posso mais matar.

Tanta abstinência, tantas orações

e o coração não sara...

continua a sangrar ao menor esforço

e a me matar aos poucos todos os dias. 

   
  Silêncio antigo
  Há sempre uma casa

com seu silêncio antigo

e seus conhecidos fantasmas

a nos habitar.

Há sempre a memória

de um amor interdito,

a dar a ilusão

de que a felicidade está

apenas

no que poderia ter sido.

 

O tempo vivido desliza,

guardando abismos que

devoram a carne do tempo.

O que nos pertence

é apenas o presente

e a certeza de que

eterno

é somente o que não se realiza. 

   
  Mudando o enredo
  Nada de metades ou frações.

Nasci para inteiros,

para desmedidas;

não para a vida inteira, mas para o instante

que pode esvair-se em segundos

ou durar para sempre.

 

Foi assim desde o início:

o possível, o viável,

a polianesca  resignação

que, por detrás das cortinas,

era desejo mal-resolvido.

 

Aprendi a sair do eixo

e a brigar com a impossibilidade do prefixo

por isso:

para mudar o enredo da minha história

e seu desfecho.

   
  Viagem
  A vida é o vagão de um trem

a qualquer hora

a soltar-se pelos trilhos.

Se fendem as trancas

na ferrugem das peças,

nenhuma alavanca detém a carga.

 

Sigo. Passageira sem estação nem rota.

Quando vou, estou indo de volta

como se por mim tudo fosse outra vez

sem ter sido nunca a primeira.

 

Meu corpo é minha bagagem,

arma atenta à cicatriz

que não fecha

e a que se cava

em tua ausência

materializada na cadeira vazia.

 

Ao meu lado, o passado:

sentença do efêmero,

algema sem trancas.

 

Sigo como um vagão

desgarrado do comboio,

querendo ainda obedecer

ao freio das alavancas.

   
  A cidade
  A cidade me esconde

entre ruas e esquinas,

perdida em mim

como suas avenidas

entre semáforos e arranha-céus.

 

Não sabe do mundo inteiro

que dorme

quando fecho os olhos

nem que suas ruas e casas

são apenas artérias de um corpo

onde a geografia

não dimensionou mapas.

 

A cidade me esconde

sob suas luzes

e não percebe

nos subterrâneos abismos

dos meus olhos,

um coração que pulsa

e é maior que ela.

   
  Trama do tempo
  O tempo tece sua trama

silenciosamente

como quem arquiteta armadilhas

e submerge ilhas na memória.

 

O chão seguro de outrora

de repente é abismo,

- subterrânea rua sem saída

em que andamos desavisados dos perigos.

 

Não guardasse eu a lembrança

das tuas mãos plantando gerâneos

em meus cabelos,

já estaria ao vento a nossa história. 

   
  Fado
  Fugi de todos os destinos

mas eles ainda atravessam o meu caminho

como fantasmas que se revezam para assombrar-me.

 

De nada adianta dormir;

a lida contra o vento se estampa em meu rosto

como palavras num pergaminho

e é irreversível a marca das tempestades.

 

Ninguém devora a carne do tempo impunemente.

 

Das braçadas contra a correnteza,

restou o cansaço, ficou a incerteza do porto

ancorada em presenças ausentes,

cidades perdidas no mapa da memória.

 

Fiz de nuvens o meu castelo alado

e sobre escombros escrevi minha história.

De nada adiantou seguir os desvios

e quebrar as correntes:

ninguém consegue fugir ao fado.

   
  De outro tempo
  Essa casa desabitada

perdida no abandono dos ventos

(que sopram sem direção)

é o corpo que veste a minha alma.

 

Suas portas batem

atrás de um adeus sem data,

cavando feridas nas paredes retintas,

guardando ferrugem nas trancas

e escoriações nos portais.

Há hera nas vigas e nos muros,

fechando porteiras, lacrando janelas

até sempre ou nunca mais.

 

No jardim, presente e passado

perdem-se soterrados

pelo  musgo que cresceu.

Dentro de mim, acordado,

geme um silêncio de muitas eras

e  grita a lembrança de um tempo 

que não é o meu.

   
  Da espera
  Dentro de mim existe um anjo

que, todas as manhãs, abre as asas

e voa pela imensidão;

ele põe um arranjo em meus cabelos,

ensina-me a calar os desejos

e a conviver com a solidão.

 

Aprendo com ele a espera

e a sobrevivência em tempos de guerra;

aprendo a ler os sinais do tempo

e dos ventos que sopram noutras direções.

 

Esse anjo, de vez em quando,

fecha os olhos, abre as asas

e vai-se embora por algum tempo,

para que eu desaprenda todas as lições!

   
  Enquanto não vens
  São teus olhos que eu procuro

quando acordo,

na desordem dos sonhos inacabados

que ficam entre os lençóis.

São tuas mãos que eu busco

quando durmo,

no vazio do dia terminado

sem uma palavra.

 

Enquanto não vens,

eu faço e desfaço mantas,

escuto teus passos na escada,

ponho os pratos na mesa,

entoo mantras

e rezo

para que não te percas pela estrada.

   
  Dono do tempo
  Quando chegares, deita tua cabeça em meu regaço

e colhe a dia, como se fosses o dono do tempo.

É tudo teu: o quintal ensombrado,

a rede estendida na varanda

e todas as minhas horas.

São teus também os meus olhos de criança,

que passeiam pela casa e pelo teu corpo,

como se andassem pelas ruas de Veneza.

 

Entre e coma do meu pão e beba do meu vinho,

mas não desfaça as malas.

Rega a flor que plantaste

e me diz umas poucas palavras.

O muro coberto de hera, a lua na calçada

e as libélulas

escutarão com tristeza os teus passos

indo embora

antes da madrugada.

 

Eu, não.

A espera me ensinou o silêncio,

mas não abalou a certeza da tua volta

(a qualquer hora).

Tu podes ir.

Só te peço que não digas nada.

Não olhes para trás nem batas a porta ao sair.

 

                                                   Fortaleza – Ceará - Brasil, 2011

   
 

(O livro “De Olhos Entreabertos” é um acervo de perto de cem poemas separado em capítulos temáticos. Prefácio de Dimas Macedo e orelhas (badanas) de Ana Jácomo e Nicolau Saião)

 

 

AILA MARIA LEITE SAMPAIO nasceu em Abaiara-Ceeará-Brasil, em maio de 1965, cursou as séries do Ensino Fundamental em Colégio de freiras, em Milagres, e o Ensino Médio no Colégio Cearense Sagrado Coração, em Fortaleza, de onde saiu em 1983. Graduou-se em Letras pela Universidade Estadual do Ceará - UECE e lá também fez o Curso de Especialização em Língua Portuguesa. Em 1993, ingressou no Mestrado em Letras da UFC e apresentou a dissertação Tradição e Modernidade nos contos fantásticos de Lygia Fagundes Telles, em 1996, ano em que nasceu a sua primeira filha. Em 1995, ingressou na Secretaria de Eduacação do Ceará, como professora concursada, e, em 1998, nasceu o seu segundo filho. Em 2001 passou a integrar o quadro de docentes da Universidade de Fortaleza - UNIFOR, ensinando Metodologia da redação no Curso de Direito, onde também foi Assessora Pedagógica. Coordenou o Curso de Letras durante dois anos e foi Assessora pedagógica do Centro de Ciências Jurídicas e do Centro de Ciências Humanas. É, atualmente, editora da Revista de Humanidades e leciona nos Cursos de Publicidade e Propaganda e Audiovisual e Novas Mídias as disciplinas: Língua Portuguesa I e II e Estética e Linguagem. Escreve contos, crônicas, poemas e ensaios, que vem publicando esparsamente em jornais, revistas e blogs. Publicou dois livros de poemas: Desesperadamente Nua (1987) e Amálgama (2001) e um de ensaio: Os fantásticos mistérios de Lygia (2009). É membro da Academia Cearense de Língua Portuguesa, cadeira 21. Quem quiser conhecer os seus poemas, suas crônicas e seus ensaios, acesse:
http://www.literaila.blogspot.com/
http://www.litebrasil.blogspot.com/