REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 16

 

 

 

Amanhecer na praia           

            O casal molha os pés. Cabelos grisalhos, roupas de banho da mesma cor, pretas. As afinidades já foram além das cores. Até o dia em que perderam a principal conexão da família, concebida há décadas no litoral da Bahia, em lençóis cercados de dunas. Ele se agacha para tocar a água; ela mira o horizonte. Se dependesse da vontade dela, não estaria ali, mas deixou de fazer escolhas desde a ausência definitiva do filho. O marido resignou-se e tenta fazer planos para os dois, mas as marés de cada um não são mais coincidentes.  

            - O Túlio ia gostar de tá aqui – disse a mulher.

            - Talvez esteja num lugar melhor – rebateu o marido.

            - O melhor lugar seria ao nosso lado.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
Contacto: revista@triplov.com  
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ADRIANO MACEDO

 

Nossa Senhora das Águas

                                                                  
 

 

            O homem silencia.

            - Quando eu era menina, achava que o mar acabava no horizonte.

            - Você nunca me contou isso.

            - Agora que eu tô lembrando. Pensava que a água se transformava numa cachoeira gigante lá no fim. Ficava com medo de entrar e de ser levada pela água.

            - Você ainda tem medo?

            - Não tenho medo de mais nada... O Túlio nunca teve.

            - Por isso escolheu o mar.

            - É... se tivesse, não teria se arriscado tanto.

            - A paixão do Túlio era o fundo do mar, era a vida dele.

            - Ele era a nossa vida.

            - Ainda é.

            - Mas a nossa vida não é mais a mesma.

            - Nem este é o mesmo mar.

            - Nunca será como antes.

            O homem silencia novamente.

           

Manaíra           

            Não são nem sete horas em João Pessoa. Na praia de Manaíra, outro casal entra na água. A mulher carrega a criança, uma menina de pouco mais de um ano. Meia hora de banho de mar, antes que o sol levante fervura. Na calçada e na rua ao longo da orla, pessoas de todas as idades, a pé e de bicicleta, exercitam-se antes de mergulhar de cabeça nos compromissos do dia. Duas cinquentonas conversam enquanto caminham.

            - Quê que ele queria? Que você esquecesse tudo num piscar de olhos?

            - Eu tava bem de botar um par de chifres no safado.

            - Mas pensa com calma, não precipita.  

            - Precipitar? Eu vou é dar uma lição no cachorro! Vou ligar pro Carlos. Ele odeia o Carlos, morre de ciúmes!

            - Toma cuidado pra não complicar as coisas...

            Em sentido contrário, quatro homens de meia idade igualmente confabulam durante a marcha.

            - Nessas horas tem que cortar o mal pela raiz.

            - E quanto foi?

            - Calculei bem uns cem mil.     

            - Chamou a polícia?

            - Não, um couro no cabra vai bem melhor.

            Um garoto caminha de mãos dadas com a mãe. A outra mão segura firme uma bola debaixo do braço. Ela estende a toalha na areia. O menino observa um rapaz a chutar uma bola em direção a duas crianças dentro da água.

            - Pode brincar com eles, se quiser.

            - Não, quero ficar aqui.

            - Leva sua bola e joga com eles.

            - Não quero!

            O menino quer, mas tem receio de ver a bola nova ser embicada da mesma forma para a água. E se perder mar adentro.  

            Um senhor de meia idade senta-se na murada que separa a calçada da areia. Preso à coleira, o rottweiler imita o dono e acomoda-se no passeio. O pensamento do homem está bem além do Mandacaru. Tenta farejar de onde vai tirar mais dinheiro. Não são apenas as contas a pagar, precisa enviar uma quantia ao irmão doente no sertão.

            Uma mulher nada a uns trinta metros da praia. Só ela sabe o que veleja na cabeça enquanto tenta costurar, uma vez mais, uma linha reta até a Ponta do Seixas. Repete o trajeto todo dia como se fora um ritual, iniciado na adolescência.  

            No céu, a brisa empurra nuvens desgarradas rumo ao continente.

            Uma senhora, de chapéu de palha e vestido branco, de tramas vazadas de algodão colorido sobre o maiô azul, ajoelha-se sobre a esteira de palha. Os olhos fechados, as mãos em oração. Inspira calma e profundamente. Aprecia o ar puro que vem do mar.

            A jornada é consagrada a Nossa Senhora da Conceição. É dia, também, de festa para Iemanjá. Para alguns seguidores, Nossa Senhora das Águas começou a ser cultuada logo cedo.

            Um homem de tênis corre na praia. Saiu do Bessa. Pretende seguir até Cabo Branco antes de retornar. No caminho, em meio aos sargaços, constata vestígios das primeiras oferendas lançadas à rainha das águas. Rosas brancas solitárias ou com as pernas cruzadas umas às outras são cuspidas de volta para a areia. Passa por duas crianças pequenas, acompanhadas da irmã mais velha, de seus oito anos. As meninas brincam de plantar as flores.

 

Oferendas 

            Em Tambaú, um rapaz de calça jeans e camisa de malha escura jaz tombado próximo a um quiosque. É conhecido por ali como um tremendo caixa d’água. Ao lado de outro quiosque, um homem dorme sobre o balcão. O corpo o forçou a ficar por ali ao invés de pegar a condução às cinco da manhã até Cabedelo. Dentro de pouco tempo abrirá o bar para os clientes do dia.

            Próximo ao hotel em forma de disco-voador, os barcos repousam sobre as ondas. Como cães adestrados, aguardam a hora da próxima partida. Sob as bênçãos de Iemanjá, alguns seguirão em breve para alto mar. Outros, dentro de mais um par de dias, deslizarão rumo aos bancos de areia de Picãozinho. A maré ainda está alta. Um grupo de pescadores, com água acima da cintura, limpa o casco da Flor de Lucena.

Descalços, com os sapatos nos dedos, dois jovens casais, turistas ainda vestidos de noite, caminham em direção ao mar.

            - O que é aquilo?

            - Deve ser o preparativo de algum evento.

            - Acho que é de uma festa religiosa, olha a santa lá em cima! 

            - Que santa deve ser?

            - Não tenho ideia.

            - Podemos fazer um pedido pra ela.

            - Você não sabe nem o nome da santa...

            - Mas santa é tudo igual, a gente só precisa é de ter fé. 

            Nossa Senhora das Águas encontra-se no altar improvisado no palácio montado em Cabo Branco, cercado de bandeiras azuis. A estrutura recebe os retoques finais para a festa noturna. Mas uma família inteira já se reúne à beira d’água. Duas senhoras, três mulheres, um rapaz, quatro moças e cinco crianças formam uma meia lua na areia. À frente, um homem beija a mulher no rosto e se agacha para carregar um cesto.

            - Odô iyá, Iemanjá... – diz a mulher. É boa esposa, tolerante, carinhosa, vaidosa e apegada à família. Um dos seus grandes medos é a solidão. E sua maior angústia é carregar um buraco infértil no ventre. Não sabe onde errou. Os olhos úmidos retesam o choro. Mais tarde, vó Maria vai lançar os búzios para ver a ciência dela para o próximo ano. O marido acompanha outros dois homens, um pouco mais adiante. Entram no mar com as oferendas nos braços. As pernas avançam sob a água, que chega a atingir quase a altura do pescoço.

            A menos de cem metros dali, três crianças, na faixa dos dez anos, disfarçam uma brincadeira, ao mesmo tempo em que acompanham o ritual à distância. Mais atentas ao balançar das cestas, os meninos esperam pacientes. Assim que o grupo deixa a areia e a primeira cesta é lançada de volta, correm para o mar.

            - Iemanjá não quis! – expressa com espontaneidade uma das crianças.

            - Oche, não tem tesouro! – diz a outra, a quem o colega encheu a cabeça de imaginação.

            - Panha logo! – ordena a terceira.  

            Ligeiros, retiram as oferendas – espumante, vela, alfazema e sabonete – e saem correndo. Um pedaço de papel ficou para trás. Caiu para fora da cesta. O homem de tênis vê a cena, estaciona as pernas, reclina os joelhos e pega o bilhete, dobrado em dois. Fica entre bisbilhotar o pedido a Iemanjá e deixá-lo oculto. Olha discretamente para os lados e vê, a uns cinqüenta metros, um preto velho agachado a tragar um cigarro de palha na mata rasteira. O homem tem a impressão de estar sendo observado em flagrante delito. Levanta-se, rasga o papel e o lança sobre as ondas. Mais por medo dos orixás do que pela falta de interesse ou pela censura do preto velho. Faz o caminho de volta, em direção à praia do Bessa.

            - Eu sei que você tá cansado de ouvir as mesmas coisas – diz a mulher de maiô preto e cabelos grisalhos.

            - Não tô cansado, mas sinto que você não é mais você.

            - Sou o que sobrou de mim.

            - Você deixou de fazer as coisas que mais gosta.

            - Tô aqui, não estou?

            - É, tá... pensei que não fosse conseguir.  

            - É engraçado, quando a onda vem, tenho a sensação de que o mar vai me devolver o Túlio... e o peito dói porque ele não aparece... Mas quando a água volta, parece que o mar tá me puxando pra dentro, como se quisesse me levar até ele. 

            - Isso é bom, você vai conseguir superar.

            A mulher olha para o marido e o acaricia no rosto. O olho se enche d’água. O marido a envolve nos braços na expectativa involuntária de não deixar os sentimentos da mulher à deriva.

            - Vamos embora?

            - Vou dar apenas um mergulho.

            - Tá bem, mas não demora. Vou comprar uma água de coco.

            O homem sai da água e repara, pela primeira vez, nos preparativos do palácio montado para Iemanjá. Não sabe que o mar é salgado porque Nossa Senhora das Águas verte ali suas lágrimas pelos filhos que partiram. Quando olha para o mar, a fisionomia fica tensa. Vê a mulher se distanciar e nadar rumo ao horizonte.

 

 

Adriano Macedo (Brasil)
Jornalista e escritor. Natural de Belo Horizonte (MG). Autor de "O Retrato da Dama" (Autêntica Editora). Tem textos publicados nas revistas eletrônicas Triplov, Releituras e Tanto, e na coletânea de minicontos Pitanga.