REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 15

 

 

 

1. Introito

 

Com os braços estendidos para o céu revolto, no tempestuoso mistério duma paisagem insólita, a mão direita suavemente aberta contrastando com a esquerda espalmada, em frenesi e arrebatação do espírito, e mirando o firmamento, as expressões insinuantes de São João, impregnadas de sentido ascensional, denotam o instante visionário, o alumbramento metafísico.  Ao lado do evangelista e preenchendo espaços da cenografia, figuras nuas em se contorcem em gestos de desespero e pedidos de clemência. A túnica em azul do protagonista, que nasce sobre um despojo em púrpura, alastra-se à esquerda do quadro. É a imagem do apocalipse, o juízo final. Nesse contexto onírico, a concretizarem o espiritualismo quase agônico do pintor, crianças são lançadas ao ar e algumas indumentárias flutuam. Todas as figuras, situadas defronte de tecidos verdes e amarelos, parecem como que estiradas em levitação, como que banidas da contingência física, tornando-se etéreas, flutuantes. Sugerem, no âmbito imaginativo e delirante da obra, a sublimação da quimera pela recusa dos valores ordinários, tangíveis e existenciais. É a hora profética de os humanos prestarem contas pelos atos da vida.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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ROMILDO SANT'ANNA

El Greco:

Quadros em Êxtase

 

Este texto enseja-se na conferência “O Misticismo Barroco em El Greco”, proferida no III Seminário de Cultura (abril de 2011), da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura.                       

 

 

 

 

 

Com essas expressões icono-gráficas de atormentada teatra-lidade, o gênio prodigioso de El Greco (1541-1614), já no ocaso da vida, plasmou em tela a sua Visão de São João (na versão do Museu Metropolitano de Arte, de Nova Iorque). Tal imagem ilustra a passagem apocalíptica em que, após a morte e ressurreição de Jesus, o mundo está chegando ao fim:

ElGreco. Visão de São João (1608-14). Óleo s/ tela, 225 x 193 cm, The Metropolitan Museum of Art - Nova Iorque.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

No dia do Senhor, o Espírito tomou conta de mim.  E atrás de mim ouvi uma voz forte como trombeta, que dizia: Escreva num livro tudo o que você está vendo.  Depois mande para as sete igrejas [representadas pelas comunidades da Ásia]: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia. 

(Apocalipse, Prólogo).

Nessa esplêndida pintura que chama os humanos à conversão para o bem, como no excepcional caudal de obras concebidas pelo artista, acenos expressionistas, a livre associação de ideias e automatismo psíquico, e as sobreposições espaço-temporais se conjugam para a consagração dum momento culminante, um instante paradigmático de uma das mais belas e inspiradas invenções do gênio artístico, com sua lógica reversa da comunicação baseada nos princípios da linguagem sugestiva. Há prenúncios cubistas e surrealistas nessa obra, tornados estética e intelectualmente plausíveis nos tempos modernos.

  2. Ambiente Religioso e Contrarreforma
 

       

Há notícias pouco consistentes acerca da vida do pintor, escultor e arquiteto Doménikos Theodokópoulos, apelidado El Greco (o artigo é espanhol, o substantivo próprio é italiano), sobre os anos e desenganos de sua inquietude. Plasmava em telas a óleo suas complexidades psicológicas, iconoclastias e sentimento de liberdade inventiva. Nascido em Cândia, na ilha grega de Creta (que pertencia ao domínio veneziano), exilado aos 20 anos em Veneza, com rápida, porém fecunda, passagem por Roma, centro cultural e artístico do cinquecento italiano, nessas paragens se prefiguram e se esquadrinham as matrizes genealógicas de seu estilo único na história da arte. 

Autorretrato (1595-1600). Óleo s/ tela, 52 x 46 cm, The Metropolitan Museum of Art (Nova Iorque).

 

Vivendo definitivamente na Espanha, onde passou os últimos 38 anos da vida, El Greco encontrou no ambiente medieval e místico de Toledo a ambientação para seu espírito exasperado, ardor religioso, para sua inclinação à autonomia de expressão plástica, próprios aos espíritos profundamente criativos, tensos e dionisíacos. A Espanha de seu tempo, sintetizada na paisagem toledana, manifestava o arrebatamento zeloso pelo Concílio de Trento, acontecimento basilar da Contrarreforma, em reação aos movimentos protestantes do norte da Europa, de meados do século 16.

Por consequência duma existência itinerante no início, o artista confecciona a mescla de influências sedimentadas no imbricamento de civilizações mediterrâneas distintas. Em tais influências vibram o temperamento de três línguas – instrumento com o qual se pensa o mundo – e a tensão provocada por ressonância e estranhamento de três tendências estéticas: o ambiente voltado à representação religiosa, à antiga maneira estática e inatural bizantina (Ilha de Creta), o clima de apogeu do humanismo renascentista, em que frequentou os estúdios dos mestres Tiziano e Tintoretto e conviveu com o gosto pelo fantástico (Veneza), e o ambiente de Toledo, austero e solene, centro da vida eclesiástica espanhola, nos tempos do rei Felipe II. Na Espanha, o mesmo anseio religioso e de elevação espiritual já forjara outros místicos e devotos do século 16, como Santo Ignacio de Loyola (Ejercicios Espirituales), Santa Teresa de Ávila em seu labirinto de labirintos (Las Moradas) e San Juan de la Cruz (Cántico Espiritual e Noche Oscura), todos absorvidos pelo grande interesse intelectual e literário do pintor.  Instalado na velha Toledo, “esa montaña que, precipitante, / ha tantos siglos que se viene abajo” (Góngora), Toledo da esplêndida catedral gótica, do Alcázar, da ponte de Alcántara, do rio Tajo (o Tejo), do “barrio judío” onde inda hoje se conserva a residência do artista, El Greco pode desenvolver sua vocação estética e espiritual de evasão aos espaços imaginários e sobrenaturais, e tornar-se um dos artistas culminantes da história.

Ainda que não fosse de berço ibérico, e orgulhoso de sua premissa helênica (assinava seus quadros com letras maiúsculas do alfabeto grego), ninguém com mais agudez que Doménikos Theotokópoulos soube exprimir com igual fecundidade a atmosfera religiosa da Espanha de seu tempo. Contudo, como todo autor ungido de genialidade, esteve além dos contornos peninsulares, tornando-se atemporal e universal, como seu contemporâneo Miguel de Cervantes e seu “caballero de la triste figura”, espelho donde se miram os impulsos de evasão aos recantos dos sonhos e os enlevos da alma.

Como mestre de todos os tempos, atual, inexaurível e antecipando-se a seu tempo, El Greco suscitou inspirações artísticas impressionistas, expressionistas e da modernidade, como se observa na beleza rósea e precursora do Les Demoiselles d’Avignon, de Pablo Picasso, obra motora do cubismo na arte. Nessa tela, o artista malaguenho reverencia a pintura dos instintos, das subjetividades essencialmente inventivas, das sobreposições espaço-temporais das formas semântico-pictóricas, da irreverência aos padrões dominantes, enfim, seu afeiçoamento ao tino pessoal e estro do artista toledano. Em verdade, embora posicionado em pedestais altíssimos, mas considerado um tanto estranho para os valores de sua época, El Greco foi redescoberto e revalorizado em finais do século 19 e inícios 20.

 
  Picasso. Les Demoiselles d’Avignon (1907). Óleo s/ tela, 243 x 233 cm, MoMa - The Museum of Modern Art, Nova Iorque e Visão de São João, de El Greco.
 

3. Configurações Plásticas

 

Um matiz radical na expressão plástica desse barroco é seu fascínio pela composição assimétrica, pelo geometrismo sutil, pelas desconstruções das imagens, seu desdém pelas formas e cores naturais e imitativas, sua constância em representar figuras verticalizantes, alongadas, esguias e etéreas. São marcas herdadas pelo amor a Tintoretto, claramente perceptíveis em obras como São Marcos Liberta um Escravo (Galeria da Academia, Veneza), A Conversão de São Paulo (Galeria Nacional de Arte, Washington, DC), Reencontro do Corpo de São Marcos (Pinacoteca de Brera, Milão). A esse desapreço às convenções formais, preferência pelos pormenores e exagero de elementos, desproporções das massas em grácil harmonia, gestos enigmáticos, cores brilhantes e tratamento irracional do espaço e da luz evocam o maneirismo italiano, tentência que alcançou em El Greco sua última e mais sublime expressão em pintura.

Alguns estudiosos chegaram a explicar esse maneirismo das figuras espichadas na obra do artista como resultado de um defeito ocular, o astigmatismo. De qualquer modo, através dessa recorrência estilística de representação de criaturas estilizadas, El Greco, loquaz anatomista de figuras retorcidas e serpenteantes, exprime com singularidade sua devoção aos temas religiosos, manifestos com excitação e teatralidade. Passagens do Antigo e Novo Testamento se afiguram como atos de celebração. Em sua obra, personagens delgados e ondulantes elevam-se às alturas (O Enterro do Conde de Orgaz, Igreja de São Tomé - Toledo), como que emanadas de várias fontes artificiais da luz, cores diáfanas, trêmulas e fosforescentes esculpindo as formas. A espacialidade múltipla dentro do mesmo espaço ficcional realça convivências simultâneas no plano principal e instauram uma atmosfera de visões prodigiosas, sobrenaturais. Como técnica recorrente em sua carreira, realçam-se, entre tantas obras, em A Agonia do Horto (National Gallery, Londres) e O Espólio (Catedral de Toledo).

Tendo-se como base a percepção da plurissignificância dos planos pictóricos na obra do artista, o cineasta e estudioso russo Sergei Eisenstein (do filme O Encouraçado Potenkin, 1925) viu elementos que também serviram de inspiração para sua famosa “estética da montagem cinematográfica”. Seus estudos e admiração por El Greco ajudaram-no a conceber alguns de seus procedimentos de representação da “visão lisérgica”, dos fulgores alucinantes por meio da captação da imagem pela lente de 28mm (a objetiva de grande angular) que altera as figuras e realça a profundidade do campo focal cinematográfico. Sobre esse particular, o belo ensaio de Arlindo Machado (“Eisenstein: Um Dialogismo Radical”), abordando tal procedimento da linguagem como montagem, escreve que “trata-se da desproporção entre os planos de frente e de fundo que permite ao motivo do fundo saltar para o primeiro plano, numa violação absolutamente cinematográfica da escava perspectivística convencional”.

 

Ilustração para O Encouraçado Potenkin, de Eisenstein.

 

No processo de codificação das figuras em El Greco, ao descartar os critérios usuais da composição em pintura, suas cores multifacetadas, suas figuras adelgaçadas, suas fulgurantes e incisivas marcas de pincel criam nos interiores das cenas e, mormente nas vestes dos personagens, ondulações e refrações rápidas e flamejantes donde parecem emanar chispas verticalizantes e imprimem sentidos de intensidade devocional, leveza e espiritualismo, o dialogismo entre as zonas de significações superiores e inferiores, caráter transcendente e vida material. Instaura as tensões entre a existência terrena do ser e seu anelo de infinitude. Repare, leitor, com todo o peso do corpo sustentado na perna esquerda, quase que na ponta dos pés, a imagem de Jesus salta para o primeiro plano (em contraposição à turba tempestuosa de seus verdugos e personagens periféricos), e parece flutuar em consonância com a representação de seus olhos, esquecidos das coisas deste mundo e perdidos nas miragens do além. Sua mão direita, como num gesto de feminilidade sentimental e romântica (a apontar o corpo físico, em contraste com a evasão dos olhos), enfatiza a emotividade latente e arrebatadora da cena evangélica.

 

A visão em “grande angular” propicia às obras do artista um perspectivismo desconcertante (dado por linhas imaginárias em diagonal) e imprime quase sempre dimensões superlativizantes ou aumentativas à figura central. Esta, descon-siderada nas leis das representações realistas, se assoma e se avoluma em contorções rítmicas em meio à perturbação dinâmica e “teatral” dos corpos, dando-se a impressão de que Cristo é mesmo o filho do Pai (essência infinita) que se fez homem (natureza finita). Mortalidade e divindade se corporificam nas tramas da tela e milagre das tintas. O vigor cromático dado pela irisação de luzes contrastantes (o púrpura metálico em confronto com os tons baços ou enevoados ao redor) determina que a organização plástica da obra supere a dimensão do visível, aparentada ao mundo pulsante e, por meio de procedimentos simbólicos, anuncie a dissipação gradativa das correlações com os espaços terrenos para o alcance idealizado das plagas divinais e transcendentais.

El Greco. O Espólio (1577-79). Óleo s/ tela, 285 x 173 cm, Sacristia da Cate-dral de Toledo.

 

Esse pendor para a abstração ocorre mesmo quando o artista enfocava temas tangíveis.  Numa espécie de cartão postal subjetivo, eis a tradução da velha Toledo que, na gradação da terra para o céu, é paulatinamente esvaída da mate-rialidade verdejante e pedregosa de sua paisagem, e retratada debaixo de um agongorado e misterioso painel de enigmas:

                                                                            (detalhe)

 
 

Vista de Toledo (1597). Óleo s/ tela, 121 x 108 cm, The Motropolitan Museum of Art (Nova Iorque)

  4. Pinturas e Repinturas
 

Nas cerca de duas centenas de telas que produziu, El Greco usava modelos vivos, miniaturas articuláveis ou desenhava de cabeça até chegar ao esboço principal esforçadamente conseguido. A partir duma concepção primária, costumava produzir diversas variações ou réplicas do mesmo esboço, às vezes marcadas por amplos intervalos de tempo. A visão equivocava de que “pintava com rapidez”, em vista da profusão célere de suas concepções, contradiz com o rigor com que se debruçava diante duma ideia, labutando incansavelmente para chegar às expressões fundamentais de cada detalhe em harmonização com o todo. Reparemos na singeleza das mãos que acariciam, elas sozinhas a enfatizarem ou a emotividade quase infantil ou feminina do Cavalheiro com a Mão no Peito, ou a resignação santificada de Cristo ante o padecimento da cruz ou em meio aos algozes que lhe arrancarão as vestes, nas diversas versões de Cristo Abraçado à Cruz e O Espólio:

 

 

Às vezes demorava dois, quatro anos ou mais anos para finalizar uma obra e não recusava solicitações de encomendas vindas de todas as partes da Espanha e países da Europa (convivia em seu atelier com vários ajudantes e aprendizes). Hoje, diante de seus quadros em museus e galerias de arte de todos os continentes (no Museu de Arte ‘Assis Chateaubriand’ de São Paulo, o MASP, há uma das versões de O Êxtase de São Francisco, produzido entre 1590-95), às vezes se tem a impressão de tratar-se da mesma pintura, tamanha coincidência de elementos que compõem o enfoque do tema, enquadramentos das formas no espaço e constância das mesmas cores sempre usadas de forma simbólica. Ainda que conservasse seus estudos e rascunhos, não há como não admirar no artista sua extraordinária memória visual que permitia com que suas criações, mesmo que fisicamente distantes entre si no espaço e no tempo (vendi-as para colecionadores e instituições sacras de diversas partes), permanecessem vivas e presentes dentro dele, prontas para serem repintadas. Sugerem também que o artista realizava uma revisitação ritualística àquelas obras, pintadas como atos sinceros de devoção e louvor religioso. Reparemos as versões de Cristo Abraçado à Cruz a seguir, realizadas com a diferença de dezoito anos entre uma e outra.  Contra o céu borrascoso e ameaçador, o Messias plácido, resignado e com os olhos em fuga para o além, cumpre o desígnio do martírio para nos purificar.

 
 

1. Tela de 1580. 105 x 79 cm, The Metropolitan Museum of Art (Nova Iorque). 2. Tela de 1602. 108 x 87 cm, Museo del Prado (Madrid)

 

O tema da “purificação do templo”, não muito comum na tradição da pintura, atesta como diversas versões da mesma composição saíam de seu estúdio. Nesse caso, faz referência simbólica às heresias de seu tempo, assunto de especial importância à Contrarreforma, ação sociopolítica (de ideologia católica) absolutamente fervorosa na cidade onde vivia.  A Expulsão dos Mercadores do Templo, além da famosa versão da Galeria Nacional, de Londres, há a versão de 1568-70, da Galeria Nacional (Washington DC), a de 1570-75 (Instito de Artes – Minneapolis, EUA), concebida sob influência direta da renascença italiana, a versão no Museu de Belas Artes (Boston) e, três décadas após, a de 1600, da Coleção Flick (Nova Iorque), e a de 1600-14 da Igreja de San Ginés de Arlés (Madri), estas mais concentradamente barrocas.

Lionello Venturi, referindo-se às diversas variações sobre a mesma obra, avalia que “os volumes das primeiras versões executadas na Itália se adelgaçam pela sequência e se tornam no quadro da National Gallery, de Londres, e naquele da Iglesia de San Ginés, de Madrid, puras aparições de luz, com as representações do espaço se reduzindo a indicações simbólicas. Enquanto que no início encontramos a coexistência contrastante das diferentes tradições, nas últimas versões a fusão de todas as ocorrências é total e o estilo perfeitamente realizado”.

 
  1. Tela de 1570-75. 106 x 147 cm, Minneapolis Institute of Arts (EUA). 2. Tela de 1568-70. 88 x 107 cm, The National Gallery of Art (Washington DC)
 

Os quadros logo acima, quase um preito à escola veneziana, são bastante parecidos. Foram pintados pouco antes de o artista instalar-se em Toledo, em 1577. Na versão do Instituto de Artes, de Minneapolis, no canto inferior direito, El Greco compõe um grupo de personagens que, de costas para a cena, ao mesmo tempo em que se ligam a ela como “comentaristas”, representam explícita homenagem a artistas da renascença italiana que o influenciaram no começo: retrata os bustos de Tiziano, Michelangelo, Giulio Clovio e Rafaello. A partir dessa concepção realizada à base de semicírculos formais enfeixando os personagens e o geometrismo de certos elementos da composição, El Greco, devoto inspirado em temas sagrados, exprime em tom eloquente sua visão emocionante do episódio evangélico em que Jesus flagela com um açoite aqueles que fizeram de sua igreja um lugar de comércio e profanação.

 

Na versão acima, da Galeria Nacional, de Londres, repito, o pintor expressa com nitidez metalinguística seu acercamento à obra de Tintoretto: construções urbanas servindo de cenário, o piso quadriculado, geométrico, enqua-dramento de personagens em ação e coloração típica do maneirismo veneziano (àquela época os próprios artistas fabricavam as tintas e mantinham a sete chaves o segredo de suas cores).

Expulsão dos Mercadores do Templo (1600), Óleo s/ tela, 107 x 124 cm, The Flick Collection (Nova Iorque)

 

Nas formas arquitetônicas, os baixos-relevos da parede enfatizam a ideia predominante da “purificação do templo”: como que perifericamente, as cenas do Antigo Testamento da expulsão de Adão e Eva do paraíso, e do episódio em que Abraão, por obediência a Deus, sacrifica seu único filho, Isaac.

São referências paralelas que se conectam e interagem com o tema da “purificação”. Por outro lado, a concepção plástica do artista se inspira na natureza das imagens tipicamente barrocas: a cena é expressa como um instantâneo fotográfico em que as figuras aparecem em movimento. Consagra-se o instante de barulho e grave reprimenda pela fixação dos gestos incompletos: um personagem se abaixa para recolher a mercadoria, outro se desequilibra, outro se atropela em tribulação, outro se protege do açoite, uns comentam, indignados com o que presenciam, outro observa, ajoelhado, em expressão tensa, como a ouvir uma interpretação do fato.

 

 

Expulsão dos Mercadores do Templo (1600), óleo s/ tela, 106 x 130 cm, The National Gallery (Londres)

 

Numa aparente desordem, no entanto, os personagens se distribuem de maneira homogênea e unitária, tanto pelo enquadramento das atrações em cena, quanto pelo cromatismo a esculpir os panos das vestimentas.  Observemos: bem ao centro, como no cruzamento de duas linhas imaginárias em diagonal, a figura de Cristo, arrodeada por amarelos flamejantes e poderosamente explosivos, apresenta-se com vestes em matizes de cores púrpura e azuladas, incrementadas de formas ondulantes e rápidas de reflexos da luz (o vermelho simbolizava nobreza). Sustentado na ponta do pé esquerdo e a mão direita alevantada, a figura do Messias se contorce em espiral, como num “S” ao revés. Nesse contexto de signos, a forma verticalizada e a sensualidade de Cristo dão-lhe um aspecto de etérea leveza, pairando no espaço, a propiciar-lhe o significado de existência enlevada, mais que de pessoa sujeita às leis da gravidade. A seu lado, para onde se dirigirá o açoite, a turba agitada e convulsa dos comerciantes forma um grupo caracterizado pela parcial nudez.  Ao lado esquerdo de Jesus, os apóstolos vestem panos em tons acinzentados, amarelos, verdes e azuis, no mesmo diapasão de temperatura cromática que remexe em vários quadrantes do espaço pictórico e salta aos nossos olhos.

A divisão verificada na composição desta repintura de Expulsão dos Mercadores do Templo, basicamente em uma figura central e dois grupos laterais, ademais, parece estar sendo encaminhada por uma espécie de cavalete ou banca de mercador, caída na parte central inferior da cena. Trata-se de um detalhe periférico e inanimado a revelar o tumulto. Aberto em ângulo, esse objeto cênico orienta nosso olhar, simultaneamente, para os lados esquerdo e direito, onde se situam as duas massas de personagens que se distribuem em torno de Cristo. Resultado de um problema ocular, o astigmatismo, ou antevisão do efeito da “visão em grande angular”, a angulação das imagens imprime maior dimensão à criatura dominante na cena, e que se agiganta como que a magnificar sua hierarquia divinizada em relação aos seres mundanos.

Essa obra, expressão do que seria um radical estilo barroco, caracteriza-se, repito, por abruptos e incisivos contrastes formais e cromáticos.  Além dos mencionados, dois outros são fundamentais.  O primeiro se verifica ao compararmos a convulsão do espaço interior do templo em relação ao espaço exterior, visto através dos portais em arco e caracterizados como cenários estáticos (movimentação versus estaticismo). O segundo se verifica ao compararmos a tribulação dos personagens no espaço interior do templo com as expressões de alheamento da jovem que assoma à direita da cena, por um corredor em arcos. Trata-se duma criatura caracterizada pela ambiguidade tão estimada pelo barroco. Se, de um lado, suas vestes e gestos lânguidos a revelam como pertencente à orbe dos apóstolos, de outro, o cesto que traz à cabeça a denuncia como pertencente ao grupo dos hereges e profanadores da igreja.

Muitos outros procedimentos ilustram o refinamento de El Greco nessa versão da Galeria Nacional, de Londres. Os desenhos lineares e contornos típicos da arte renascentista são substituídos pela construção de figuras com base predominante das cores com suas manchas e rastros de pincel.  Por outro lado, o artista aplica os tons cromáticos que se submetem mais ao princípio da significância do imaterial que ao princípio da representação naturalista e imitativa. As linhas são diluídas pela atmosfera luminosa das cores. Essa tendência, mais sugestiva que figurativa, repito, participa da construção do dinamismo visual da obra, intermitente na representação da vida em ação, teatral em simbologias e insinuações sensório-emocionais.

Com refinamento e exasperação que prenuncia e ao mesmo tempo sedimenta o ideário barroco, essa Expulsão dos Mercadores do Templo encerra a identidade espanhola dos finais do século 16 e limiares do 17, parece que encalacrada na atmosfera mística da velha Toledo. 

 

Devido à atitude inovadora de nosso pintor, por muito tempo não foi compreendida, pois seu temperamento não cedeu um til de seu ideal de liberdade e fantasia para render-se aos preceitos convencionais. René Huygue, filósofo francês, escreve que “com ele [El Greco] exprime-se a necessidade que agora o homem sente de escapar à sua condição carnal, de estirar a forma até ao seu limite, de consumir os esplendores da matéria para dela se evadir, de acentuar a cor e a sua estridência até ao clarão da luz, para novamente se unir a Deus transcendendo-se”.

(Detalhe)
 

A audaciosa obra do artista, concebida em estado de êxtase e, algumas vezes, batendo a porta dos delírios, alheia-se do mundo dos objetos definidos; seus estímulos ópticos se sobrepõem aos elementos cognitivos de tal modo que, numa dimensão pré-lógica, é mais sinestésica que intelectual. Põe-nos a meditar sobre o vão livre que separa a matéria do espírito, o mundo tangível do prodigioso. Em atos de superação das coisas visíveis, seus exuberantes quadros solidificam a representação plástica das sensações metafísicas, dos céus e infernos acesos em nossos instintos e suscitam os medos. Com a atemporalidade das realizações magistrais, colocam-nos na corda bamba das visualizações pressentidas. Afirma o pesquisador Antonio Úbeda: “El Greco está hoje ‘na moda’ porque só nosso tempo compreende o que há de firme e substancioso naquelas arrogâncias”. Dando formas aos estados devaneantes, sempre afoito e descontínuo em relação às estéticas em voga, El Greco insere-se entre os criadores mais originais e inventivos da arte sacra, nos sonhos de todos os tempos.

  Referências bibliográficas:
 

ASSAIGNE, J. La Peinture Espagnole – Des Fresques Romanes au Greco. Genève: Skira, 1952.

CÁMARA, Alicia, El Greco [Col. El Arte y sus creadores, nº 14]. Madrid: Historia 16, 1993.

DUCHEL-SUCHAUX, G. Guía iconográfica: La Biblia y los Santos. Madrid: Alianza 1996.

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VENTURI, L. Les Grands Siècles de la Peiture – XVI Siècle. Paris: Skira, 1955, p. 256.

 

 

Romildo Sant'Anna (Brasil).
Escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

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