REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 15

 

 

 

 

Há que se começar este texto com um protesto. Desta feita, não se trata de um texto sobre um “defunto-autor”, tampouco um “autor-defunto” (sem delongas ontológicas). Aos gênios, a morte não é desígnio inexorável, portanto talvez não faça sentido o título que se propôs para este evento literário. Vide a discussão sobre a fidelidade de Capitu, a mais fértil e longeva polêmica da história de nossa literatura, vencendo de braçada as rocambolescas tramas teledramatúrgicas tão caras ao “taylorismo-entretenitivo-televisivo” marcadamente hegemônico em nossa tradição cultural recente. Somente mesmo um bruxo (epíteto que lhe é indiscutivelmente justo) para operar tal sortilégio póstumo e perdurar quixotescamente diante de forças tão onipotentes, tal qual infinito espólio “tubercúlico” (em forma de batatas) em um tempo de magos e bruxinhos de popularidade e prestígio inimagináveis para os parâmetros do seu tempo.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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REINALDO RAMOS

 

Sobre Machado de Assis

 

 

Publicado na coletânea "A Importância de Machado de Assis 100 anos Após Sua Morte" editada pela Academia Brasileira de Letras via concurso nacional em parceria com o Jornal "Folha Dirigida"; Setembro/2008

 

O feito merece uma visada mais atenta. A partir desta simples constatação sobre a controvérsia em torno da suposta violação de Capitu de seus votos matrimoniais e tendo sido mencionada a similitude do modo peculiar de combate do “Cavaleiro de triste figura”, Don Quijote de La Mancha, com a perenidade da herança Machadiana, proponho que façamos um “exercício conjecturante” sobre os resultados de uma utópica “correção de rota”, onde os “moinhos de vento” a se desafiar seriam a iniqüidade e a estultice que há razoável tempo vêm campeando nesta terra ensolarada. Em lugar do modelo Romanesco clássico consagrado pela mídia hegemônica (indisfarçavelmente sustentáculo de um complexo estado de coisas cuja discussão aqui redundaria estéril), adicionaríamos boas doses de Machado de Assis ao conteúdo veiculado diariamente pelos canais de TV, como se faz com a adição de flúor à água corrente para a prevenção das cáries ou do iodo ao sal de cozinha para as moléstias da tireóide. Discorrerei adiante sobre as conseqüências que se me afiguram inelutáveis dentro desta nova configuração hipotética (por mais arbitrário que possa parecer, seria novamente ocioso listar e justificar todas as premissas das inferências a seguir, mas como trata-se de um “livre exercício conjecturante”, me permito a liberdade de não entrar em minúcias argumentativas dada a exigüidade de tempo e espaço).

Talvez experimentássemos uma redução drástica das demandas irracionais de consumo e das inúteis e onerosas idas e vindas aos consultórios psicanalíticos e prateleiras restritas das farmácias (algo muito a calhar em tempos de “felicidade química”, a evocar o ideal antecipado pelo "emplasto sublime" de Brás Cubas). A ironia marcante de sua obra é como um elixir expurgatório. Machado é um “colocador de pulgas” atrás de orelhas, exatamente como aquela que foi companheira de Bentinho durante toda sua jornada. Além do mais, é suposto que as bases tradicionais das uniões conjugais estáveis viessem a passar por profundas revisões, devido à prática desta verdadeira modalidade de “prevenção em saúde psico-social” avant la lettre – sem citarmos os prováveis ganhos em poder crítico-reflexivo das camadas médias da população. Ao lidar com a esmerada construção subjetivista e com o jogo meta-discursivo de Machado, somos convidados a “espiar” a fragilidade e os inconvenientes da condição social do existir, penetrando suavemente nas sendas brumosas das pulsões transgressoras mal sublimadas da psique humana (com a licença da apropriação do jargão eivado de ecos teóricos do Sr. Freud). Portanto, não parece uma conclusão demasiado forçada guardar tais expectativas, ainda que estes padrões, por não serem aferíveis, estejam amaldiçoados pela incomensurabilidade - a lepra da pós-modernidade, miséria desse tempo de Deuses em forma de tabelas e gráficos.

Mas abandonando estes devaneios futurológicos e reposicionando os vagões nos trilhos, cabe agora dissertar efetivamente a propósito da importância de sua obra um século após seu “encantamento” – eufemismo cunhado posteriormente por Guimarães Rosa para minimizar o estigma do ato final, o aniquilamento definitivo do ser. A obra de Machado de Assis é reatualizada a cada vez que o homem moderno (ou pós-moderno, como preferirão alguns) se ressente de sua fragilidade ao lidar com a liberdade e suas encruzilhadas, anunciada pela falência prematura das utopias, instituições e grandes verdades pretensiosas, herdeiras das tradições iluminista e positivista – devidamente diagnosticadas e satirizadas pela cáustica verve niilista de Machado. Machado de Assis renasce “Rodrigueanamente”, condenado a ser póstumo, vítima da própria genialidade. Habilíssimo enxadrista, se vale com maestria do recurso aporético, além de conduzir os dramas psicológicos de suas personagens mantendo um esquema narrativo minucioso, conferindo aos seus escritos um verniz de universalidade e atemporalidade. Deste modo, enquanto o homem for este ser cindido pela contradição e pelo devir – o que lhe é inescapável, dada a sua própria compleição - sua presença será fundamental. Logo ele, que tanto destacou o herói do enfado, da casmurrice, da margem, do quase-ser; o silêncio, a solidão, o rir-se de si mesmo, a mesquinhez da vida acossada pela primazia dos valores da aparência sobre os da existência e a sombra implacável da finitude. A glória dos heróis épicos que jazem sob a terra tal qual as batatas, o petróleo e os defuntos, dando seqüência ao eterno ciclo de morte e renascimento é irmã da glória conquistada por Machado de Assis – a imortalidade através de sua obra e de seus feitos. Não há nada de metafísico nisso. A busca inconsciente da imortalidade é própria do fazer humano, seja no intercurso sexual, no plantio de sementes arbóreas, nas manifestações artísticas ou até mesmo na simplicidade de nossa rotina – caso renunciemos ao direito de legar nossa miséria às próximas gerações - amarrando cadarços, regando plantas ou coando café: Casmurramente, Machadianamente, dissimuladamente.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

Reinaldo Ramos nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, em Agosto de 1978. É professor de Filosofia no ensino médio da rede pública, tem inteligência mediana, pertence à classe média suburbana e é, seguramente, alguém bem pior que você. Já estudou Cinema, fez mestrado em Bioquímica Médica e foi premiado em um concurso nacional promovido pela Academia Brasileira de Letras em parceria com o Jornal “Folha dirigida” em 2008 com uma redação sobre os cem anos da morte de Machado de Assis.
Email:reinosdafilosofia@hotmail.com
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