REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 12

 

DORA GAGO

Florbela,

a Princesa Desalento

 

 

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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1

 

     Florbela não consegue dormir, embora a noite tenha chegado há muito, sorrateira, com seus passos de cetim negro. Acende mais um cigarro - companheiro constante e traiçoeiro, cada vez mais presente e necessário.

Corre o dia 7 de Dezembro de 1930 e está quase a cumprir mais um aniversário. Pela primeira vez quer oferecer-se a si própria uma prenda única e derradeira. Contudo, não sabe se terá coragem, não sabe se terá mesmo chegado a hora. Já o tentou duas vezes e sente ainda o gosto amargo do fracasso, da frustração, mesclado com o ar piedoso dos outros. Sim, porque os outros sabem viver. Tudo para eles é fácil, tudo tem sentido, mesmo o que é inteiramente vazio e incongruente. Pelo contrário, ela é uma exilada da vida, uma inadaptada, imersa num oceano de tédio e incompreensão. Há pouco dias, escreveu no seu Diário «E não haver gestos novos e palavras novas». Tudo se gastou, até as palavras. O amor, aquela fonte de poesia, onde germinava a raiz de cada verso, também secou, como uma árvore esquecida, plantada por um agricultor negligente e preguiçoso.

A criada bate à porta suavemente.

- A senhora quer tomar alguma coisa? Posso trazer-lhe um copo de leite? – pergunta.

- Sim, Teresa, traga-o. Hoje fico neste quarto, talvez consiga dormir melhor. Peço-lhe que não volte a bater à porta e que não me venha acordar amanhã. Quero ter finalmente o meu merecido descanso, um repouso infinito, total e profundo. Há tanto tempo que não durmo!

A criada pousa, poucos minutos depois o copo cheio de leite sobre a cómoda de pinho castanho e deseja-lhe as boas noites. Sempre tão discreta e dedicada, aquela Teresa! Possui uma eficiência mecânica, mas simultaneamente suave e humana.

Lá fora, o vento entoa um lânguido lamento, que apenas o sussurrar da chuva acalma. Em Matosinhos, os dias cinzentos são mais frequentes, húmidos e sombrios se comparados com os da sua viçosa vila natal alentejana. Aí, embora nesta altura do ano o frio abrace a planície com garras de mármore, há mais luz e mais azul no céu.

Decide deitar-se, fecha os olhos e sente-se embalada pelo rumor daquela tempestade teimosa, mas algo serena. Dentro de poucos minutos, o irmão Apeles visita-lhe os sonhos, vem sempre habitar esse espaço onde o vazio começa a germinar. De novo, surge o radioso e trágico 6 de Junho de 1927. O hidroavião pilotado por Apeles Espanca, 1º tenente da Marinha, precipita-se no Tejo, cerca de meia milha a sul da Torre de Belém. No entanto, nos sonhos dela, ele flutua ileso nas águas transportando nas mãos dois fragmentos do aparelho... Sorri e estende-lhe a mão. Porém, quando ela o tenta abraçar, afasta-se rápida e progressivamente, desvanecendo-se como o nevoeiro. Mergulha como um filho de Neptuno nas águas do rio que ondulam na suavidade azul. Volta ainda a erguer os braços até se desvanecer definitivamente.

Solta um grito, sobressaltada, e o seu olhar choca com o branco das paredes do quarto.

 

2

 

Numa tarde quente de Agosto, há dois anos atrás, havia tentado pôr termo à vida. Nessa altura, o seu coração batia pelo pianista e médico Luís Maria Cabral. Era uma paixão arrebatadora e inconstante, como algumas das músicas de Bach.

No início, pensou ter encontrado uma outra parte da sua alma, alguém com quem dividir o pão, o sonho, a poesia e o mundo. Todas as suas ilusões se enraizaram naquelas mãos longas, elegantes, esguias, que tinham o dom de gerar música e amor, de transformar a vida, como se se tratasse de uma espécie de alquimista ou de um intermediário dos Deuses, qual Prometeu que houvesse descido à terra para conceder aos homens aquela melodia mágica e divina. Por isso, escreveu o poema Chopin inspirado nesse «muso» tão magnífico. Ao recordá-lo, murmura baixinho a primeira quadra desse soneto:

«Não se acenda hoje a luz...todo o luar

Fique lá fora. Bem Aparecidas

As estrelas miudinhas, dando no ar

As voltas dum cordão de margaridas!» (1)

Além disso, havia o encanto e a atracção resultantes do interdito: Florbela era casada, embora o casamento estivesse há muito oco e desprovido de qualquer conteúdo sentimental.

Contudo, um mês depois de haver sido ateado o incêndio da paixão, constatou que aquele ser que a sua mente idealizava não passava de mera ilusão, à semelhança da Dulcineia amada por D. Quixote. Ela era uma versão feminina do «cavaleiro da triste figura», perseguindo quimeras e fantasias, numa incessante busca de enganos que lhe alimentassem o espírito faminto. Não valia pois a pena lutar contra os moinhos de vento, visto que a derrota se adivinhava certa.

Rapidamente sentiu que faltava a Luís o dom da entrega. Era incapaz de amar inteiramente. Nunca amara completamente nenhuma mulher e ela não mudara essa característica que lhe era congénita. Acabara por se tornar distante, frio e convencional.

A seguir, em Novembro (havia apenas um mês) tentara de novo o descanso eterno. Vivia então o «rescaldo» da sua derradeira paixão: Ângelo César, que conhecera no Grande Hotel do Porto. Fascinou-a imediatamente aquele ser quase feérico, de olhar deslumbrante e sorriso irónico, que parecia encerrar em si todas as vidas, como se houvesse atravessado os séculos para a encontrar ali, naquele lugar, naquele momento. Os seus passos firmes e silenciosos pareciam conhecer de cor todos os caminhos do mundo... fora a sua última esperança e a mais recente desilusão. Não foi de luz e felicidade o rasto que lhe deixou na alma, mas sim de dor e escuridão.

De novo, o vazio negro e gelado se apoderou da sua alma. Afinal, nada valia a pena. Tudo era tédio, vazio e nada. O espírito encontrava-se tão vazio e estéril como o seu ventre que teimava em rejeitar todos os seres que principiara a gerar. De que lhe valia viver, se o amor era uma quimera, uma pura ilusão? Se o amado irmão vogava num outro rio além-vida, ainda envergando a farda de aviador? Se a maternidade lhe era negada pela vida e pelo destino? Se a sua alma deambulava todas as noites, aprisionada e desesperada, como uma pomba numa gaiola de prata? Nem na poesia encontrava já qualquer consolo. Ela saia-lhe apenas, como um grito ou um lânguido lamento.

 

3

 

       Contempla, hipnotizada, o fumo azulado que nasce do seu cigarro Muratti’s. Esse azul arroxeado traz-lhe a doce memória dos jardins da Faculdade de Direito. Terá sido feliz nesse tempo? Não o sabe. Mas essa era ainda a época das análises interiores e exteriores, das múltiplas descobertas que só aos vinte anos eclodem com tal intensidade.

Depois das aulas, os risos, as conversas fúteis, ou por vezes, as confidências mais sérias povoavam esse espaço verde, marchetado de violetas e sonhos. Era o tempo em que a alma se abria às novas amizades, crendo ainda na felicidade, nos momentos de sucesso e destinos grandiosos. Esse era um tempo de Primavera constante, mesmo quando o frio gelava e a cinza opaca das nuvens cobria o céu. Era o reino da incerteza e por isso da esperança.

Agora só o tédio a habita, teima em colar-se-lhe à pele, entranha-se nela como a humidade latente da chuva miudinha. «Attendre sans espérer», será esse o seu lema, como já escreveu no Diário. Sim, porque o verbo «espérer» contém a ideia de esperança («espoir»), que há muito a abandonou. A sua natural tendência para extrair o amargo dos mais doces cálices aumentou drasticamente nos últimos anos – sobretudo, nos últimos três, após a morte do seu irmão querido. O pai costumava dizer-lhe outrora: «Para que quer esta criatura a inteligência, se não há meio de ser feliz?». É óbvio que a sua experiência de homem vivido não lhe havia ensinado, que afinal a lógica das coisas era precisamente ao contrário do que ele pensava. A inteligência não era para ela um dom, uma escada para ascender até a esse estado ideal que todos ambicionamos: a felicidade. Não, pelo contrário, ela assume-se como o passaporte para a infelicidade...

Levanta-se e procura na mesa de cabeceira o seu Diário. Folheia-o distraidamente e chega ao dia 23 de Janeiro desse mesmo ano. Escrevera nesse dia a propósito da ideia de inteligência e dizia:

« (...) a inteligência cria em volta de nós um mar imenso de ondas, de espumas, de destroços, no meio do qual somos depois o náufrago que se revolta, que se debate em vão, que não quer desaparecer sem estreitar de encontro ao peito qualquer coisa que anda longe: raio de sol ou reflexo de estrelas» *

E ela onde poderia encontrar ainda forças para arrancar do firmamento a sua estrela ou o seu raio de luz? Encontrava-se abatida, acabada, quer fisicamente (com a sua extrema magreza, a debilidade, os quarenta e alguns quilos de peso), quer a nível psicológico, a boiar passivamente nesse mortífero oceano de tédio.

Abriu ainda o Diário numa página em branco. Talvez pudesse ainda escrever algo. Mas que poderia dizer? Não, já não havia mais nada que escrever, nem que fazer. Esse era um sintoma concreto do fim. Fechou o caderno e voltou a guardá-lo na gaveta. Não queria mais revisitar o passado, nem acordar as memórias adormecidas. Procurou outro cigarro e apercebeu-se de que era o último. Então era melhor não se precipitar. Ainda tinha muito tempo.

O relógio da sala de estar soltava agora as dez badaladas. A noite era ainda um bebé engatinhando pelo corredor do tempo.

 

4

 

Abre uma outra gaveta da cómoda, aquela onde guarda algumas fotografias. A primeira que surge é a de Apeles, o seu «morto adorado», o artista notável que tinha o dom de captar e representar a essência e beleza de qualquer paisagem. Ali está, imóvel, sorridente, belo, de uma beleza que não morre e que o tempo não corrói. Enverga a farda de aviador e como pano de fundo tem um avião e o rio (precisamente os seus algozes!) Encontra também um desenho feito por ele em Luanda e outro que representa a planície alentejana, transmitindo uma serenidade completa e absoluta.

De súbito, cai-lhe aos pés uma fotografia tirada há catorze anos antes, no dia do seu primeiro casamento com Alberto Moutinho (que estranho! Pensou que havia destruído todas as recordações dessa união!). Consegue ler no retrato do seu rosto ainda as marcas da vivacidade, da alegria, conferidas pelos dezanove anos feitos nesse mesmo dia e pela crença num destino mágico, no amor eterno e estável. Ele está sentado com ar solene, as mãos cruzadas sobre os joelhos, enquanto ela sorri triunfante, agarrando o seu «bouquet». Apesar do sabor amargo da separação, da instabilidade da relação que apenas durou dois anos, lembra, com saudade, a sua casinha branca semeada na tranquila e  solitária Serra de Ossa, perto do Redondo. Aí acordava bem cedo com o canto madrugador dos pardais nas árvores frondosas. Recebia pouco depois os alunos a quem dava explicações durante todo o dia, numa espécie de internato que mantinha com o marido. É certo que o trabalho se arrastava por longas horas e os lucros permitiam-lhes a subsistência, mas por vezes com algumas dificuldades. O lado positivo era que, passando todo o dia preenchida com as aulas, lhe sobrava muito pouco tempo para reflectir, para dissecar a sua alma e o mundo que a rodeava.

Ao crepúsculo, quanto os últimos raios de sol acendiam os mágicos cansaços, sentava-se alguns momentos no terraço, contemplando o seu reino de eucaliptais, estevas e giestas. Esses momentos breves faziam-na sentir-se uma deusa esquecida e adorada apenas naquele magnífico altar: a serra e a planície doirada de pão, trabalho e poesia.

No início, viveu por breves dias num estado idílico, que se desvaneceu ao aperceber-se de que o casamento encerrava uma faceta brutal, enraizada no sentimento de posse, assumindo-se como um grilhão, ceifando-lhe a liberdade de amar, de existir. Não fora feita para ele, jamais teria a atitude de uma mulher submissa e satisfeita. Essa profunda desilusão acentuou-se ainda no início de 1918, quando após dois anos de matrimónio, muitas vezes «sofrido» conseguira finalmente engravidar. Contudo, essa vida que gerava parecia consumir-lhe as entranhas. O corpo rejeitava todo e qualquer tipo de alimento. O estado de debilidade a que chegou, conduziu a um aborto involuntário. Para além do abalo físico, desesperou-a ver aquele ser que seria o seu filho esvair-se assim, repentinamente, no início de uma Primavera aziaga. Sofreu com intensidade essa morte desgarrada da vida, sem existência, inconsistente.

Depois foi a passagem pelo Algarve, por Quelfes, com o marido na casa de uma cunhada, onde pensava restabelecer-se mais rapidamente. Pelo contrário, se fisicamente melhorou um pouco, psicologicamente principiou a mergulhar no poço do tédio. Aquela terra não lhe agradava muito e faltava-lhe qualquer tipo de distracções. Ansiava desesperadamente por Lisboa, pelos teatros, pelos passeios. Aí, por breves instantes conseguia saborear aquele doce néctar a que chamam felicidade.

Em contrapartida, na província, o seu único consolo eram os livros, embora nem sempre fosse fácil adquiri-los com a frequência suficiente para saciar a sua sede. Nunca conseguira ocupar-se com as tarefas tradicionalmente femininas. Os bordados, as rendas, as sedas que tanto gostava de apreciar, recusavam-se a ganhar existência nas suas mãos. Várias vezes se tentara empenhar nessa filigrana de lavores, mas agoniada acabava imediatamente por desistir, como se fosse incapaz de resolver o misteriosos emaranhado que nascia entre os seus dedos.

 

5

 

Decide regressar ao leito e deita-se, por instantes, folheando Os Gatos de Fialho de Almeida, que leu há algum tempo e que tanto lhe agradou.

Fecha os olhos por momentos e abandona-se ao cansaço, num estado de languidez e liberdade muito próximo do sono.

De repente, é transportada a uma noite fria e estrelada de Fevereiro, quando decorria o ano de 1920. Encontra-se num baile de carnaval em casa de Ema Marcos Pereira, em Lisboa.

Dança, no meio da sala, jovial e alegre, nos braços de António Guimarães, o alferes da Guarda Nacional Republicana que conheceu há cerca de um mês, num casamento. Ela enverga um disfarce de princesa: vestido de pura seda muito comprido e muitas pérolas como adorno (sempre adorou as pérolas). Não é bonita, mas possuirá provavelmente a sedução que advém da inteligência, que se enraíza na imaginação. Ele é um homem belo, um «dandy» de belos olhos grandes e amendoados, moreno, com o corpo escultural de uma estátua grega. Encontra-se elegantemente trajado, como um grande senhor do século XVIII.

Já há seis meses que Raul Proença lhe publicou o Livro de Mágoas  e aquele é o momento mais alegre que vive desde a vinda a público desse conjunto de poemas, parido com amor e dúvida.

Naquele momento, o ritmo cálido da valsa devolve-lhe o riso feliz e despreocupado dos quinze anos. O coração bate-lhe aceleradamente na ânsia de um amor possível e doce que lhe agasalhe a alma dolorida.

Percorrem os cantos mais escuros da sala, enlaçados, apertando as mãos com força, tecendo apressadamente laços de ternura, insinuando promessas de amor,  marcando futuros encontros, com a urgência de uma primeira paixão...

Imediatamente se tornam o centro das atenções. Os outros convidados observam admirados. Sobretudo as senhoras, com os seus chapéus engalanados e os vestidos rendilhados e plenos de folhos (alguns exalam o odor inconfundível da naftalina, ou será a mente já traçada pelo preconceitos que o emana?), cochicham pelos cantos apontando-os com os dedos ornamentados de anéis:

«Que infâmia! Ela ainda é casada com Alberto, embora vivam  separados há  quase dois anos ...mas isso não lhe dá o direito... como pode ser tão ousada e leviana?»; «É sem dúvida uma persona non grata, alguém a evitar, ainda dá má fama às casas que frequenta»; «Que falta de respeito pela anfitriã e pelos convidados! Comportar-se como uma  adolescente sem qualquer nível, nem educação tonta e enamorada!; os poetas nunca foram companhia recomendável, ainda por cima quando se trata de uma mulher que verseja» - murmuram entre os dentes amarelados, abanicando os penteados baloufos e ajeitando no olho a luneta embaciada, tentando ver melhor. 

Acorda com esse zumbido a ecoar-lhe na mente e apercebe-se de que foi um mero devaneio de um momento mágico em que pensou que ia adormecer sem recorrer à habitual dose de barbitúricos. Imediatamente verifica a origem do ruído: é o vento que agita as faias, impelindo as folhas contra a vidraça da janela. Não compreende porque a assaltou essa recordação feliz... será uma derradeira tentativa do inconsciente para evitar o fim? O último grito de um qualquer sistema de sobrevivência para provar que afinal a vida vale a pena? Sim, aqueles foram os bons momentos, mas os outros não os quer nem lembrar. Mais uma vez, após algum tempo de casamento com António, o amor se dissolveu, queimando a alma, como a cal viva quando é derretida pela primeira vez.

Três anos passados, a violência e os maus tratos vêm enegrecer aquela relação, aliados a mais uma gravidez mal sucedida...

Lá fora, um sino qualquer, de uma igreja qualquer derrama languidamente as onze badaladas.

 

6

 

Vagueia pelo quarto, perdida nos seus devaneios. Sobre a cómoda encontra-se um retrato de Mário Lage, que ainda é seu marido. Mais uma relação desgastada, destruída...

Lembra o dia em que esse homem distinto e charmoso entrou na vida dela, como um anjo redentor. Era Novembro de 1923, perdera mais um filho, o segundo que teimara em sair-lhe do ventre, desvanecer-se antes de nascer. A vida com António tornara-se infernal e essa perda foi o «golpe de misericórdia» dado a essa relação moribunda. Mais uma vez adoeceu física e psicologicamente. É nessa altura que lhe surge aquele médico de Matosinhos generoso e dedicado – exercia o cargo de tenente médico do Destacamento de Artilharia do Porto, onde António Guimarães prestava serviço -  para lhe tratar os males do corpo e da alma, para a reconstruir como a um vaso de porcelana rara, quebrado em mil pedaços.

Antes do final desse ano, decidiu ir viver para casa dele e comunicou à família a separação de António e a actual situação.

Essa foi uma época particularmente dolorosa, pois ninguém entendeu essa decisão. A sua família reagiu da pior maneira, deixando de lhe falar durante dois anos...

Ainda na mesma cómoda há um retrato do casamento religioso com Mário, ocorrido em Matosinhos, na Igreja do Senhor Bom Jesus a 29 de Outubro de 1925. Pela primeira vez, a sua união matrimonial era abençoada por Deus e isso parecia-lhe um bom augúrio. Embora envergasse um vestido discreto, psicologicamente, sentia-se como uma noiva inexperiente, a dizer o «sim» pela primeira vez, assinalando um novo recomeçar. Mais uma vez estava a ser sincera consigo mesma, honesta sem preconceitos (como ela própria se auto-definira numa página do seu Diário) amorosa sem luxúria, casta sem formalidades, recta sem princípios, selvagem, pura e quente como as flores nascidas ao acaso na charneca que tanto amava. 

Só mais tarde descobriu que as atitudes tão generosas e altruístas daquele médico, tinham um fundamento oculto e menos nobre. Afinal, a decisão de casar com ela, não havia sido provocada pela paixão. Fora antes um acto friamente calculado: a má reputação de Florbela servia-lhe de escudo para ocultar as suas mentiras, as traições, os comportamentos censuráveis socialmente...

Lembra o soneto «amor que morre», que sintetiza, no fundo, as suas vivências amorosas, as desilusões. Procura entre as folhas soltas numa gaveta e encontra-o. Começava assim:

«O nosso amor morreu... Quem o diria! (3)

Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,

Ceguinha de te ver, sem ver a conta

 

        Do tempo que passava, que fugia!»  

        Não, não valia a pena modificá-lo, nem continuar a lê-lo. Era melhor guardá-lo, estava completo, nada mais lhe poderia acrescentar. Não valia a pena procurar a palavra mágica que o tornasse perfeito. Ele já adquiria a sua a autonomia, com todas as imperfeições que pudesse revelar, à semelhança de uma ave que voa, abandonando o ninho paterno. 

Pega num caderno e arranca uma folha em branco. E se escrevesse à sua amiga Júlia Alves? Era curiosa a sua relação com ela. Pensar que havia nascido uma amizade tão profunda, alimentada durante vários anos através das cartas. Não se conheciam pessoalmente e no entanto, ela era a sua maior confidente e provavelmente a melhor amiga. Essa troca de correspondência iniciara-se em 1916: Júlia era subdirectora do suplemento Modas e Bordados de O Século e Florbela enviara-lhe um conjunto de poemas para apreciação, apresentando-lhe o projecto de um livro intitulado Alma de Portugal.

Procura uma caneta e senta-se à pequena escrivaninha onde foram gerados os seus últimos sonetos.

 

7

 

Enquanto a «Princesa Desalento» permaneceu encerrada no seu «castelo» de ilusões e desilusões e quimeras (quer este se situasse em Vila Viçosa, Évora, Lisboa ou Matosinhos) o mundo fervilhou com o despontar desse novo e mágico século: o XX! Em Portugal ocorreu o regicídio, a implantação da República (tão desejada por uns e contestada por outros). De 1920 a 1926 a vida política foi um redemoinho autêntico, com diversos governos por ano, assassinatos, exílios... Anteriormente, o mundo esteve em guerra...

Um grupo de jovens sonhadores lutou com uma revista chamada Orpheu, pela inovação, pelo cosmopolitismo, por uma nova literatura e mentalidade, equiparada à europeia, que se pudesse designar de «modernismo»... Entre eles, os que ficarão célebres: Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros... Mas esses nomes não lhe dizem muito. O seu reino é outro, caminha por outra estrada paralela a essa, noutra direcção. Grandes poetas para ela são Antero de Quental, Augusto Gil e o maior de todos: António Nobre.

Agora, o governo do país encontra-se nas mãos de uma ditadura militar. No entanto, esses acontecimentos não perturbam o mundo interior de Florbela, mergulhada nas suas ansiedades, vagueando entre o sonho, a angústia, a saudade e a sua perda maior: o irmão.

Sempre detestou a «politiquice», criticava ao pai o seu envolvimento excessivo na política como esquerdista e republicano convicto apesar de «burguês»- o que o chegou a conduzir ao cárcere. Ela era apenas conservadora, pois detestava todas as formas de violência e parecia-lhe essa a atitude mais cómoda.

O acontecimento que na verdade a emocionou tremendamente foi a 30 de Março de 1922 a travessia do Atlântico Sul empreendida por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, que considerava verdadeiros heróis.

Neste momento, tem dois livros de poesia publicados - O Livro de Mágoas (1923) e o Livro de Soror Saudade (1923).

Nos últimos anos trabalhou intermitentemente, umas vezes com maior afinco, tentando enganar a tristeza e o sofrimento, outras até com desânimo. Tem várias colectâneas de poemas inéditas na gaveta e também de contos.

Procura entre o aglomerado de cadernos o conto «o aviador», consagrado a Apeles. Pensou que ao escrevê-lo podia libertar um pouco do sofrimento que a sufoca, mas ele continuou a corroer-lhe a alma como um verme num pedaço de madeira esquecido.

 

8

 

        A meia-noite já desceu traiçoeira, virando a folha do calendário.

Ainda vai a tempo de mudar a decisão há tanto tomada e amadurecida. A sua saúde está bastante debilitada, mas ainda pode recuperá-la. Porquê abandonar a vida a meio,- ou talvez até a menos de metade da estrada percorrida? É que não vale a pena continuar a trilhar esse caminho, se todas as pedras a ferem, todos os espinhos lhe dilaceram os pés e o ser. Já não pode lutar contra os moinhos de vento, porque já nem sequer crê neles.

Abre outra vez a cigarreira de esmalte vermelho que o pai lhe ofereceu, mas ela está tragicamente vazia. Esqueceu-se de que já havia fumado o último cigarro.

De novo diz para si própria que não vale a pena remexer mais nas cinzas do passado com essa esperança remota que delas ainda surja uma ténue centelha de lume. Para viver é necessário renascer continuamente, como a fénix. Ela sempre fora incompatível com esse truque de magia. O seu caminho sempre fora linear, vertical, na constante busca platónica do que haverá para além do mundo das sombras que é o quotidiano, sempre a tentar atingir o inatingível, a desejar alcançar o inalcançável, a arrancar com os dedos pedaços de lua, ou retalhos do infinito.

Àquela mesma hora, os outros dormiriam tranquilamente, a terra girava com o ritmo de sempre. Políticos tentariam traçar o seu rumo no poder consultando a almofada, poetas e escritores fariam germinar a inspiração, alimentada pelos sonhos... Fernando Pessoa, após uma dose de absinto no Martinho da Arcada, encostar-se-ia à sua secretária para escrever em nome de uma qualquer das suas múltiplas personalidades... Mas ela é indiferente a todo esse mundo, limitando-se a deslizar placidamente pelas teias do tempo.

Lembra que quando em Janeiro de 1926 a noiva de Apeles, Maria Augusta de Vasconcelos, faleceu no cume da beleza e da juventude, deixando-o mergulhado em desespero e ânsias de morte. Ela escreveu-lhe cartas persuasivas, onde lhe suplicava que olhasse para a vida sem desespero, pois era um crime pensar em aniquilar-se. Contudo, nada do que lhe dissera na altura a faria agora mudar o curso do destino. Deus, as Parcas ou o Destino (fosse lá quem fosse) haviam decidido colher a vida de Apeles no desabrochar dos seus trinta anos. No entanto, cabia-lhe a ela escolher, antecipar-se aos desígnios do Altíssimo.

O oceano de tédio onde se afoga advirá também da hereditariedade? Recorda que a mãe faleceu aos vinte e nove anos de «nevrose», ou seja de uma doença obscura e indefinida que ninguém entendeu...

Talvez pudesse ainda acariciar o seu fiel cão de olhos meigos cor-de-mel. Sempre tivera uma relação especial e próxima com os animais, melhor do que com os humanos. Por isso, quem sabe, tivesse tido dificuldade em adaptar-se ao macaquito Lopes que Apeles lhe trouxera da sua viagem a Angola. É que ele já se encontrava demasiado perto dos seres humanos, era uma criatura intermédia na evolução biológica. Era extremamente irrequieto, destrutivo, dotado de muitas das manhas humanas.

De súbito, o cão soltou um lamento mesclado de uivo e latido. Era melhor não o ir buscar. Diziam que os cães tinham o dom de visualizar a morte e ela não queria que isso sucedesse. Necessitava que a sucessão sem nexo de acasos que constituía a sua vida terminasse em perfeita solidão e privacidade.

 

9

 

Abriu, de novo, a gaveta onde guardava os seus maiores «tesouros»: os restos do avião de Apeles (os únicos resgatados ao possessivo rio), os seus contos e poemas inéditos ainda, de Máscaras do Destino e Charneca em Flor (cuja publicação Guido Batteli asseguraria)   e algumas fotografias especiais.

Tivera sorte em conhecer aquele adorável italiano, pois caso contrário a sua obra poderia ter ficado enclausurada num velho móvel, devorada pelo tempo e pelos ácaros, sem que ninguém a conhecesse.

Lá fora ecoam os rugidos do mar bravio, a lembrar um lobo aprisionado e enraivecido. Ela sentia-se também uma pobre pantera enjaulada, exposta aos olhares trocistas dos outros que observam do lado de fora da jaula, à espera da morte libertadora, visto que não existe outra hipótese de fuga.

Numa folha branca principia por escrever uma carta de despedida eloquente e piegas, dirigida aos poucos amigos, ao marido, ao mundo em geral... contudo, à sétima linha desiste e amarrota o papel. Não, aquele tipo de mensagem final não combina com o seu orgulho e de qualquer modo, quem a iria alguma vez entender?

Já passa da uma hora, o tempo parece que se escoou veloz naquela noite de insónia. As outras tinham-lhe parecido sempre eternas, povoadas de todos os fantasmas.

Sente as lágrimas banharem-lhe os olhos. Pensa em ir até à sala deitar-se um pouco na chaise longue (berço de alguns dos seus poemas), procurar algum cigarro que tivesse ficado esquecido na cigarreira velha ou dentro de algum pacote amarrotado no fundo da carteira. Talvez isso a acalmasse... No entanto, não é prudente, por muito silenciosa que seja, o marido ou a criada Teresa podem ouvi-la, despertar e descer para ver o que se passa. Desta vez não suportaria mais uma tentativa falhada. A morte não podia voltar a virar-lhe as costas. Mas porque seria tão caprichosa em relação a Florbela? No caso do seu adorado irmão, essa tirana nem havia pensado duas vezes. Levara-o no auge da vida, da carreira brilhante, da felicidade que aos poucos se esforçava por recuperar.

Percorreu silenciosamente os cantos do quarto, contemplou através da janela a negrura da noite e as luzes poderosas dos relâmpagos que no horizonte anunciavam o desencadear de uma forte trovoada. Pareciam irados ou talvez simplesmente desesperados, os céus. Era melhor assim. Despedir-se num dia azul e luminoso causaria tristeza e pena.

Senta-se de novo e redige de forma simples e sintética as suas últimas vontades, sem qualquer rasgo de sentimentalismo exacerbado.

À medida que se aproxima a hora, as dúvidas visitam-na por ténues instantes. E se desistisse de repente dessa ideia? Até já tinha combinado passar o Natal com a amiga Buja e a família. Além disso, nos primeiros dias de Janeiro poderia ver florir a sua Charneca em Flor.  

Talvez encontrasse ainda um novo amor (desta vez verdadeiro e eterno), talvez um milagre lhe trouxesse a liberdade que tanto ansiava, a saúde que se lhe escapava minuto a minuto... Poderia ainda haver uma outra face para a vida, para aquele dia que tão metodicamente assinalara no calendário?

 

10

 

 O relógio derrama languidamente as duas badaladas. É a madrugada do dia 8 de Dezembro. Há trinta e seis anos atrás, numa branca alcova, em fria madrugada de sábado, uma mulher pobre e humilde padecia as dores do parto. Chamava-se Antónia da Conceição Lobo e seria destinada ao mero papel de parir. O seu fruto, resultado de uma ligação ilegítima, (embora «autorizada») seria criado pelo pai e pela esposa dele (que era estéril), a quem chamaria «mãe». Rasgava-se-lhe o ventre, qual semente rebentada ao germinar. A dor materializava-se em gemidos abafados e contidos, como abafada também havia sido a concepção.

Finalmente, vem à luz um bebé franzino e chorão. É uma menina, «uma Flor», como disse a parteira e a mãe dita a sua sentença (única interferência que terá na vida da filha): «Flor se chamará».

É aquele o tão ansiado momento em que a vida e a morte se fundem, transbordando todas as fronteiras do tempo. Levanta avidamente o colchão do seu leito e retira os dois frascos de Veronal, o sedativo que há muito havia guardado em doses letais, para o tão aguardado instante.

Afinal, não vale a pena esperar mais. Talvez noutra vida, noutro tempo, conseguisse capturar alguma réstia da felicidade fugidia que lhe iluminasse os dias, mas não nesta.

Abre o guarda-fato e retira o seu vestido negro preferido, colocado ali propositadamente na véspera. Vestiu-o apressadamente e colocou o longo colar de pérolas.

Depois, esvazia os frascos um a um serena e metodicamente, engolindo os comprimidos com o copo de leite que a sua dedicada Teresa lhe deixara. Lá fora, o mar continua a lançar os lamentos de fera embravecida e o vento, mais forte e intenso, afasta os cortinados da janela. A chuva pára por momentos, num silêncio contemplativo:

«Deixai entrar a Morte, a Iluminada, (3)

A que vem pra mim, pra me levar.

Abri todas as portas par em par

Com asas a bater em revoada».

 

Que sou eu neste mundo? A deserdada,

A que prendeu nas mãos todo o luar,

A vida inteira, o sonho, a terra, o mar

E que ao abri-las, não encontrou nada!»

(...)

       Apeles abre-lhe os braços e mergulham no infinito, atravessando o rio Lethes no seu hidroavião milagrosamente reconstruído, ressuscitado.

Em cima da escrivaninha ficaram breves cartas de despedida e os dois destroços do avião que pediu para serem sepultados com ela.

Amanhã um jornal qualquer anunciará o seu desaparecimento com letras miúdas e um carpinteiro assinará a certidão de óbito atestando que faleceu de «edema pulmonar», para que a sua morte não acenda o escândalo que em vida tantas vezes ateou.

Lá fora, uma chuva de mimosas, açucenas, lírios roxos e rosas vergasta os vidros da janela. São as flores que ela quer que lhe cubram o corpo ao descer à última morada.

 

In A Sul da escrita (Prémio nacional de Conto Manuel da Fonseca),
Porto, Ed. Campo das Letras, 2007.

   
  (1) In «Chopin», Sonetos de Florbela Espanca, Ed. Bertrand, p. 187

(2) In Obras Completas de Florbela Espanca, vol IV, Ed. D. Quixote, p. 133

(3) In «amor que morre», Sonetos de Florbela Espanca, Ed. Bertrand, p.194

 

 

Dora Nunes Gago (Portugal)
Nascida  a 20/6/1972 em S. Brás de Alportel, é Professora, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, investigadora de pós-doutoramento na Universidade de Aveiro. Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de doutoramento), Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008.
Além disso, tem poemas, contos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias. Tem apresentado igualmente diversas comunicações sobre as “imagens do estrangeiro na Literatura Portuguesa” em Congressos Internacionais.
Contacto:
doragago@sapo.pt

 

 

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