REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 11

   

 

 

 

MARIA DO SAMEIRO BARROSO

 

Poemas

da Noite Incompleta

 

 

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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COSMOGONIA

 

No princípio, uma grande flor vazia começava a agitar-se.

Éramos a terra e o céu, percorrendo o corpo

dos relâmpagos moldados.

Na nossa história, havia pássaros, montanhas,

oceanos de bruma.

Como plantas informes, aprendíamos a viajar entre o sol

e os arco-íris.

Na lama musical, deslizavam conchas e corais,

coroando a harmonia das primeiras palavras.

 

Como deter a púrpura, os rios, no céu onde ecoava

a flor dos violinos?

Numa cosmogonia doce, nascíamos.

Pela interminável cercadura de fogo, o olhar

aproximava-nos, num pronto desejo, insubmisso,

vegetal, envolvendo a folhagem, a relva,

a boca bailarina unindo, num só, o estro,

um choupo,

 

o outro corpo.

 

 

TATUAGEM

 

 

Cabeleira de sangue, vinho de tâmaras, substâncias

mágicas.

E nós, tatuados um no outro, perdidos para sempre.

Dá-me a tua mão. Quem sabe?

E doces serão as roseiras, a vertigem da noite,

a crineira de névoa,

ou os versos que escrevo, sobre verde malaquite,

nos torreões de sono.

 

Cabeleira da sangue, cabeleira de fogo, linfa cindida,

crineira errante.

Mágicas eram as serpentes líquidas.

E nós vivíamos entre as algas, as plantas venenosas,

os leves colibris.

Nesse tempo, eu gostava de sumo de maçã,

morangos, cogumelos.

Tu falavas de jasmim.

 

Cabeleira de sol, crineira de gelo, vinho nocturno.

E nós, tatuados nas estrelas,

as cigarras escrevendo os seus hinos

sobre os nossos corpos,

suas vozes rimando, como textos,

o mar embalando os búzios do sonho.

 

Cabeleira obscura, cabeleira negra, cabeleira

fresca.

E nós, acordando sobre os jardins de orvalho,

nada sabíamos das nuvens, da ímpar fusão,

do jasmim de névoa.

 

Algo precisava de se cumprir.

 

 

TACTEANDO ILUSÕES

 

 

O crânio incendeia-se nas intumescências da noite.

É tarde, eu sei,

mas ainda há tempo para escrever a língua

cega dos pensamentos que galopam.

Sobre espectros de água, abrem-se

os esfíncteres negros

às visões arrebatadas no miolo das têmporas.

 

Em que pensas, neste momento, em que tacteias

as veias sedentas e os barcos se alinham,

como sentimentos parados no cais?

 

No fulgor da vigília, o crânio incendeia-se,

apaga-se, o avesso dos muros ecoa,

no silêncio dos poros sombreados

onde bebes a sede da imensidão.

 

Com vestes de ouro, herdando enigmas,

acumulados no céu, oscilas,

entre as hidras nocturnas,

que plantas entre o mel, as liras

e os moinhos de seda,

onde jaz, exausta, a concreção atordoada

 

dos mortos animais.

 

 

 

Maria do Sameiro Barroso
in “Poemas da Noite Incompleta”, Organização/Prólogo Floriano Martins, Ilustrações António Hélio Cabral, Escrituras, São Paulo. 2010, Colecção Ponte Velha,
(Edição patrocinada pela Direcção Geral do Livro e das Bibliotecas/Portugal,
Ministério da Cultura/Portugal)
Acessível para compra em

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Maria do Sameiro Barroso (Portugal)
Médica e escritora, é licenciada em Filologia Germânica, em Medicina e Cirurgia pela Universidade de Lisboa e Doutoranda da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tem publicado livros de poesia, traduções e ensaios. Dedica-se à investigação da Medicina Antiga e à História da Mulher e ao estudo da Literatura Alemã. Integra os actuais corpos directivos do Pen Club Português.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_do_Sameiro_Barroso 

 

 

© Maria Estela Guedes
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