REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 08-09

 





O homem distende o olhar, apreensivo, sobre aqueles papeis velhos nos quais a caligrafia de um cursivo regular descreve o que foi a sua vida antes do conhecimento de si. Cava mais fundo o sulco entre as sobrancelhas ao aperceber-se da magnitude do que o espera: o volume das folhas manuscritas é tal, que vai ter de alongar o tempo de estudo e reorganizar as tarefas quotidianas para que possa tirar partido das revelações que a massa documental lhe faculte, isto se pretender levar a cabo exame consciencioso do acervo.

Desde sempre soube da existência da papelada. Mas esta sempre a associara à mania paterna de que tudo ficasse registado, escriturado, recenseado e cuja verdadeira dimensão espacial jamais se dera ao cuidado de avaliar. Agora, no desmanchar da casa coube-lhe em partilhas a tralha (tralha: o que os outros, depois dele, chamarão ao que escreve) redigida.

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Maria Estela Guedes  
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JÚLIO CONRADO

CAT's

                                                                Júlio Conrado

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   

Numa primeira concessão, decidira olhar com olhos de ver para tanta superfície de palavras, na mira de, pesados os fins e convocados os meios, lograr obter para elas uma cédula de eternidade. O verbo reanimado daria, pensara então, outro fôlego aos fantasmas, retirando ênfase depressiva ao que admitia vir a tornar-se uma espécie de julgamento post-morten. Prometera a si mesmo entregar-se a essa indagação exaustiva com espírito altruísta; tarda, porém, em tomar uma decisão. Um mal-estar difuso previne-o contra o escarafunchar, à toa, na informação jacente. É uso dizer-se que os filhos são os futuros juízes  dos pais. Se, porém, os pais resolveram passar a escrito o juízo que um dia fizeram dos filhos e a sua voz extemporânea vier agitar as águas, pronta a litigar e a tirar o descanso a quem já o dera por adquirido, então a coisa é capaz de ficar feia.

Concebe a devassa como obra de pesquisador de ouro com dificuldade em encontrar a pepita preciosa. Assusta-o o aparecimento de alçapões ao virar a esquina de um parágrafo, de uma página, de um feixe de memórias implacáveis. Interessa-lhe, porém, a possibilidade, ainda que remota, de “tropeçar” na pepita de ouro que o ponha de boas relações com o seu próprio passado. O homem duvida que seja uma boa ideia levar por diante o projecto desenhado na mente, provisório, envolto numa rede de incertezas e possíveis agravos. A empresa é de monta, o risco enorme. Porque assim também, ao invés, corre o perigo de ser agente de distúrbio do repouso parental, caso não resista a vir ao de cima a falta de humildade do filho petulante confrontado com certeiros comentários sibilinos a seu respeito. 

Decide-se, finalmente. Sim, progredirá passo a passo. Será cauteloso. Cuidará do futuro dos textos como se dos seus se tratasse. Sobretudo ver-se-á através da forma como era visto, saberá de fonte limpa se constituiu uma fraude menor ou um perfeito desastre segundo os apertados padrões de ética bebidos na lei da boa acção diária e da vida ao ar livre. Passo a passo. Vai demorar, o trabalho. E as demoras, a esta distância do alvo, podem ser fatais. Alguém ficará para confirmar, se for preciso, que pelo menos tentou.

Os fantasmas, com o homem quase sendo um deles, agradecerão à mesma.

Sim, tentará, um destes dias.   

 

O homem, a certa altura, ficou zappeur. Viajar rapidamente pelo mundo a uma ligeira pressão no botão do telecomando fascinou-o como se sobre ele tivesse agido um tremendo feitiço. Saltar de país para país, de zona mental para zona mental, de desertos ou florestas para empórios urbanos, em fracções de segundo, de olhos colados no televisor, incansáveis testemunhas do jogo virtual, ó supremo deleite tecnológico. O fascínio transformou-se num vício. O vício matou a magia. Hoje é como ladainha para adormecer ou maneira expedita de driblar insónias. Houve, no passado, outros prodígios: o transístor (sim, o transístor, alguém das actuais gerações supõe a maravilha que era poder assistir-se a um jogo de futebol de ouvido atento ao que se passava nos outros campos?), a TV a cores, o vídeo, mais recentemente o cinema em casa. Bons tempos aqueles em que se esperava pela época de reprises para se ver o filme que escapara na estreia ou rever a fita de que se gostara até ao limite do encantamento. Em data recente comprou um DVD muito especial: Ali-Baba e os Quarenta Ladrões. Protagonistas: Jonh Hall, Maria Montez, Turhan Bey. Especial, porquê? Por se tratar, de acordo com o programa do Victória Cine, de 24 de Março de 1945, de “o mais deslumbrante espectáculo de todos os tempos, em Tecnicolor (sic), empolgante pelo impressionante realismo e rico pela faustosa imponência dos cenários do misterioso Oriente” com o qual foi inaugurado o cinema, em Carcavelos. O homem, então um miúdo de oito anos, lá assistiu ao filme que continha só “aventura, amor, deslumbramento, audácia e mistério.” Uma tal soma de ingredientes valia todos os sacrifícios e a família bem os fez para participar na festa do cinema novo.

O homem, de regresso a Carcavelos (a terra da infância e da adolescência), numa roda de amigos, mencionou o facto de a prova documental da inauguração do Victória Cine ter sido encontrada entre os papéis do abnegado redactor da sua primeira vida. Mas o grupo estava mais empenhado em despertar no agora visitante ocasional do lugar que o viu crescer a memória do zappeur do que em celebrar o que se passara no longínquo ano de 1945: “Lembras-te de umas dançarinas de strip-tease que passavam antes da meia-noite no Canal Dezoito, com uns varões entre as pernas, as Cat’s?” “Perfeitamente”, respondeu o interpelado. “Trabalham aqui, na cave do edifício do Café S. Jorge.” “Não posso crer. Aqui, em pleno centro histórico?”, “Aqui mesmo.” “É boa.” “É mas é um inferno. Às quatro da manhã, quando elas supostamente vão para casa, isto é um pandemónio de carros, de telemóveis a retinirem, de gritos, até já tiros houve. Os residentes só conseguem dormir a poder de doses maciças de comprimidos.” “E as autoridades?” “Não fazem nada. Já fomos à Câmara, à Polícia, nada. O estabelecimento tem as licenças em ordem, alega-se.”

Naquele mesmo local, recorda-se o homem miúdo de ter havido um pandemónio de pancadaria por causa do encerramento do chafariz, também nos anos quarenta. Esta história está contada, dispensa-se de voltar a ela.

Agora são as Cat’s quem perturba a hegemonia mítica da praça, a tranquilidade das esposas e os sonos de novos e velhos, uns por uma razão, outros por outra.

 

 

úlio Conrado  (Olhão, 26.11.1936, Portugal) 
Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro), centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão, inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010), Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia: Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009). 
Ver currículo alargado no site do Pen Clube Português

 

 

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