REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 08-09

   

Sob a chancela da editora Âncora, Amadeu Ferreira, melhor o seu “eu” poético denominado Francisco Niebro, traz à luz do dia uma magnífica edição de Os Lusíadas em língua mirandesa. Trata-se, como já se indiciou no título, de uma epopeia dupla: não só se enriquece a língua mirandesa com a obra tutelar do génio lusitano, como se pode considerar verdadeiramente épica a forma como um só homem se dedica inteiro à causa de sedimentar e consolidar o Mirandês com um vertente literária, sem a qual nenhuma língua atingirá o seu estatuto pleno no concerto global das línguas ou enquanto veículo imprescindível de transmissão e identificação de uma cultura. É pois de causar mor espanto, para chamarmos aqui o agente primeiro desta empresa, a forma como um só falante carrega sobre os seus ombros todo o peso da expressão literária de uma língua, oficial e de pleno direito, diga-se, e contra ventos e marés – entre os quais, não nego, me incluo por vez por outra ter emitido o meu sopro céptico – tem vindo a fazer da sua vida um acto de genuína resistência à morte lenta da sua língua materna, e se apresenta enquanto porta voz e baluarte contra o seu silenciamento e morte iminentes. Embora, para sermos mais rigorosos, essa iminência já tenha sido mais desesperada.

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Maria Estela Guedes  
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FERNANDO

DE CASTRO BRANCO

 

 A epopeia dupla

 

    Fernando de Castro Branco

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
 
 

Sabemos que uma língua é um organismo vivo, que veicula o ser social e idiossincrático de um povo e, enquanto viva e não enquanto documento histórico, durará enquanto um homem ou uma mulher dela se apossarem para expressar o que lhes vai na alma, no coração ou no pensamento. O Mirandês, língua independente do português e próxima do lionês, foi sempre a língua minoritária das gentes rurais do Planalto Mirandês, sediada fundamentalmente no espaço geográfico do concelho de Miranda do Douro e zonas limítrofes de Vimioso e Mogadouro. Rude e áspera como o mundo que evoca, convoca e retrata, trazendo em si o quotidiano campestre e a vida dura de quem moureja nos campos de sol a sol e integrando em si o vívido pragmatismo de dar conta de um viver singelo, estóico, humilde. Com o despovoamento dos campos, o abandono da agricultura, o alastrar da morte lenta sob os criminosos nomes de pousio e subsídios para a destruição das culturas, o aumento exponencial da instrução para os filhos dessa gente, humana demasiado humanamente heróica - cujas mãos revestidas, sedimento sobre sedimento, dos calos dos enxadões, picaretas e charruas e olhos inundados de sol e gelo dispensaram, naturalmente, os excessos para eles dispensáveis do saber livresco – veio-se paulatinamente a reduzir o número de falantes do mirandês enquanto primeira língua e ficou uma pequena hoste de resistentes usando-a enquanto genuíno acto de resistência e de amor ao torrão natal e à memória dos antepassados, recuperando-a e mantendo-a -- se ligada à máquina ou não é um diagnóstico médico que não coincide entre mim e o meu amigo Amadeu Ferreira -- pelo menos em estado onde são perfeitamente comprováveis o funcionamento dos órgãos e funções vitais. Mas Amadeu Ferreira não se contentou em permanecer no simples espaço da comunicação quotidiana entre as gentes das zonas rurais de Miranda e aí não está só, antes, e desde sempre, acompanhado por outros heróicos resistentes dos quais destaco o bem conhecido Dr. Domingos Raposo, mas enveredou, com assinalável êxito, (fazendo pleno uso da sua assinalável condição de poeta) pela produção literária ao nível da poesia, da narrativa, da tradução e da edição. Com regularidade, tem assinado traduções literárias de clássicos da literatura portuguesa e universal, a que junta neste contexto a obra mor de Camões, clássico intemporal de qualquer tempo e de qualquer época, Os Lusíadas - Ls Lusíadas.

O livro é alias iniciado com um longo, sólido e informadíssimo prefácio do professor Ernesto Rodrigues, transmontano não de Miranda nem falante, tanto quanto sei, do mirandês, mas também ele prestando a Amadeu Ferreira a sua cumplicidade transmontana e nordestina, e reconhecendo igualmente no tradutor de Os Lusíadas um espírito inquebrantável e uma preparação científica e cultural abrangente: poética, linguística, hermenêutica, histórica, antropológica e etnológica, o que aliado ao seu incansável labor dá origem à concretização destes projectos de largo alcance e dos quais esta tradução é um exemplo que grita.

Cingindo-nos mais concretamente ao processo adoptado por Francisco Niebro neste hercúleo empreendimento, podemos dizer que ele não diverge de forma sensível do habitual trabalho de tradutor do poeta Francisco Niebro em outros trabalhos que conheço. Numa atitude em relação à forma de encarar o acto da tradução que diríamos se situa a meio caminho entre os processos operativos adoptados por um Albano Martins e os processos operativos adoptados por um Vasco da Graça Moura, para exemplificar com o caso de dois grandes tradutores, poetas-tradutores, cujo trabalho, por motivos que não vêm ao caso, acompanhamos de perto de há longo tempo. Pormenorizando, de forma mais concreta: Albano Martins mantém em todas as circunstâncias um escrupuloso respeito pelo texto-fonte, procurando na sua versão, não obstante criativa, uma espécie de literalidade essencial, embora uma literalidade estética, num processo de mimesis representacional onde em caso algum o texto de partida se perca no texto de chegada, mesmo sacrificando ganhos estéticos ou poéticos que ele consideraria sempre abusivos e até ilegítimos; e por isso perdas seriam sempre esses lucros. Mantém-se sempre na pele de tradutor, o poeta fica na sombra, ainda que sempre dentro de uma sombra viva, dinâmica e actuante. Já Vasco da Graça Moura assume ostensivamente a posição de poeta sempre e em todas as circunstâncias, a solução estética precede o respeito literal perante o texto fonte, o tradutor aqui é o poeta que apresenta a sua melhor versão, o demiurgo da língua de chegada e por isso senhor todo o poderoso que cria e recria o criado. E assim nas suas recolhas poéticas amiúde se misturam poemas por ele escritos ab initio e poemas traduzidos, deste ponto de vista recriados, reescritos. Deve dizer-se, ambos os casos apresentados, o tradutor executa, de forma diferente, um acto de autoria.

Francisco Niebro, como já se deixou entrever, balança escrupulosa e sabiamente entre estas duas respeitabilíssimas atitudes, procurando pragmaticamente para cada caso, do seu ponto de vista, obviamente, a melhor solução. Atenhamo-nos aos materiais manuseados por Niebro: uma língua desde sempre, salvos raríssimos e excepcionais casos, usada somente na sua vertente oral; língua rural, popular, de reduzido e semanticamente limitado léxico. Então como fazer face aos gigantescos problemas colocados por obras-primas universais como as de Horácio, Ovídio, Saint-Éxupéry ou, neste caso, o Camões épico? É um processo de expansão lexical e sintáctico paulatino, por proximidade, contiguidade, analogia e homologia, que leve à solução mais correcta e, sobretudo, eficaz. Um conhecedor do mirandês e das limitações lexicais e estruturais da língua mirandesa espanta-se perante a flexibilidade das traduções de Francisco Niebro, pela forma como ele expande e agiganta esse reduzido núcleo vocabular e o submete às mais duras provas expressivas com resultados, não raro, surpreendentes. Quem tiver dúvidas pode esclarecê-las com um método tão simples quanto eficaz. Leia esta tradução mirandesa de Os Lusíadas e verá se não chega à mesma conclusão do autor destas linhas ou a aquela superiormente autorizada do professor Ernesto Rodrigues, que assina extenso e completíssimo prefácio, como já atrás se deu conta.

O tradutor move-se pois no exímio equilíbrio do compromisso, cada estância coloca um problema novo, da vária ordem do som, do sentido, da pragmática, da cadeia sintáctica, da estrutura formal. Numa diplomacia estética de alta filigrana conjugam-se, não raro no fio da lâmina, os diferentes planos, quais sejam o do sentido, o da forma estrófica, o da literalidade do léxico, o antropológico e claro, o fónico, nas diferentes vertentes da rima, da métrica e da acentuação. Da nossa própria leitura e da consulta do ficheiro estabelecido pelo tradutor onde se elencam casos problemáticos da tradução e que gentilmente Francisco Niebro nos forneceu, podemos, de seguida, exemplificar diferentes situações surgidas enquanto barreiras superadas com êxito. Recorrendo, para o sucesso dessa tarefa, reitera-se, à inteligência, ao saber poético, à técnica do tradutor, à mestria versificatória e à vasta cultura literária e filológica nos planos das línguas portuguesa e mirandesa, ao que acresce, e muito ajuda, ainda ser Amadeu Ferreira um puríssimo caso de bilinguismo. A Tudo isto se associa um estudo profundo da obra camoniana bem como o conhecimento exaustivo das inúmeras traduções de Os Lusíadas, ao longo dos tempos e nas mais desvairadas latitudes.

Vejamos então, em concreto, e a título meramente exemplificativo, tantos eles são, alguns casos curiosos colocados pela tradução e que sublinham exuberantemente este árduo mas exímio labor:

1-     Logo no canto I, na Proposição, no terceiro verso da segunda estância encontramos “terras viciosas”, que a preservar a literalidade, daria um efeito totalmente contraditório em mirandês, pois terras viciosas significariam, ao contrário do pretendido pelo nosso épico maior, terras férteis, viçosas, frutíferas quer entendidas no plano do literal quer no plano metafórico. O tradutor muda não traindo; ou seja para não trair foge da acrítica fidelidade. Escolhe, subtilmente, “perdidosas” ideia de algo moral e eticamente perdido, impuro, “mulheres perdidas”, assim se denominam as mulheres da vida, as que vendem o corpo ou, quiçá, a alma. Precisamente a ideia que Camões procura transmitir para o carácter herético e pecaminoso das terras dominadas pela moirama.

2-      Outro exemplo interessante é a palavra “famosas”, no segundo verso da estância dezassete ainda do Canto I em que o tradutor sacrifica o esquema métrico e rimático em obediência a um imperativo maior qual seja o carácter totalmente espúrio ao mirandês, até porque se trata de um vocábulo importando também em relação ao português, substituindo-o pela genuína palavra mirandesa “afamadas”.

3-     Um caso que merece saliência passa-se precisamente no quinto verso estância 106, última do Canto I: “onde pode acolher-se um fraco humano”, vertido para “adonde um fraco houmano achará scanho”. O verbo “acolher-se”, espúrio à língua mirandesa é substituído pelo substantivo “scanho”, banco situado na cozinha, junto á lareira, lugar privilegiado de refúgio e de repouso da árdua labuta diária. O meu saudoso amigo, Padre António Maria Mourinho, dizia-me, em mirandês, a propósito desta central peça de mobília de um lar mirandês, mais ou menos isto, cito de memória: “aqui se é feito, aqui se nasce, aqui se vive e aqui se morre”.

4-    Um verdadeiro achado é a solução engendrada nos versos sete e oito da estância 120 do Canto III, o episódio universal de Inês de Castro: “Aos montes ensinado e às ervinhas / o nome que no peito escrito tinhas”. Num gesto sacrificial à literalidade o tradutor estaria obrigado a qualquer coisa como “yerbicas / tenies”, situação verdadeiramente calamitosa de todos os pontos de vista. Em primeiro lugar porque o diminutivo “inhas” não existe em mirandês, a alma da língua repele-o, vomita-o, sendo os diminutivos feitos de uma maneira geral com os sufixos “ico/ica” ou “in/ina”. Segue-se que um mirandês só por excepção usará o termo yerba com diminutivo, pois o valor expressivo comummente de carácter afectivo associado fere a sensibilidade de qualquer camponês, cuja labuta diária assenta na luta sem tréguas contra essas amaldiçoadas ervas daninhas. Quando muito “erbicas” cingir-se-ia a uma pequena quantidade de ervas, o que contraria totalmente a ideia camoniana cujo magistério de Inês abrange, como é sabido, a totalidade das ervas, de toda a vegetação. Logo, recusou-se o diminutivo original para deixar simplesmente “yerbas” em seu grau normal, e para acertar as contas à moda de Miranda com a métrica usou a muleta “a to las”. Chegados aqui, o resto caiu que nem ginjas na estrofe camoniana, visto que para “tinhas” é magistralmente seleccionado “lhiebas”, que cai sem mácula no coração do sentido. À rima pobre camoniana respondeu Francisco Niebro com a riqueza da sua rima e da sua solução poética e semântica.

5-     O Professor Ernesto Rodrigues disserta no seu prefácio sobre a questão do uso de “conselho”/”concelho” em sentido de reunião, assembleia. Os seus argumentos parecem perfeitamente sólidos para o caso do português, já para o mirandês o caso se apresenta bem diferente, já que as duas palavras, homófonas em português, em mirandês se pronunciam sempre de forma diversa: cunseilho – que reporta ao acto de aconselhar e cunceilho – que refere assembleia, reunião e, naturalmente, divisão administrativa. Daqui decorre que independentemente da grafia que se adopte em português, a palavra mirandesa nunca poderá variar.     

E poderíamos continuar assim indefinidamente, tal a quantidade de provas a que o tradutor teve de se submeter, sempre ultrapassadas com êxito, ou, no pior dos casos, com danos reduzidos ao mínimo. E se me disserem que o óptimo é inimigo do bom eu digo que neste caso, e para sorte de Camões, da sua obra maior e das línguas mirandesa e portuguesa, o óptimo não foi inimigo de ninguém e, bem pelo contrário, pacificou-se com todas as partes.

Para terminar, e como testemunho da acção de Amadeu Ferreira/Francisco Niebro em prol da sua língua de berço, referir um texto tocante, assinado por Francisco Niebro, com mais de uma década, - não publicado, mas por outros meios conhecido por próximos e falantes do mirandês – intitulado, em tradução portuguesa, “Manifesto por uma Língua Moribunda”, “Manifesto por ua Lhéngua Marimunda”, que é a mais comovente, vibrante e apaixonada declaração de amor de um falante à sua língua que decai, desfalece, fraqueja em seu pulso de sangue. Esse Manifesto, de cerca de duas dezenas de páginas, à uma sereno e desesperado, poético e trágico, visceral e espiritual, é um misto de poema, oração e interpelação. Dirige-se aos seus conterrâneos em particular e aos portugueses em geral, porque património de Portugal é o mirandês, e merece que apresentemos aqui dois pequenos excertos: precisamente a abertura e o seu fecho. Repete-se, traduzidos por nós para português:

“Deus é como os de Miranda: não fala mirandês.

Quando uma língua não serve para rezar. Quando se dizem todos os pecados a Deus, sem medo, e se tem vergonha de rezar em mirandês. Quando é assim, não há língua que se aguente. Parece que Deus, quando andou pelo mundo a aprender línguas, chegou aqui e passou ao lado. Eu acho que o desviaram. É tempo de deus não ter vergonha de falar em mirandês. (…)

Vou-me ficando por aqui. Mas ainda vos quero fazer um desafio, a vós, mirandeses que, como eu, aprendestes a falar mirandês enquanto mamáveis, e também a vós que não o chegastes a aprender bem mas ainda estais a tempo, pois só por ele lembrareis vossos avós, e a todos vós que, quer sejais mirandeses ou não, só agora o descobris (…). Olhai por dentro de vós, lá bem no fundo, e respondei, um por um, olhos nos olhos: quereis ser os coveiros da língua que herdastes? Quereis deixar que morra a única coisa que é só vossa e, como nenhuma outra, vos distingue? Se quereis, então é tempo de comprar o esquife e preparar o enterro. Se não quereis, então despachai-vos porque o tempo urge para fazer alguma coisa.

Quem leu tudo isto, já está cansado e com razão. Por mim, podia continuar. Com o coração na ponta dos  dedos toda a noite fui escrevendo, sem sono, como quem fica a velar para esconjurar a morte. Lisboa inteira, e arredores, deixa-me a falar sozinho. A terra de Miranda, a 500 KM daqui, cheira-me a vindimas e a sementeiras.

                                      Lisboa, uma longa noite de Setembro de 1999

Se algum leitor, especialmente, como eu, natural dessa terra encantada, incomparável entre todas, que é o Planalto Mirandês, perante este excerto, sentir uma lágrima furtiva a lavrar-lhe a face, lamento. Não é nada aliás que não me tenha acontecido.

 

                                                                            Bragança, 1 Agosto de 2010

 

 

Fernando de Castro Branco (Duas Igrejas, Portugal, 1959).
Mestre em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, pela FLUP. Publicou o ensaio Poética do Sensível em Albano Martins, e vários livros de poesia, nomeadamente O Nome dos Mortos, Biografia das Sombras, Estrelas Mínimas, Plantas Hidropónicas, Marcas de Verões Partidos e Arte do Espaço. Estes dois últimos títulos integrados no volume A Carvão – Poesia Reunida. Publicou também poemas e ensaios em revistas literárias portuguesas, espanholas e brasileiras. Está presente em múltiplas antologias temáticas.

 

 

© Maria Estela Guedes
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