REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 07

   

A Guiné-Bissau é um país de parca produção literária e Odete Costa Semedo traz uma excelente contribuição para a poesia guineense com o seu livro “No fundo do canto”, de 2003, e publicado no Brasil pela Nandyala Livros em 2007.

Após o trauma do sangrento conflito armado entre 07/06/1998 e 07/05/1999, Semedo utilizou a experiência vivenciada como matéria poética para o canto-poema de seu livro: é “o desabafo escancarado de uma situação” (SEMEDO, 2007, p. 13) em que o país havia mergulhado por causa dos vários descaminhos políticos após a independência, em 1974.

População insatisfeita, governo fragilizado. A capital foi ocupada por forças estrangeiras, começou a guerra e a sociedade, desesperada, deslocou-se para o interior do país. Semedo não se omitiu perante a desgraça de seu povo, e Moema Parente Augel diz em posfácio: “dialogando com seu próprio tempo, Odete Semedo apresenta poeticamente uma história que ainda se está fazendo. Não trata somente do passado, seu texto não é só memória ou lembrança; é também projeção e indagação do futuro” (p. 186).

 

 
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Maria Estela Guedes  
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RICARDO RISO

 

Odete Costa Semedo

No fundo do canto

 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   

“No fundo do canto” trata da história recente do país e do horror da guerra, e, a partir daí, afirma a identidade nacional, buscando desconstruir a nação para reconstruí-la poeticamente. Para isso, Semedo nos introduz na multifacetada cultura das etnias guineenses, valendo-se do retorno às tradições, do culto aos antepassados e ao uso constante de vocábulos da língua crioulo que se misturam ao português, o que nos obriga a consultar um excelente glossário constante no livro.

Em poemas curtos ou longos; ora épicos, ora líricos; o eu lírico narra em primeira pessoa a guerra ou em terceiras pessoas descreve fatos e determina vaticínios. Apreendemos a crescente tensão em quatro partes complementares: “No fundo... no fundo”, “A história dos trezentos e trinta e três dias”, “Consílio dos irans” e “Os embrulhos”.

 

Na primeira parte somos convocados pelo tcholonadur, o mensageiro, que se auto-afirma o intermediário que narrará os acontecimentos: “Não te afastes / aproxima-te de mim / (...) pede-me que te mostre / o caminho do desassossego / o canto do sofrimento / porque sou eu o teu mensageiro / (...) vem... / senta-te que a história não é curta” (p. 22).

O mal, a “mufunesa”, aproxima-se, e é avisado pelos líderes espirituais das várias etnias: “Baloberus almamus e padres / também haviam anunciado / (...) um confronto vem a caminho” (p. 24), mas são ignorados: “...E todos se esqueceram / do prenúncio” (p. 28).

 

O afastamento da cultura tradicional para que o país se enquadrasse na política internacional, exigia a modernização da nação em detrimento das promessas da revolução: “Veio a tecnologia / espreitou / mas não entrou / tropeçou num buraco / estava escuro / não deu com a entrada / e continuou na rua ao pé da casa / à espera de luz “ (p. 36). A ganância dos dirigentes causa revolta na população, antecipando o clima da guerra: “era preciso não deixar / que a prostituição / guiasse a nossa constituição / Que a intuição / grávida de mentira / substituísse / nua e crua / a nossa construção” (p.37-38).

Com frágeis recursos, o país aceita as leis neoliberais e o poema questiona a entrada na competitividade ocidental: “à espera de um dia novo / interrogavam-se entre si / como caminhar no escuro / como dar o que não se tem / como ter o que não se construiu / como arrecadar o que não se juntou / como juntar o que não se espalhou?” (p.43).

“A história dos trezentos e trinta e três dias” denuncia a agonia dos guineenses com o cruel conflito. A chegada voraz do capital estrangeiro, abandona os valores da revolução: “a tecno e a sua logia / a demo e a sua cracia / mais casados do que nunca / obrigaram a outros caminhos / outras gentes surgiram / ... com outras idéias / com outros ideais / Alguma alegria / reajustes / aberturas / acordos / muitos dissabores / mal-estar” (p. 62).

O caos estabelecido pela violência dos militares nacionais e estrangeiros acompanha o horror da poetisa: “venceram a ganância / a violência / e o desespero / E nós? / não acredito / no que os meus olhos vêem” (p. 74). O vaticínio se cumpriu; os ideais da libertação, minados: “Um mundo de promessas / foi deixado para trás” (p. 68). Surge a distopia: “Bissau não quis acreditar / que estava sendo violada / violentada / adulterada (...) / nua deitou-se de bruços / para receber chicotadas / para receber açoite” (p. 69-70).

Com a guerra fratricida, o sujeito poético sente-se isolado, recupera os valores autóctones e clama aos antepassados e entidades: “Onde estarão os defuntos / da nossa djorson / nossos titãs / Onde se terão escondidos / asalmas e irans / de Kobiana e de Forombal / protectores de mulheres e crianças / nossas crenças / Estarão envergonhados?” (p. 83)

No “Consílio dos Irans”, a convocação das entidades de todas as etnias e subetnias, seus irans e totens em rituais mostra a pluralidade cultural guineense. As linhagens anunciam-se: “Irans de Bissau / de Klikir a Bissau bedju / de N’ala e de Rênu / de Ntula e de Kuntum / de Ôkuri e de Bandim / de Msurum / Varela e do Alto krim / de Klelé e de Brá” (p. 87). É feita a kontrada (grande reunião) com irans (divindades protetoras) de todas as djorsons (linhagens), porque “há culpados... / que não fiquem mudos / nem impunes” (p. 87). Semedo recorre à religiosidade tradicional para reconstruir a fragmentada identidade nacional através da identidade coletiva e salvar a nação da guerra.

Contudo, as djorsons são hierárquicas. Algumas não têm direito à palavra ou não foram chamadas, e comparecem por vontade própria. É a busca metafórica da poetisa em unir o país: “Pertencemos a este mundo / ao mundo dos irans / protectores de djorsons / djorson de Guiné / djorson de Bissau / cá estamos pois esta que é vossa / também é a nossa terra / Não fomos chamados / foi um erro / Se não participarmos / será outro erro (...) / pois a mufunesa que abalou Bissau / tocou-nos também... não escolheu djorson” (p. 93)

Etnias reunidas, inicia-se a abertura dos “embrulhos”. O primeiro mostra a violência, a fuga dos moradores da capital e os que se beneficiam com o horror: “Cada exclamação mais desespero / em cada desesperado um fugitivo / cada fuga um desencontro / a cada desencontro um desencanto (...) / Na desgraça de uns / muitos se enalteceram” (p. 117).

O segundo embrulho destaca, com ironia, a perversidade dos oportunistas que se adaptam aos novos tempos com personagens inescrupulosos: “Matutino foi crescendo (...) / Manhã virando tarde / Matutino / Vespertino se tornando / Jurou até a morte / jamais ficar para trás / mas para trás / passar os outros (...) / Viviano viveu anos / na prostituição (...) / Anos passaram / Viviano mudou de nome / de postura e de residência / por conveniência / das circunstâncias / Hoje Viviano é Presentino / de futuro garantido (...) / Agora em favor da renovação / conselho do seu avô Prudêncio” (p. 140-143).

O terceiro embrulho mostra o descrédito com os políticos, revela o cinismo das autoridades no “discurso de Urdumunhu” (redemoinho) ao disfarçar o atraso tecnológico e as desigualdades sociais e “incentivar” os valores tradicionais: “Nada de receber ao final do mês / que é vício colonial (...) / Não vos deixeis levar / por ideais / neocoloniais (...) / Para quê, luz elétrica? / Saudosismo / do imperialismo colonial (...) / Voltemos às nossas origens irmãos / Para quê, importar fósforos? / Mil vezes melhor / atritar duas pedras / e obter o lume precioso / sem encher o cofre imperialista” (p. 151-153).

Entretanto, o rompimento com a exploração se dá quando todas as etnias se unem, ou seja, o país se recompõe pela reconciliação de seus filhos, sem apoio estrangeiro. A força dos antepassados e das entidades emerge a nação: “Os irans das djorsons sentiram / Guiné e Bissau uma só / erguendo-se com vigor / reafirmando sua força (...) / invocaram todas as energias / do alto às profundezas do mar / e o chão foi abençoado” (p. 159).

Depreendemos após a leitura de “No fundo do canto”, que, Odete Semedo, testemunha do conflito de 1998/1999, denuncia o horror da guerra, usa a ironia para desmascarar o discurso da classe dominante e o mal que o neoliberalismo encoberta. Em seu texto, propõe, através de alegorias e da desconstrução da realidade do país, a revalorização da multifacetada cultura guineense em favor da identidade e soberania nacionais.

 

 

Ricardo Riso (10/04/1974, Rio de Janeiro/Brasil)
Graduado em Letras pela Universidade Estácio de Sá; concluiu (ouvinte) a pós-graduação lato sensu em História, Cultura e Literaturas Africanas e Afro-brasileiras da Universidade Castelo Branco; é titular da seção de crítica literária e integrante do conselho editorial da revista acadêmica África e Africanidades (www.africaeafricanidades.com); autor do blog Riso - Sonhos não envelhecem - http://ricardoriso.blogspot.com. Colaborador do semanário cabo-verdiano A Nação. Na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa apresentou comunicações em congressos e seminários, e ministrou palestras em instituições como UFRJ, UNESA, FERLAGOS e Colégio Pedro II.

 

 

© Maria Estela Guedes
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