REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 07

   

 

      Ele disse-lhe que talvez tivesse sido uma águia numa vida passada, e fez um gesto largo com a mão que esticava o seu nariz pontiagudo. De facto a sua fisionomia justificava aquela afirmação. “Sim, sim, eu acredito em vidas passadas. Em menino assisti a muitas brigas dos meus pais, talvez isso explique este bloqueio que tenho, mas talvez a águia que fui tenha assassinado muitos coelhinhos indefesos e estou a ser castigado por isso.”E agora emociona-se demais e ama todos os que o rodeiam para se redimir dos crimes de rapina. “Talvez tu tenhas sido… deixa ver… uma libelinha, sim uma libelinha, é isso”. Disse Xavier ao Trompetista alemão de óculos redondos e faces rosadas pelo álcool. O rapaz corou um pouco mais e admirou-se admitindo a semelhança, nunca tinha pensado nisso, mas divertia-se com esta conversa. O Trombonista, ria, ria até não poder mais, contorcia-se enrolando o seu corpo forte e comprido de uma espécie diferente de atleta. Ainda estava na parte em que Xavier se descosia assim descaradamente sobre o seu bloqueio. Não podia acreditar que aquele ser patético que fora o bobo da corte tivesse realmente consciência daquela idiotice pegada.

 

 
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Maria Estela Guedes  
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MARIA MORBEY HENRIQUES

 

O autocarro

 

 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
 

     Mais! Não se importava de o revelar com uma naturalidade assustadora. Esta leveza e esta falta de pudor chocavam o jovem músico, mas entrou no jogo. “E eu? Eu seria um burro, ahn? Que te parece?” “Sim” disse Xavier “Sim, claro, mas isso não é mau, isso pode ser bom para ti, muito bom mesmo, na tua vida passada deves ter carregado muitos fardos, porque os burros antigamente, as pessoas usavam-nos para carregar fardos pesados, e agora estás a colher os lucros com o teu talento.” O Trombonista envaideceu e assumiu a postura clássica de um músico de orquestra com colarinho engomado e casaco de aba de grilo. Todos podiam ver o orgulho que ostentava no peito. Um orgulho quase arrogante e sem vincos. Por isso fazia-se acompanhar sempre do seu amigo Trompetista bem mais desleixado do que ele, as fragilidades expostas na roupa pingada dois números acima do tamanho do rapaz trémulo escondiam a sua própria timidez. A cantora estava curiosa. “E eu? O que teria sido eu?” Xavier não hesitou. “Ah! Tu foste uma fada… não, uma sereia, foste de certeza uma sereia.” E levantou-se para imitar o movimento que lhe inspirava a voz da rapariga. Um movimento amplo e suave como a cauda de uma ondina. “Quando te vi o meu coração fez assim.” Esticou o braço para acender intermitentemente a lâmpada que pendia sobre o seu assento no autocarro. Estava a demonstrar nesta metáfora física a alegria que lhe aqueceu as têmporas da primeira vez que a viu. A rapariga baixou os olhos envergonhada, tolerava mal os elogios.

   As lágrimas inundavam os olhos de Xavier cada vez que bradava aos ventos com a cabeça do lado de fora da janela que ia ser pai. Que a sua companheira trazia há cinco meses um menino que já tinha nome. “É um “pilas”, e vai chamar-se Octávio Amadeu, é que nós gostamos muito de Mozart. Ah! Mozart…” Ficou de repente absorto em melodias de um violino que ostentava invisível em suas mãos. Estacou e mudou de assunto para não se emocionar demais, embora essas tentativas fossem sempre inúteis. “Eu! Comprei um porco! É mesmo verdade, comprei um porco. És vegetariana?” A cantora disse que não com a cabeça. Ele repetiu a pergunta a todos os que se encontravam presentes sem dar espaço a respostas, assumindo que ninguém se privava dos prazeres da carne. “ Vos convido a todos, em Novembro, a comer o meu porco. É mesmo, estão todos convidados!” Ele tinha mesmo comprado um porco por 30 euros que estava agora a engordar no curral de um vizinho, não o queria muito perto, nem lhe podia pôr um nome, caso contrário nasceriam laços afectivos entre os dois e já não teria coragem de o matar para oferecer o tal banquete. “Ei! Porque não compras também um burro?” Troçou o Saxofonista que até agora se tinha mantido calado, mas de ouvidos bem atentos. “Agora até já oferecem um subsídio a quem tiver um burro, parece que estão em vias de extinção”. E soltou uma gargalhada grave de saxofone barítono. “Oh! Sim, sim! Eu queria, mas a minha companheira não gostou da ideia. Pronto, eu fiz-lhe a vontade, primeiro o filho e depois o burro. Um burro e um pato, vão ser amigos inseparáveis, já estou a ver… vai ser lindo… O burro a pastar, o pato a patinhar e o Octávio Amadeu a gatinhar no meio dos dois.” Todos riam descontroladamente, e não era só do vinho que temperara um jantar bem regado e bem brindado, Xavier era realmente divertido enquanto não se contrapunha a intuição de uma tristeza proporcionalmente directa a toda esta euforia. Mas ninguém estava para ali virado. Enfim… talvez não existisse essa tristeza, talvez houvesse pessoas assim, tão simples quão alegres e generosas. Talvez o tal bloqueio fosse, na verdade, a sua salvação. Um filtro à fealdade do mundo. Para ele tudo eram flores e cores, e os malmequeres não faziam parte do seu jardim. Parecia que a toda a hora estava alucinado, cada minuto era para ele uma dádiva de Deus e retribuía as graças dos céus com um sorriso inimaginável e de semblante liso, desprovido de qualquer peso que lhe curvasse as costas. “És muito poético, tudo isso é muito poético.” Atreveu-se a cantora. Xavier respondeu-lhe com aquele gesto de beijo repenicado com os dedos unidos e esticados que fazem os italianos, assim que se lhes dá o cheiro de uma pizza suculenta. Ela interpretou este gesto como um agradecimento desmesurado, mas já se estava a habituar, tudo naquela criatura estava fora de qualquer medida convencional. Estas palavras surtiram efeito, o Trombonista que mantinha uma atenção aguda na conversa enterneceu-se com a rapariga, admirava a sua coragem de dizer o que lhe vai na alma. Ele, que achava que os seus vinte e oito anos de vida lhe tinham dado experiência suficiente para analisar sem erro qualquer situação nova, começou a vacilar. Era sem duvida um músico talentoso e de um profissionalismo inegável, mas na vida e no amor era uma criança ainda, começava agora a dar os primeiros passos. Quando a viu convenceu-se que se tratava de mais uma criatura que vomita a beleza e futilidade, que lhe provoca náuseas. Mas nestas palavras e na expressão que se encorajava, a medo, a ver, sentia algo bastante mais profundo – um ser humano. Está baralhado, e não gosta nada de se sentir assim, de pôr à prova as suas premissas irrefutáveis, mas não tem hipótese, o ambiente que se respira dentro do autocarro tem tanto de cómico como de autêntico… em consonância com os seus mais secretos desejos, que ele próprio mantém bem escondidos em folhas de pautas e em código de música. Esta espécie dentro da fauna dos músicos não era a mais rara, homens transformados pelo seu instrumento substituem as emoções pelo estudo, e o amor pelo reconhecimento público. Assim, sem atilhos que o prendam, a vida torna-se mais fácil e mutável. Ela não… era tão transparente, não sabia ser de outra forma, o mundo não tem qualquer sentido se não for vivido e sentido às claras, sem subterfúgios. A esta altura já se tinha deparado com as desvantagens de nadar de costas nos lagos da vida, não se está espera, quando findam, não dá para nos protegermos, mas, em todo o caminho, sabe-se a cor do céu. Assim o seu estilo não é ingenuidade, é um caminho consciente e uma busca que não acaba enquanto o coração não parar de bater. É uma questão de perspectiva, e de escolha também, não se pode julgar alguém por ser aéreo ou da mesma forma alguém que receia o embate e põe as mãos sobre a cabeça.

    O autocarro comia depressa os quilómetros de estrada, os passageiros sentiam a leve náusea da deslocação acelerada. Em breve a escuridão da noite acabaria por apagar também as memórias desta viagem, mas as sensações ficarão retidas à flor da pele num suor estagnado.  

 

 

Maria Morbey Henriques (Lisboa, 1975).

Possui formação académica em Psicologia Clínica e Mestrado em Psicossomática, com a classificação final de 19 valores. Em 2006 é convidada como comunicadora no colóquio interdisciplinar de Psicossomática no ISPA sob o tema “Corpo e Corporalidade na Arte”. Desenvolve uma reflexão sobre a correspondência o Modelo Multidimensional de Sami-Ali e a Música ou a procura do som do instrumento e o papel da voz enquanto manifestação orgânica e psíquica como manutenção de saúde através da Arte. Em canto teve formação com Luísa Bastos, Bárbara Lagido (técnica vocal) e Paula Oliveira (vertente de jazz e técnica vocal – alexander’s technique). Em 2003 frequenta o 1º ano do curso geral de Jazz (piano e formação musical) na JBJazz. Como vocalista trabalha em formações de Jazz e Bossa Nova acompanhada por músicos como: Guto Lucena,  Xico Zé Henriques, Zé Soares, Massimo Cavali, Yuri Daniel, Paulo Rosa, Emílio Robalo, Carlos Miguel, Múcio Sá, Carlos Barretto e João Lencastre entre outros. Desenvolve o Projecto “Andança” com direcção musical e arranjos de Gustavo Aquino e Yuri Daniel, com a participação do Violoncelista Andrzej Michalczyk e do Pianista Emílo Robalo, tratando-se de um objecto criativo com efeitos sonoplásticos electrónicos num contexto acústico, e poesia (da sua autoria). Em educação pela Arte tem formação com Madalena Wallenstein. Em Dezembro de 2009 inicia um projecto com o CCB criando um Atelier “Clube de Jazz para Miúdos e Graúdos” na Fábrica das Artes – Serviço Cultural e Educativo do CCB sob a nova direcção de Madalena Wallenstein. Este projecto é também apresentado no Festival de Jazz itenerante (Jazz.pt) e no festival de jazz de Portimão; tendo continuidade em Julho numa segunda edição no CCB. A partir desta experiência no CCB foi convidada a tornar-se artista colaboradora da casa desenvolvendo projectos artísticos para a comunidade. Desenvolve sob encomenda do Teatro Tempo de Portimão um Atelier “No País dos carrocéis” (Música e Movimento). Tem, desde o ano de 2009, colaborado com a Fundação do Gil (Hora da música em hospitais em todo o país), levando experiências musicais interactivas num contexto hospitalar. Foi directora artística de um projecto encomendado pelo CCB: um concerto encenado (Banjazz, um “Bichinho Esquisito) na área do Jazz com temas originais, vocacionado para público a partir dos 6 anos, que teve lugar entre 24 de Fevereiro e 28 de Fevereiro de 2010. Presentemente integra um Trio numa performance cujo fio condutor são o Jazz e imagens emocionais com textos em prosa poética (da sua autoria) num espectáculo intitulado “Lua à janela” com  Zé Soares e Carlos Barretto.

 

 

© Maria Estela Guedes
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