REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 07

 

Existe um homem que tem o costume de me bater com um guarda-chuva na cabeça. Hoje faz exatamente cinco anos que ele começou a me bater com o guarda-chuva na cabeça.  No início,  eu não suportava isso; agora já estou habituado. Não sei o nome dele. Sei que é um homem comum, de roupa cinzenta, meio grisalho, com um rosto inexpressivo. Conheci-o há cinco anos, numa manhã quente. Eu estava lendo o jornal à sombra de uma árvore, sentado num banco do bosque de Palermo. Subitamente, senti que alguma coisa me tocava a cabeça. Era este mesmo homem que, agora, enquanto escrevo, continua mecânica e indiferentemente dando-me guarda-chuvadas.

Naquela ocasião, voltei-me cheio de indignação: ele continuou dando-me golpes. Perguntei-lhe se estava louco: nem pareceu ouvir-me. Ameacei, então, de chamar um guarda: imperturbável e sereno, continuou sua tarefa.  Depois de uns instantes de indecisão e vendo que não desistia de sua atitude, levantei-me e dei-lhe um soco no rosto. O homem, emitindo um leve gemido, caiu no chão. Em seguida, e aparentemente com grande esforço, ergueu-se e, silenciosamente, voltou a me bater com o guarda-chuva na cabeça. Seu nariz sangrava e, naquele momento, senti pena e remorso por ter-lhe agredido daquela maneira. Porque, na verdade, o homem não me dava exatamente guarda-chuvadas: me aplicava uns golpes leves, completamente indolores.  Claro que esses golpes são extremamente incômodos. Todos nós sabemos que quando uma mosca pousa na nossa testa, não sentimos dor nenhuma, apenas achamos desagradável. Pois bem, aquele guarda-chuva era uma mosca gigantesca que, a intervalos regulares, pousava de vez em quando na  minha cabeça.

 

 
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Maria Estela Guedes  
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FERNANDO SORRENTINO

 

 Existe um homem que tem o costume de me bater com um guarda-chuva na cabeça

Tradução de Ana Flores

De Imperios y servidumbres, Barcelona, Editorial Seix Barral, 1972
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   

Certo de que me encontrava diante de um louco, quis me afastar. Mas o homem me seguiu em silêncio, sem parar de me bater. Comecei, então, a correr (aqui devo esclarecer que há poucas pessoas tão velozes quanto eu). Ele saiu em minha perseguição, tentando inutilmente assestar-me  algum golpe. E o homem ofegava, ofegava, ofegava e bufava tanto, que achei que se eu continuasse obrigando-o a correr daquele jeito, meu torturador cairia morto ali mesmo. 

Por isso parei de correr e voltei a andar. Olhei para ele. Em seu rosto não havia gratidão nem censura. Apenas me batia com o guarda-chuva na cabeça. Pensei em entrar numa delegacia e dizer: “Senhor delegado, este homem está me batendo com um guarda-chuva na cabeça.” Seria um caso sem precedentes. O delegado me olharia desconfiado, me pediria documentos, começaria a fazer perguntas embaraçosas, talvez acabasse por me deter. 

Pareceu-me melhor voltar para casa. Tomei o ônibus 67. Ele, sem parar de golpear-me, subiu atrás de mim.  Sentei-me no banco da frente. Ele se instalou, em pé, a meu lado; com a mão esquerda se segurava no corrimão; com a direita brandia implacavelmente o guarda-chuva. Os passageiros começaram a trocar sorrisinhos tímidos. O motorista passou a nos observar pelo espelho. Pouco a pouco, foi-se formando uma grande gargalhada, uma gargalhada estrondosa, interminável. Eu, coberto de vergonha, parecia estar em fogo. Meu perseguidor, alheio às risadas, continuou com seus golpes. 

Desci – descemos – na ponte do Pacífico. Íamos pela avenida Santa Fe. Todos se viravam estupidamente para nos olhar. Pensei em dizer-lhes: “Estão olhando o quê, imbecis? Nunca viram um homem que bate na cabeça de outro com um guarda-chuva?” Mas pensei, também, que nunca deviam ter visto tal espetáculo. Cinco ou seis meninos começaram a nos seguir, gritando como energúmenos. 

Mas eu tinha um plano. Já em casa, quis fechar bruscamente a porta na cara dele. Não consegui: com mão firme, antecipou-se a mim, agarrou a maçaneta, forçou por um momento e entrou comigo. 

Desde então, continua batendo-me com o guarda-chuva na cabeça.  Que eu saiba, jamais dormiu ou comeu nada. Limita-se a bater-me. Acompanha-me em todos os meus atos, mesmo os mais íntimos. Recordo-me que, no princípio, os golpes me impediam de conciliar o sono; agora,  acredito que,  sem eles, seria impossível eu dormir. 

Mesmo assim, nossas relações nem sempre têm sido boas. Muitas vezes lhe pedi, de todas as formas possíveis, que me explicasse esse proceder. Foi inútil: silenciosamente continuava batendo-me com o guarda-chuva na cabeça. Em muitas ocasiões dei-lhe socos, chutes e – Deus me perdoe – até guarda-chuvadas. Ele aceita mansamente os golpes, aceita-os como parte de sua tarefa. E este fato é justamente o mais alucinante de sua personalidade: esse ar de tranqüila convicção em seu trabalho, essa falta de ódio. Enfim, essa certeza de estar cumprindo uma missão secreta e superior. 

Apesar de sua falta de necessidades fisiológicas, sei que, quando lhe bato, sente dor, sei que é fraco, sei que é mortal.  Sei também que um tiro me livraria dele. O que não sei é se o tiro deveria matar a ele ou a mim.  Também ignoro se, quando os dois estivermos mortos, ele não continuará batendo-me com o guarda-chuva na cabeça. De qualquer modo, esta racionalização é inútil: reconheço que não me atreveria a matá-lo nem a matar-me. 

Por outro lado, atualmente tenho certeza de que já não poderia viver sem seus golpes. Agora, cada vez com maior freqüência, me perturba um certo pressentimento. Uma nova angústia me corrói o peito:  a de pensar que, talvez quando mais precisar dele, este homem irá embora e não mais sentirei essas suaves guarda-chuvadas que me faziam dormir tão profundamente.  

 

 

Fernando Sorrentino (Argentina)
Nasci em Buenos Aires em 8 de novembro de 1942. A maior parte de minha infância e de minha adolescência transcorreu no cinzento quadrilátero formado pelas avenidas Santa Fe, Juan B. Justo, Córdoba e Dorrego. Em épocas muito juvenis, fui um simples funcionário de escritório. Em épocas não tão juvenis, e durante muito tempo, fui professor de língua e literatura em diversos colégios secundários; em geral, recebi o afeto de meus alunos e de meus colegas, o que me diz que sou um cara legal. Nos interstícios laborais, tento ler e tento escrever. Tenho sensibilidade para gostar da beleza poética, mas me falta um mínimo de talento para escrever um poema com algum mérito. Destruí sem culpa minhas poesias juvenis, pois não achei sensato acrescentar mais fealdade ao mundo. Por outro lado, estou bastante satisfeito com minhas invencionices narrativas. Como dizem os homens dignos de fé, em minha literatura de ficção há uma curiosa mistura de fantasia e humor que conduz a um estilo às vezes grotesco e razoavelmente verossímil. Em geral, sinto-me muito à vontade comigo mesmo. Não tenho nenhuma vocação para fazer parte de nenhum grupo literário, de nenhum comitê de inabilidades afins, de nenhum clube de elogios recíprocos. Mas confesso, isto sim, que milito nas perseverantes hostes do Racing Club de Avellaneda. Gosto mais de ler do que de escrever, e na verdade escrevo muito pouco. Ao longo de quase quarenta anos, não tenho muita bibliografia para exibir. Como todo o mundo, em maior ou menor medida, ganhei alguns prêmios literários. Em resumo, sou relativamente feliz. F. S. (Tradução de Ana Flores)
http://www.fernandosorrentino.com.ar

 

 

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