REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 06

 

  Quando o Verão vai decorrendo, muitas coisas acontecem: ficamos rodeados, feitos ilhas, de coisas que essa estação leva a bom porto. E aos solavancos sociais do tempo respondemos muitas vezes ora com a tristeza, ora com a melancolia - por tão pouco terem aprendido os que nos deviam bem governar.   Apesar de nos garantirem que as lições lhes iriam servir de emenda.

  Anda-se de férias e é um gosto. Anda-se de férias e é, frequentemente, uma inquietação.

  Ao cronista cabe então o acto de recordar: um dia, em terras do Douro, frente a esse mítico rio, eu pude contemplar e guardar nos escaninhos da memória a rosácea em claro-escuro da presença solene e familiar das árvores e da luz que das arribas emana, fremente como um gole de puro vinho sagrado.

  Duriense e lavado. E algumas crianças que passavam correndo e gritando maravilhadas nos seus jogos e invenções. Uma bica e um bolo e um cálice de Porto consumidos para todos os momentos no restaurante de acaso e que de repente, mercê de uma simples paragem, me ficou perene na memória, o carro que já lá ia devorando paisagens e fortuitas aldeolas no diferente caminho de outras terras, outras gentes.

 

 
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Maria Estela Guedes  
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Nicolau Saião

MIRADOURO 

UM ÍNTIMO FULGOR

 

                                                                  Nicolau Saião
 
 
 
 
 
 
 

   Mas há sempre um rádio, um jornal divisado de relance, uma semi-conversa ouvida ao desbarato dos minutos que nos puxa para a natural realidade. Por exemplo: a mais alta taxa de tuberculose dos países ditos civilizados. Ou ainda: um país onde as pessoas têm receio, medo, timidez de recorrer à Justiça, que é frequentemente useira em se embaraçar e em se quedar embaraçada. Nos seus símbolos, está de ver, que são tantas vezes lentos e confusos, de humanidade anónima e acinzentada. E o défice das contas públicas e os atentados ecológicos e os actos indignos que alguns cometem e nos atingem a todos.

  Mas esse Verão tem também dentro de si outros signos, luminosos: a coloração esperançosa das uvas, o palpitar terrenal das boas castas, a renovação que se adivinha nos céus claros e prometendo farta colheita, serenal frutificação nos campos desse norte que sempre vejo como uma promessa de alegre fecundidade.

  Alentejano que sou, as terras do claro rio - como dizia Camilo - eram-me em grande parte desconhecidas, eram um mundo longínquo apenas visto em contos e romances, em poesias e documentários. E então, quase por acaso, decerto por maravilhado destino, nele me tenho percorrido por fora ao divisá-lo por dentro.

  Terras amáveis e de sinal fraterno, terras da grande corrente aquática que de Espanha nos chega como um eco de outras memórias. E nesses lugares a mim alheios há um timbre límpido de um futuro possível que palpita na terra vicejante, como se nos dissesse: mais tarde será de novo tempo de reverdecer, ainda que em muitos lados vá persistindo um negrume sáfaro nos campos e nas almas.

  E assim, entre a memória de um país ainda adiado, onde sobre a fragilidade das palavras dos políticos corre a aragem dos pragmatismos regionais geradores de contradições, vai o Verão certinho e seguro para outras paragens. E nós dentro dele, pois que somos habitantes do Tempo e seus filhos naturais – parentes das morenas terras do sul, dos dantes floridos e agora frequentemente calcinados montes do norte, mas sempre habitantes desta pátria que mesmo sendo tão diversa ainda não se consignou a um viver que lhe perpetue os prestígios, os direitos e as certezas de amenidade e de inteireza - que da real cidadania são o fruto de esperanças e de assombros.

 

  CÃES E HOMENS
 

  Há cães para todos os gostos. Na nobre raça dos cães, antiga e venerável, velha companheira do bicho-homem, há páginas de emoção e de terror, de alegria e de miséria.

  Há cães de muitas raças, variadas e diferentes como a sopa inglesa. Há o cão-de-água, o cão da Patagónia, o cão-pastor, o cão-polícia, o cão de luxo. Há o que ladra e o que morde, o que rosna depois de lhe fazerem festas e o que olha para nós com uma névoa de espanto ou comoção no olhar. Há o cão cosmopolita, que é faceiro e altivo como um jolicoeur francês; há o cão de província, que é melancólico e bisonho, rude e campestre, valente nos montes e nos casais, dedicado e por vezes agressivo para com o estranho que passa a horas mortas. Há também o cão de raça que, normalmente, tem mais olhos que barriga, mais orelha fita que orelha atenta. E há o “cão” popular, que nem é cão mas falta de proventos...pagantes.

   Por outro lado, há homens para todos os (des)gostos. Há homens-touros, homens-raposas, homens-lobos. Há os que têm a alma peluda como um urso, o coração minúsculo como uma bolota - e por isso se lhes chama homens- bestas.

  Que nem têm da besta primeva a inocência da Natureza, mas a brutalidade sedimentada por séculos de perfídia e manha.

  Nisto de cães e homens há que ter discernimento, porque senão corre-se o risco de injustiça para com os pobres bichos. Ou para com os pobres homens.

  Um homem, afinal, apesar de tudo o que se possa dizer sempre é um animal racional ao passo que um cão, por muito inteligente que seja, só aprende habilidades já que o seu mundo é o mundo das planícies ao crepúsculo ou ressurgindo na madrugada: o mundo onde uma árvore é só uma árvore, uma pedra só uma pedra, um rio só um rio. O mundo inocente das coisas inocentes.

  Para o homem o caso muda de figura: o mundo está repleto de símbolos, de signos, de mistérios. De tudo pode sair uma interpretação, uma filosofia. O homem interroga o mundo, interroga-se a si mesmo sobre o que é no mundo.

  Será um anjo caído? Um animal transformado? Uma espécie em mutação progressiva, dispersa no vasto cosmos?

  Quando o homem através dos tempos primevos domou o lobo e fez dele, como cão, seu companheiro de caçadas, de viagens na terra desconhecida, não pensou decerto que mais tarde o cão se tornaria o símbolo da submissão bajuladora ou da boçalidade, o símbolo de coisas tão pouco atraentes como a repressão cega, a maldade teimosa e imbecil, a traição escondida. O símbolo da boca que morde a mão depois de se ter servido. O símbolo da ingratidão. E,

como se sabe, é o homem que procede assim, não o cão. O homem é que faz porcarias no anzol depois de ter comido a isca, como diz o ditado. O homem - ou o arremedo de homem - é que procede… caninamente. E que me perdoem os cães esta referência injusta...

  Eu, como se calhar toda a gente, tive cães - sem serem, felizmente, dos tais “cães” populares...Tive, na infância, um cão amarelo acastanhado e, mais tarde, um cão preto e branco que ladrava roucamente e que, à noitinha, se ouvia pelas quebradas da Quinta Ferreira. Era o “Larzi”, e apareceu morto um dia, o pobre corpo estendido no meio do pinheiral. Creio que morreu de velho, pois era cão que os anteriores habitantes da quinta nos haviam deixado. Ou então faleceu vitimado por alguma dessas doenças que atingem os animais.

  Nunca o soube. O que eu recordo bem é o seu corpo deitado no chão e a sua cabeça de perfil, nobre mas já vazia de luz, as fauces abertas como para abocanhar em desespero o mundo e nele permanecer. Ficou, na minha memória, como um sinónimo de tudo o que representa inocência e pacíficas virtudes. E por vezes, em sonhos ou em meditações, ou ao vagar dos minutos, ainda ouço ladrar esse cão longínquo. Ainda converso com ele, como nessa infância habitada por quimeras e entardeceres em que andei, quando aprendi que os cães falavam embora com outra voz.

   Depois tive, já bem adulto, por vários anos, um podengo alentejano amigo de casa e companheiro de passeios: o Clóvis, assim uma espécie de filho em figura canina. Perdoem lá estas madurezas de poeta, juro-vos que eu não gosto de cães por detestar as pessoas. No meu creio que largo coração de lírico cabem todos os amores, seja por um cão, seja pela humanidade, seja até por uma iguaria bem preparada. No fundo, não serei nisso igual a todos vós que me relanceais a prosa? O Clóvis, recomendava -se pelo bom senso e pelo discernimento. Um dia, tempos atrás, disse-me com aquela voz mansa que usava para falar aos humanos: “Dono, não achas que o País anda um bocado às três pancadas? A minha política é o trabalho, como costuma dizer-se, mas não te parece que certos senhores políticos exageram no seu papel de mandões traquinas? Às vezes só me apetece dar-lhes uma mordidela no traseiro!”. Não lhe respondi de viva voz, limitei-me a abanar a cabeça. É que ele tirara-me as palavras da boca.

   E agora que, segundo parece, estamos no tempo em que os homens vão mordendo mais do que os cães (não é isso que nos diz uma famosa notícia com origem nas estatísticas americanas?) celebremos cortêsmente por um segundo o velho companheiro de artes venatórias e de outras viagens, presença reconfortante num mundo repleto de dentes caninos, de dentes que afinal querem é morder à sorrelfa...

 

  OS IDIOTAS ÚTEIS
 

  Certa noite durante uma recepção no Kremlin dos tempos já distantes de Josep Stalin, este notou algo divertido que Leonid Afanassiev olhava, pasmado, a peroração a que se entregava numa roda de aparatchikis o tristemente célebre Andrei Jdanov, comissário-mor para os Assuntos Culturais.

   Entregando-lhe o copo de vodka que tirara da bandeja de um criado, Stalin disse para o seu interlocutor com a sua proverbial bonomia e cinismo requintados: "Tens razão, camarada, Jdanov é um idiota... Mas é um idiota útil!"

   A expressão pegou e fez carreira, nomeadamente quando estavam no poleiro os asseclas do chamado Paizinho ou os que, não o sendo, têm o mesmo perfil mental. É hoje uma expressão clássica. Mas que vêm a ser os idiotas úteis?

   São os auxiliares ingénuos, ou cavilosamente oportunistas, daqueles que dominam os lugares e as consciências. Aquilo a que se chama, grosso modo, os lacaios do partidão – seja ele de direita ou de esquerda, às cores ou a preto e branco.

  Geralmente pensadores falhados, intelectuais a meio-pano, publicistas de trazer por casa, cientistas de tranglomango, funcionários de perna quebrada, os idiotas úteis servem a estratégia da formação política dominante ora por interesse próprio ora por não perceberem até que ponto esta se serve - frequentemente com sobranceria - dos seus relativos talentos. Por vezes nem pertencem ao sector indefectível do partidão. Pensam, contudo, que o podem ultrapassar em argúcia, principalmente porque o seu passado é cheio de altos e baixos camuflados, de curvas sinuosas e arabescos bem sucedidos, de pequenas vilanias. De falcatruas interiores.

  Os idiotas úteis são extremamente perigosos, porque nem têm a grandeza do militante fanático, directo posto que destrambelhado, sincero apesar de eventualmente crápula. Esta classe de gente é em geral um esquisitíssimo manajeiro de salão.

  Mas o mal que fazem às regiões e aos países!

  O que vale é que a sua estatura diminui com o passar do tempo, reduz-se como os sabonetes muito usados. Social e mentalmente despudorados, aos idiotas úteis resta pouco espaço de manobra, dado que mais tarde ou mais cedo deixam de servir aos que os utilizam.

  Talvez por isso, numa antevisão profética o grande autor cristão Dante Allighieri, na “Divina Comédia”, colocava estes pequenos oportunistas no círculo infernal mais desolador - o lugar reservado aos que da grande aventura da vida só sabem extrair baixeza moral, mediocridade pomposa e esperteza saloia.

 

  O PRAZER DE RESPIRAR
 

   Foi nos tempos longínquos da Antiguidade, mais exactamente na Grécia dos filósofos e dos cientistas não-experimentais que um fulano, dotado de saber e perspicácia, revelou esta verdade que depois pareceria evidente: o Homem vivia... porque respirava. Ou seja: o tal pensador, com madurezas de investigador e de poeta, constatara que a banalidade de base era a inspiração e a expiração – numa sequência agradável e regular – do arzinho que nos sustenta...

  Claro que o bom Grego apontava para estes factos em ambiente normal, em circunstâncias de ar puro ou pelo menos passável – não o que por vezes existe em certos lugares ou se exala de certos corpos e nos cria um nó na garganta e no nariz. Ou até de certas almas a que Santo Agostinho, com o devido respeito, crismava como almas execráveis e cujas características epigrafou no seu canónico “Confissões”.

   Respirar é pois uma naturalidade. E respirar bem é um direito qualitativo. Por isso tal tema é figura de proa nas actividades de ligas ambientalistas e alguns gabinetes governamentais. Entre outras que visam melhorar a qualidade de vida.

   Mas há um outro tipo de respiração. Com efeito, se o corpo precisa de respirar também o espírito tem essa exigência. E bem respirar, espiritualmente falando – pois ao Homem foi insuflado de acordo com os cânones, pela Providência, o espírito – é um direito que certifica a existência da Democracia, por seu turno a banalidade de base da liberdade e da civilização contemporâneas.

   Não se estar constrangido por inquinações diversas, por opressões ainda que disfarçadas, por manigâncias espúrias e por manejos equívocos é condição sine qua non dum direito social que assiste aos cidadãos e que permite uma respiração adequada.

   Não se ser poluído por atentados ao carácter, ao pensamento livre e à inerente responsabilidade, à livre iniciativa – seja ela nos campos comercial, industrial, científico ou cultural – dá de igual modo o perfil dessa mesma respiração. Tal como o dá não haver impedimentos de se pertencer a associações e grupos legítimos, a terras e a lugares.

  Quando tal não se verifique (recordemos certos países onde não se podia circular sem passaporte interno, ou recentes tentativas em Portugal de se impedir “discretamente” a formação de novas agremiações políticas), há fortes indícios de que tenta cortar-se a respiração democrática e instaurar ardilosos e talvez menos discretos mecanismos autoritários que tão maus resultados deram e de que ainda estamos a sofrer mundialmente as consequências.

   Por outro lado, quando tenta impedir-se alguém de pertencer a uma comunidade – já difamando-o, já marginalizando-o, já tentando intimidá-lo – algo está mal, profundamente mal e, como recentemente o disse o Presidente da República lusitana, há que modificar prestamente os aparelhos do Estado apropriando-os a essas eventualidades.

   As chamadas forças vivas (os eleitos, em suma) têm de ser o garante de que na sua alçada tudo se passa conforme à lisura e à legalidade específicas ou éticas.

   De outro modo tudo passará a ser um segredo de Polichinelo, dependente de não-eleitos alcandorados a posições ilegítimamente manipulatórias e sem base racional ou legal.

   A luta contra o mau ambiente não se faz apenas no quotidiano da Natureza, mas também no quotidiano da sociedade. A miséria moral (a existência de toxicodependentes, de traficantes, de vigaristas, de ladrões, de manipuladores e de carreiristas) estimula-se quando o ar social é impuro. Ou antes: poluído deliberadamente por gente que se desqualifica mediante a sua acção perturbadora. E que é necessário irradicar.

   Porque a vida, comunitária ou pessoal, só nos dá uma oportunidade – antes que chegue o último suspiro.

 

  UM HOMEM
 

  Pablo Picasso, pintor malaguenho e universal, faleceu há trinta e sete anos.   

  Em todo o mundo, de há dois anos para cá, têm-se multiplicado as cerimónias assinalando esse passamento, quer através de gestos oficiais quer mediante acções levadas a efeito por artistas e organismos representativos.

  Corroborando esses actos, um evento significativo e inigualável para os nossos irmãos espanhóis em geral e para os concidadãos do grande artista em particular: a partir de 2008, Málaga passou a contar com um dos mais belos museus da Europa, instalado no magnífico palácio dos duques de Medina, disposto pela edilidade para o efeito. São cerca de trezentas obras – entre esculturas, desenhos, cerâmicas e pinturas que iluminam o antigo edifício da calle La Robleda, inteiramente restaurado para o efeito.

   Pablo Picasso, que durante os anos da sua juventude e até durante vários anos da maturidade teve de enfrentar a incompreensão e as atitudes injuriosas de certos sectores de medíocres e de oportunistas, nunca desanimou, num assomo de virilidade, coragem e confiança no seu génio que deve relevar-se.   

   Tinha por ele, aliás, o prestígio do talento e o vigor da sensibilidade, além do apreço e da fraternidade dos mais esclarecidos espíritos do século.

   Na arte, como na acção social e cívica, bem verdade é que o que conta é a força da razão, ainda quando - por imaginativa e incomum - esta passe muitas vezes por desrazão.

   O que conta, na verdade, é a certeza - tanto no verdadeiro artista como no verdadeiro homem público, de que está irmanado com o querer mais profundo dos seus irmãos homens, aqueles que vindos pelos desígnios da Providência a esta terra cumprir o seu percurso, neles encontram refrigério para os males, auxílio nos desânimos, compreensão e solidariedade nos problemas quotidianos. Picasso nunca desistiu de dar ao Homem o verdadeiro rosto do seu tempo, de dar ao Mundo o sinal maior da sua permanência completa.

   E tal como este homem que, como afirmou uma das suas mulheres, Jacqueline Roque, "jamais traíu", também outros não trairão no desejo de que a vida quotidiana vá perdendo, pouco a pouco, o seu cariz de fatal infelicidade.

   Porque a vida é una, sagrada e insubstituível. Afinal, como o génio de certos homens marcados pela integridade.

 

  "QUAL A ALTURA DO CÉU?"
 

   As crianças, já se sabe, têm perguntas especiosas. Ora para o que lhe havia de dar, àquele garoto que uma tarde, de mão dada com um avô e uma avó, passeava tranquilamente num dos jardins da cidade onde eu moro. Lugar citadino que pelos tempos fora sempre senti mais ameno e livre e onde, passeando, gosto de imaginar que não é descabido tais perguntas inocentes serem feitas, uma vez que é um dos lugares mais expressos e, por isso, mais humanos desta bela localidade alentejana.

   Bela, sim. Talvez a mais bela destes rincões do Sul, mas onde ainda há assinaláveis défices democráticos. Onde ainda há sofrimentos impuros. Onde ainda - em certos sectores - existe um ambiente de caciquismo, de grupismos ilegítimos que umas vezes se atracam ao atraso que lhes agrada e outras chegam a servir-se ardilosamente da calúnia contra terceiros para continuarem a gozar de mandos e privilégios equívocos que julgam (ou fingem que julgam) naturais e indescartáveis.

   Ambiente esse que infelizmente - conforme tenho ouvido dizer e algumas vezes constatei - parece ser comum a outros locais da nação.

   Mas perguntar não ofende, como diz o ditado. E a avó, provavelmente mais expedita, foi-lhe dizendo: "Ai filho, sei lá... É muito alto, muito alto!". E o garoto, numa reflexão infantil: "Mais alto que a Serra da Penha e que a casa da tia...".

   "Pois, filho, então não vês que o céu fica por cima?", voltou a avó a dizer aos quatro/cinco anos do miúdo. Depreendi que a tal tia talvez morasse em Lisboa ou fosse emigrante e tivesse enviado alguma fotografia. Sim, que lá no estrangeiro os emigrantes lusos de agora moram por vezes em casas tão boas como as dos nacionais de raiz. Já lá vai o tempo dos “bidonvilles” (bairros da lata) povoados de lusitanos de gema que tanto pretexto de propaganda barata deram ao reaccionarismo "poujadista" e aos asseclas do estalinismo. (Esses monturos parece que estão agora reservados a certos emigrantes em terra de Camões. E esperemos que não sejam de novo o habitat dos, cada vez em maior número, portugueses que demandam a estranja).

   O avô, esse, com um ar natural continuava calmamente a andar. Alheio a filosofias infantis, que nisto de quotidiano a razão tem razões desconhecidas, ia assobiando para dentro uma modinha em voga.

   E eu parei e pus-me a falar com os meus botões.

   O céu, meu rapazinho, se te referes ao firmamento dos Antigos, tem de facto grande altura. E a dado ponto termina o azul e entra-se no negrume estelar, não menos misterioso: ele são as estrelas, as galáxias, os planetas e as constelações - o infinitamente grande que não inibe a existência do infinitamente pequeno. Nesse mundo de grandeza relativa, de pequenez aparente, também há lugar para interrogações, uma vez que a nossa substância, a nossa matéria, o nosso envoltório carnal é comum ao da amiba, do ácer ou do urubu – como as pesquisas sobre o ADN nos informam. Logo, semelhante à que configura Sírius, Neptuno ou Aldebaran.

    Há efectivamente lugar para interrogações de alto coturno - e também para certezas e descrenças comezinhas, para esperanças e para desilusões: com a política politiqueira, com a justiça trauliteira, com o quotidiano bichoso que nos atormenta e com as instituições que subjazem à cidadania e que por ela deviam pugnar. Mas que apenas se esboçam na democracia tendencial que é a nossa.

   E que por vezes tão mal se portam, com uma indignidade que não lhes devia ser própria mas vai sendo, infelizmente, cada vez mais natural – gerando na sociedade angústias, perplexidades e revoltas a cada passo mais insuportáveis e insufocáveis.

   Um dia saberás qual a altura do céu. Os livros irão dar-ta em quilómetros, em

pontos cósmicos, em anos-luz. Ela, como a estupidez e a maldade humana (e também a cordialidade e a fraternidade quando calha de se ser decente) é extensa e rodeia o universo.

   E rodeia até o dia-a-dia. Mas a altura do céu pode também conter-se nos teus olhos, pois se o céu é alto tu é que o observas.

   Um dia aprenderás que essa altura está à medida do nosso tamanho. Do tamanho do nosso sonho e que só é preciso conhecermos a medida que nos é intrínseca, que nos quadra ou que efectivamente merecemos.

   Mas isso, como o Outro diria, é já uma outra história...

 

 

UM TESTEMUNHO LUMINOSO

 

    O sol, na iconologia cristã, significa a verdade e a vida. É um símbolo que traduz o calor da existência, caldeada no ultrapassar dos mitos anteriores pela mensagem do Nazareno, de acordo com escritos e obras de arte expressos por diferentes artistas, novelistas e pensadores de agora e de antanho. Crentes e mesmo não-crentes.   

     Há dias, por detrás daquelas resmas de livros que se vão acumulando - aconchegando! - nas estantes onde encontraram segura guarida em consequência de anos de lidação com as letras, fui dar com um tomo que não folheava há considerável lapso de tempo: “O meu testemunho”, da autoria dum dos maiores escritores cristãos que a França, como venerável filha da Igreja, é fértil em propiciar.

     Dado a lume pela “Editorial Perpétuo Socorro” e integrado na colecção “Nova Cidade”, esse texto de Gilbert Cesbron excelentemente traduzido por Zacarias de Oliveira é um verdadeiro refrigério, uma fonte de luminosa sensatez, uma desempoeirada incursão no pensamento cristão de ponta e uma poderosa manifestação da escrita que foi feita para resistir ao tempo que passa.

     Cesbron – romancista, pensador, homem de teatro e representante dos pés à cabeça desse cristianismo aberto e generoso onde também se contavam Jean Guitton, Pierre Hermand, Jacques Maritain, Martin D’Arcy e tantos outros – surpreende-nos a cada passo com o fulgor do seu verbo e do seu pensamento.

     Homem do seu tempo e do seu espaço, conhecia o negrume como nenhum outro, esse negrume que também ocupou os anos em que lhe foi dado viver: nascido em 1913, foi mobilizado contra o nazismo como oficial de artilharia, tendo assistido aos dias mais amargos do hitlerismo em França, que combateu integrado em grupos humanistas. O seu livro “A nossa prisão é um reino”, foi galardoado em 1948 com o Prémio Sainte-Beuve, tal como premiada tinha sido a sua primeira obra, “Os inocentes de Paris”. A sua peça de teatro “É meia noite, dr. Schweitzer” constituíu um êxito internacional sendo depois transformada em filme.

     “Aos espíritos brilhantes e zombadores, cuja ambição é galopar diante dos outros, dando-lhes a respirar apenas a própria poeira, teria vontade de responder como Jacob: ‘Segue à frente! Eu caminharei ao passo dos animais e das crianças’...”, diz-nos ele a certo passo da Introdução ao livro citado lá em cima. Ou, noutro ainda: “Vencida uma certa idade, ou apenas uma certa saturação de acontecimentos, regressa-se, em cada dia da vida, aos mesmos problemas, quer furiosamente quer pacientemente, como o mar na praia.

    Acaba-se por urdir, assim, uma espécie de sabedoria assaz sólida, que apenas aos presunçosos parece resignação e repetição às cabeças leves. Não é sempre a mesma terra que o jardineiro cava e recava porque só ela é fecunda? É porque o comboio passa e repassa sobre os carris que eles não enferrujam”.

     Homem lúcido, “crente pelo coração e pelas veias” como dele disse o Abade Janin, conhecia perfeitamente o quotidiano e, neste, os “sepulcros caiados” que com terrível frequência simulam estar junto do Galileu para melhor cuspirem  sobre a face dos seus irmãos de Humanidade. E dizia, atingindo-os certeiramente: “Existe o bem, o belo, a verdade – o que é tudo a mesma coisa. O mal, o feio, o falso é que são adventícios, mesmo quando dominam por uns tempos”. Ou, numa tirada digna do Eclesiastes: ”A paixão da fraternidade chama-se amor. E, sem ele, que é a liberdade? Fazer impunemente o mal, tudo estiolar em torno de si, como fazem as árvores cegas? Os homens possuem outros meios para crescer”.

     O escuro, quando passa a negrume, deixa de ser sombra – a sombra doce e amiga a que o Cristo e os seus discípulos se acolheram num dia de calor ardente junto a um figueiral de Samaria. A sombra matiza a luz e ameniza as temperaturas excessivas conferindo-lhes razoabilidade, ao passo que o negrume apenas contém em si a raiz dum tempo que estiola. É por isso que a realidade sempre se irmana com a honradez e se recusa, como Cesbron o deixa patente nos seus escritos, a pactuar com a hipocrisia, a habilidosa maldade, o artifício soez, a falta de lealdade. Como ele disse no terceiro capítulo do seu testemunho, “Nada é mais importante para um homem que realizar a tempo a sua unidade. A tão maltratada palavra honra, vejo para ela o mais conveniente uso: honra de um homem é a sua unidade, a sua transparência”. Ou, numa frase decisiva: “Não é de maneira nenhuma porque a mentira acabe por ser descoberta, mas antes pelo contrário porque ela existe, na maioria dos casos sem risco, que é preciso viver na veracidade e na transparência”.

     Ou seja, com a autenticidade que foge ao negrume, esse “espinho no  coração do mundo” que Gilbert Cesbron, com o seu talento e a sua cristianidade limpa e democrática, generosa e dignamente combateu.

 

  AS ARMADILHAS ORATÓRIAS
 

     A oratória, como os leitores decerto sabem, é a arte de bem falar. Isto, em geral, escolarmente. Porque, no dia-a-dia, a oratória ultimamente vai de forma esquisita, no mínimo – e não me refiro, garanto, a ministros ou ministeriáveis.

    Senão vejamos: num país africano, terra onde usualmente a oratória é uma questão de cacete nos tempos infelizmente usuais do governante em exercício, um punhado de militares resolveu amotinar-se contra o actual regime. Depois de uma certa confusão, um orador da banda dos operacionais veio informar que afinal tinha havido erro, fôra confusão: só se tinham amotinado porque estavam convencidos que o golpe era dirigido pelo ministro da Defesa.

    Tal é, evidentemente, um deslize oratório, que sublinha um equívoco de outra índole. Assim como quem diz: foi um engano, sem ministro nada feito. A revolta era com outro dirigente...

    Mas há mais. E mais engraçado.

    Em Portugal, um futebolista com dinamismo tece em entrevista mediática críticas vivazes e parece que fundamentadas a um dirigente. Tem um deslize oratório - e não lhe chama doutor, coisa que em Portugal é imperdoável. Este deslize oratório, segundo foi já constado, pode valer-lhe um inquérito disciplinar, porquanto o tal dirigente entendeu que o seu procedimento vocabular revelava espírito contestatário e vontade de o amesquinhar. Temos de concordar que não se chamar doutor a um doutor é lusitanamente um acto sinistro.

     Por seu turno, um outro cavalheiro futebolístico teve também um deslize oratório muitíssimo interessante e que faz jus à imaginação dos que neste país ocupam lugares no topo: ao comentar a atitude de alguns cidadãos que achavam esquisito estarem a ser “convocados” televisivamente pelo seleccionador nacional, disse esse senhor que na verdade até não bastava saber-se driblar e pontapear o esférico, era também preciso possuir-se um apropriado patriotismo. Homessa! E quem irá julgar, numa disciplina tão difícil, o patriotismo deste ou daquele cidadão, deste ou daquele centro-campista, deste ou daquele guarda-redes?

    Haverá uma comissão para o efeito? Questionário a preencher? Ou será apenas questão de instinto, como dizia o Rantanplan?

    Tenho para mim que estes deslizes oratórios, verdadeiras armadilhas da semântica aplicada, são provavelmente uma espécie de epidemia, pois que também o espírito, como a carne, por vezes anda de mal com a saúde quotidiana.

     Os leitores que me desculpem este tom leve, irónico, quase balanceado. É que, às vezes, perante as caquexias do mundo - e os exemplos poderiam  multiplicar-se - o melhor ainda é um sorriso a tempo.

      Em todo o caso é melhor que chorar, não acham?

 

 

 NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com

 

 

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