REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 04

 

Logo a uma primeira leitura descobre-se que a poesia de Jorge Melícias é uma poesia rigorosa, de uma linguagem cuidada, sim, um trabalho de linguagem, experiência da linguagem, a linguagem como corpo autónomo, linguagem criadora da própria realidade.

E se nesta poesia não se faz uso de ritmos tradicionais, podemos no entanto dizer que na sua estrutura física ela nos lembra muitas vezes uma escultura grega, ou até haverá nela um certo rasgo horaciano, pois que a sua exactidão rítmica, a clareza da dicção, o fluir, enfim, o rigor da construção são exemplares:

As crianças amanhecem a prumo,
as cabeças brilhando de uma loucura húmida.

Pelos seus pulsos perpassa a fluidez do mundo
e há um braço de silêncio.

Muitas morrerão na longa travessia,
mas nem uma pedra ascenderá à garganta.

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LUÍS COSTA

 

JORGE MELÍCIAS

OU A INTENSIDADE DA

DISRUPÇÃO

                                                                    Luís Costa
 

Mas se esta poesia nos remete para os princípios formais claros, “ clássicos “, com todo o rigor que lhe é inerente, já no que diz respeito à linguagem aqui usada, embora sendo uma linguagem cuidada, muito cuidada, encontra-se em perfeita disjunção com a forma. Pois que há de facto entre o exterior, a forma comedida e límpida (positiva) e o interior, a linguagem violenta (Há a boca pisada de pedras), brutal, explosiva (Acredito no fogo e nas mãos que o servem brutais e definitivas como as pedras) de imagens fortes, densas (A mulher fechou-se no quarto/ com a noite entre as mãos), obsessivas, bruscas, muitas vezes estranhas, vibrantes (As crianças amanhecem a prumo) bem como o uso de vocábulos raros (ignívaga, insanes, gárrulos, esquírolas, múrias, vurmo, coaxial etc.) diremos até barrocos, de aspectos negativos ( “ Muitas morrerão na longa travessia/ mas nem uma pedra ascenderá à garganta.”; É poderosa a casa/ curvada sobre a minha morte. ) uma Disrupção. E nisto podemos dizer que Melícias se encontra, pesando toda a sua originalidade, próximo do expressionismo alemão. E a violência das suas imagens fazem-nos muitas das vezes lembrar a estética da brutalidade clínica de um Gottfried Benn, sobretudo, em “ Morgue. “

Alguns exemplos:

Risco na carne o caminho do relâmpago.

[... ]

Abro o corpo ao último punhal
que o iluminou.

ou:

Adestramos na carne
os estrepes do horror.

e ainda:

E a brutal inflorescência
dos ferros no dorso

e também:

Há uma luz doente sobre a mesa,
um pulmão de pedra no centro.
E eu mordo a própria boca

[... ]

ou:

E onde a febre tange
a esquadria
radicarei a chacina.

Outros exemplos poderíamos aqui apontar. Mas é o próprio Melícias que testemunha a influência do expressionismo alemão na sua poesia, quando, numa entrevista concedida ao poeta Valter Hugo Mãe, diz o seguinte:

O expressionismo alemão, por exemplo, foi um movimento que me marcou profundamente. Ainda hoje marca. Não apenas a nível literário (Gottfried Benn é dos escritores mais poderosos que já li até hoje) mas também a nível cinematográfico. Vi pela primeira O gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, há muitos anos atrás, quando frequentei História e Estética do Cinema.

Podemos igualmente afirmar que a sombra de Herberto Helder se encontra bastante presente na obra de Jorge Melícias O que é natural, pois grande parte dos poetas contemporâneos portugueses vêem em Herberto Helder uma espécie de modelo. E se Melícias não vê em Herberto um modelo, pelo menos leu-o profundamente. O seguintes versos, do primeiro livro, onde o corpus poético é mais “ vasto “ do que nos seguintes, demonstram-nos bem isso:

Em redor da cama as mulheres
tomaram já o seu lugar

e o silêncio da casa está todo nos ombros.

Eu estou de fora, à porta do quarto,
E penso que as galerias são longas
E correm na direcção do sangue.

Em redor da cama as mulheres
bordam a morte devagar

E os homens fumam fechados sobre si
como navalhas



Todavia Jorge Melícias , como poeta inteligente que é, ao contrário de muitos outros, embora usando um género de imagética herbertiana [ que um outro poeta ao falar de Herberto chamava de obscura – claridade ] conseguiu fazer dessa influência algo de novo e original. E isto consegue-o ele , a nosso ver, para além de se apoiar no expressionismo, sobretudo, pela redução do discurso, ou seja, pelo uso de uma linguagem concisa e sintética, que é precisamente o oposto do largo e vasto discurso de Herberto Helder, encontrando assim a sua própria voz e libertando-se , até certo ponto, da sombra do Herberto.

Mais atrás dizíamos existir na poesia de Jorge Melícias uma disrupção. Disrupção? Mas afinal o que vem a ser isso? Onde fomos buscar este vocábulo?

Disrupção é precisamente o título do último livro de Jorge Melícias, editado em 2009, há bem pouco tempo, pela editora Cosmorama, uma antologia que reúne a sua obra poética de dez anos e onde se encontra incluído o livro inédito: agma ( 2008 ).

No início desta antologia, deparamos com uma nota extraída do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Sociedade de Língua Portuguesa, em que nos é explicitado o significado do vocábulo que dá o título à obra. Vejamos:

Disrupção: (s.f) Salto de uma faísca entre dois corpos carregados de electricidade. Diz-se da descarga eléctrica súbita que provoca o desaparecimento da maior parte da energia acumulada. Acto de romper.

Ora, a nosso ver, este título, este vocábulo, anuncia-nos precisamente o que devemos esperar desta poesia. Isto é, este título será em si uma poética. Pois toda a poesia de Jorge Melícias, desde o primeiro livro até ao último, é o resultado dessa disrupção: por um lado a forma (como já acima fizemos notar) sempre rigorosa e a linguagem cuidada, substantiva, lacónica, por outro as imagens fortes, violentas, estranhas, herméticas, quase surreais, muitas vezes cruéis. É deste atritoviolento e cruel (que pode ser extensivo, ou seja, que poderá ser visto igualmente a partir do aspecto dual (dialéctico): mundo exterior (forma) - mundo interior (eu poético), homem – cosmos, luz – trevas, feminino – masculino etc. e que, como podemos ler num dos poemas, será um “ Trabalho de crueldade “.) que o poema desponta, se torna corpo vivo. Quer dizer a criação ou escrita do poema é um acto violento, nascido da disjunção, ou seja, atrito, de dois corpos ou pólos contrários, um exterior outro interior, um negativo outro positivo: uma rotura, que se dá entre ambos, um “acto de romper “, romper que aqui também pode ser compreendido como quebrar ou estilhaçar. Já que do embate violento de dois corpos podem resultar estilhaços. Portanto o poema, aquilo que o poeta procura atingir, será o resultado desses estilhaços, de uma realidade estilhaçada à procura da unidade. E isto é também o que podemos compreender das seguintes palavras, que passamos a transcrever, e que nos foram dirigidas por escrito pelo próprio poeta:

“ [... ] acredito mais numa totalidade, sim, mas fragmentada, estilhaçada, nunca completa. “

É igualmente desta rotura, deste acto de romper, estilhaçar, isto é, da potência destrutivo-construtiva, da sua violência, que a beleza nasce:

Para mim a beleza está, inextrincavelmente, ligada à violência. Uma violência irrompente, fundadora, tão latente quanto recidiva.

Contudo o estilhaçamento de que temos vindo a falar e que resulta do atrito violento entre corpos ou objectos, entre o exterior e o interior,não se perde, graças à exactidão, ao claro rigor da forma e da linguagem, a este trabalho minucioso, de ourives, entre forma e linguagem, a esta poderosa construção ( que tem como alicerces a imolação do eu, a identidade : É poderosa a casa / curvada sobre a minha morte, pois toda a verdadeira criação poética resulta desta imolação ) em desregramentos extravasantes, bem pelo contrário, ele mantém-se coeso e uno porquanto:

Atravessa o sangue,
transborda para dentro.


Quer dizer, graças a esta técnica, o equilíbrio entre o sair: “ atravessa o sangue” (fluir, movimento, transformação) e o entrar, “ transborda para dentro” (permanecer, unidade e imobilidade) estabiliza-se, formando assim um círculo de estilhaços, ou fragmentos, um movimento fechado em si, como uma espécie de roda de bicicleta, onde os raios serão os tais estilhaços que, embora sendo estilhaços, são igualmente parte integrante da unidade, pois que permitem que a roda exista como um todo, ou seja, unidade: ligação entre o eixo e o aro periférico, relação entre movimento e imobilidade ( graças ao carácter estático ( consistência ) desta compósita , a roda pode ser movimentada.) E se repararmos bem descobriremos igualmente que o aro periférico e o eixo são, tal como os raios, fragmentos da totalidade, isto é, sem estas peças (fragmentos) a roda não poderia existir.

E eis um poema que formalmente exemplifica o que acabamos de dizer:

Caminharei entre os homens
com um punção virado ao medo.

As meninges
recrudescendo nas navalhas
como um apostema.

Todo o metal sitiado
pela injunção das ínguas.

Este poema é constituído por três estrofes: duas de dois versos e uma de três. Se analisarmos melhor a estrutura desta composição, reparamos que cada uma das estrofes pode ser considerada um fragmento ou estilhaço. Pois que não há propriamente uma conexão entre elas. A verdade é que cada uma delas poderia existir por si mesma, isto é, independentemente umas das outras.

A técnica aqui usada (não só aqui mas em muitos outros poemas) foi a de um ajuntamento (neste caso tríplice) de três imagens: o homem que caminha / as meninges nas navalhas/ o metal sitiado. E embora, se, como já dissemos, à luz da análise descobrimos de facto que este poema é um poema feito a partir de estilhaços, portanto um conjunto de fragmentos, um poema estilhaçado, e que cada imagem poderia existir por si mesma, a verdade é que são precisamente estes três elementos (o conjunto) que dão a intensidade, força e beleza ao poema, isto é, coesao, densidade e intensidade tornando-o assim num corpo uno. Se o poeta tivesse usado cada uma destas estrofes (o que poderia ter feito), por si mesmas, como pequenos poemas, estes jamais conseguiriam atingir a maravilhosa densidade ou corporalidade que aqui se atinge e o leitor ficaria sempre com a impressão de que faltava alguma coisa. Por este modo o poema, embora tendo uma base fragmentária, é sentido como uma unidade.

( Nesta poesia o poema não representa algo, mas antes, ele é: este algo, um corpo autónomo, resultado da linguagem viva, em movimento, que forja a sua própria realidade.)

Depois de tudo o que dissemos, podemos concluir que é precisamente do aspecto violento, de uma espécie de dialéctica ou estética do confronto, do seu acto destrutivo-construtivo, do movimento estilhaçado, que irrompe a grande força, intensidade, fascinação, peculiaridade e magia desta poética; poética de uma beleza lancinante, poética de uma intensidade figurativa, de uma circunferência feita de estilhaços.

É claro que outros aspectos poderiam aqui ser realçados, porém este é, repetimos, a nosso ver, o aspecto principal, mais gritante, ou pelo menos o que de imediato, como já no início demos a entender, a uma primeira leitura (que a nosso ver é o modo mais sólido de se atingir a essência da poesia) nos salta aos olhos e nos faz vibrar o espírito e os sentidos.

Para terminarmos , reparamos ainda que no aspecto formal, ou seja, o corpo do poema, depois do primeiro livro (iniciação ao remorso, 1998) se tem vindo a tornar cada vez reduzido: a construção formal tornou-se mais comprimida, lacónica, o poema menos povoado, minimalista. Muitos dos poemas possuem mesmo uma forma que poderemos chamar lapidar, chegando a atingir, sobretudo no livro Incŭbus, uma tonalidade aforística. Um exemplo:

Aquele que mata decifra.

Está sobre o crime
como quem maneja deus.


Já no aspecto linguístico, a intensidade do verbo, perturbante, sempre violento e extremo é uma constante de toda a obra, no entanto a escolha de imagens cada vez mais herméticas, bem como de palavras raras, que em muitos casos nos obrigam a consultar o dicionário e que lembram uma certa tendência maneirista, tem vindo a acentuar-se , sobretudo, nos últimos livros . Um exemplo:

As refinarias do medo trabalham o alvidrio.
Até que todo o movimento seja sem aporias.

O sangue por baixo galgando
andaimes,

fazendo da sufusão a sua única eclusa.


Este recurso a vocábulos tão raros e extravagantes (neste caso alvidrio, aporias, sufusão, eclusa) se provocam, por vezes , um certo nervosismo no leitor já que o levam a uma interrupção da leitura (o leitor vê-se obrigado, passo a passo , a consultar o dicionário) são, no entanto, constituintes imprescindíveis desta linguagem poética, ou seja, sem eles esta poesia seria muito mais pobre, pois que perderia grande parte da sua força e originalidade.

 

Jorge Melícias nasceu em 1970.

Autor dos seguintes livros de poesia: aqueles que incendeiam os telhados – 1996/1998 – (inédito); iniciação ao remorso (2004, 2ª ed., Cosmorama); a luz nos pulmões (2000, Quasi); o dom circunscrito (2003, Quasi); incŭbus (2004, Quasi); a longa blasfémia (2006, Objecto Cardíaco); disrupção – 1998/2008 – (poesia reunida), (2008, Cosmorama) e agma (a sair em 2010).

Foi-lhe atribuída, ao longo do ano de 2002, uma bolsa pelo Ministério da Cultura e Instituto Português do Livro e das Bibliotecas da qual resultou o livro o dom circunscrito.

 

Poemas seus encontram-se traduzidos para línguas como o espanhol, o inglês ou o servo-croata e publicados em várias revistas, nacionais e estrangeiras, como a Inimigo Rumor, A Confraria do Vento ou a Zunái (no Brasil), a 26, studies of poetry and poetics, ou a 2nd Mind , de São Francisco. Uma recolha de três dos seus livros, sob o título Disruption, saiu nos E.U.A, pela editora Durationpress, de Los Angeles.

Traduziu, entre outros, Saint-John Perse (Elogios, 2001, Quasi), Leopoldo María Panero (Poemas do Manicómio de Mondrágon, 2001, Alma Azul), Antonio Gamoneda (Ardem as Perdas, 2004, Quasi), Lautréamont (Cartas de Isidore Ducasse, 2006, Objecto Cardíaco), Baudelaire (Conselhos aos Jovens Literatos, 2006, Objecto Cardíaco), Pedro Marqués de Armas (Cabeças, 2007, Cosmorama), Miriam Reyes (Espelho Negro, 2008, Cosmorama) e uma antologia da Poesia Cubana Contemporânea (2009, Antígona).

É um dos responsáveis pela editora Cosmorama e dá aulas de Poética e Escrita Criativa.

 

 

Luís Costa (17 de Abril de 1964, Carregal do Sal. Portugal).
Tem vindo a editar trabalhos em revistas e sites digitais como: revista Conexão Maringá, revista Zunái, jornal Triplov, site Triplog e revista Agulha.
Blogue pessoal: http://oarcoealira.blogspot.com/
Contacto: l.Costa@web.de

 

 

© Maria Estela Guedes
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