REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 02

 

1. O experimentalismo crítico modernista

A produção de poesia brasileira do século XX tem a marca da estética modernista; influenciada pelos movimentos das vanguardas europeias do século XIX e início do século XX. Buscava-se, também, a afirmação da cultura brasileira, questão que permeou a literatura aqui produzida no século XIX. Duas palavras acima requerem uma breve explanação: modernismo e vanguarda. Após quase dois séculos, ainda é difícil definir o modernismo (GAY, 2009), preferindo este autor expressá-lo por exemplos. De início alerta que o modernismo abrangeu um vasto e diversificado terreno cultural, impregnando todos os gêneros artísticos. Também se manifestou nas ciências, na economia e na política, como não poderia deixar de ser. Não pretendendo conceituar o termo, Gay utiliza o seguinte argumento: “Há alguns anos, o juiz Stewart, da Suprema Corte dos Estados Unidos, declarou que não sabia definir a pornografia, mas que podia reconhecê-la quando a via.” (GAY, 2009, p. 17). Afirma, desse modo, que as obras modernistas dignas de nota “despertam exatamente a mesma impressão”. Citando as obras de Rimbaud, Kafka, Beckett ou Picasso, afirma que o consenso entre “os modernistas era acreditarem que muito superior ao conhecido é o desconhecido, melhor que o comum é o raro e que o experimental é mais atraente que o rotineiro.” (GAY, op. cit., p. 18).

Sendo a arte a criação humana em sua função estética, não se tratando de mera reprodução, não se pode negar a sua natureza experimental.

DIRECÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
   
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Aspectos da poesia brasileira contemporânea:

do modernismo à metamodernidade

 

Washington Luis Lincoln de Assis

 

 

                                                          

 
 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   

No entanto, o conceito é mais amplo. A ideia de moderno não se limita a determinado período de tempo, mas à ideia de ruptura com o passado. A ruptura pressupõe a crítica do passado a ser superado, em todos os aspectos da vida humana dos quais a arte é apenas uma face do poliedro. Esta ruptura não ocorre bruscamente, mas com a busca de novos modelos, ainda não definidos, o que implica no caráter de transitoriedade. 

Assim é que as ideias de modernismo não se distanciam do conceito de vanguarda, tendo ele próprio tais características, de modo que ambas as expressões guardam certa sinonímia, conquanto viessem a ser diferenciadas no percurso para o “desconhecido”.

É a partir de meados do Século XIX que estes termos passam a ter uso frequente, notadamente por Baudelaire, pois ainda não estavam nomeados os movimentos pós-românticos.

O modernismo não foi criação de alguns visionários, mas sim um fenômeno cultural amplo que representa o ápice da civilização ocidental. Somente com a revolução eletrônica que se desenha na atualidade é que o modernismo – revolução industrial - começa a dar sinais de esgotamento. No século XVIII o processo civilizatório ocidental evoluía rapidamente e era urgente a superação dos modelos culturais medievais e religiosos. Os poetas românticos foram os primeiros a expressarem os anseios de liberdade e individualidade que varriam a Europa. Tais anseios acentuaram-se nas décadas seguintes e as transformações culturais em processo foram percebidas por Baudelaire (2006), “um poeta em trânsito, do romantismo para um lugar desconhecido” (1). Nas obras de diversos artistas, inclusive pintores, na rápida urbanização, mundialização e espetacularização da vida, Baudelaire vislumbrou o florescimento da Idade Moderna, dela participando como teórico e poeta, sendo um dos primeiros a definir o seu significado, embora a expressão “modernidade”, já tivesse sido utilizada por outros escritores. Sendo ele próprio um “homem dotado da capacidade de ver” e daqueles raros “que possuem o poder de exprimir” (BAUDELAIRE, op.cit., p. 289), não somente viveu as mudanças que assolavam o ocidente, mas as interpretou com extrema agudeza, de modo que suas análises são atuais até os nossos dias. Baudelaire não elaborou uma teoria da era moderna, nem tampouco foi absolutamente coerente no que escreveu sobre ela, apenas a discerniu, extraindo seus principais elementos constituidores, seus possíveis efeitos e sua relação necessária e dialética com a tradição:

Esta é na verdade uma bela ocasião para estabelecer uma teoria racional e histórica do belo, em oposição à teoria do belo único e absoluto; para mostrar que o belo é sempre, inevitavelmente, de dupla composição, se bem que a impressão que produz seja uma; porque a dificuldade de discernir os elementos variáveis do belo na unidade da impressão em nada infirma a necessidade da variedade na sua composição. O belo é feito de um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é muitíssimo difícil de determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, alternadamente ou em conjunto, a época, a moda, a moral, a paixão. [...] Desafio quem quer que seja a descobrir uma amostra de qualquer beleza que não contenha estes dois elementos. [...] A dualidade da arte é uma consequência fatal da dualidade do homem. Considere-se, se assim se quiser, que a parte eternamente subsistente é a alma da arte, e que o elemento variável é o seu corpo. (BAUDELAIRE, op. cit., p. 281).

Para Baudelaire, cada época tem o seu “porte”, o seu “olhar” e a sua “atitude”, sendo a modernidade caracterizada pelo “transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável”, mas “para que qualquer modernidade seja digna de se tornar antiguidade é preciso que dela tenha extraído a beleza misteriosa que a vida humana nela involuntariamente depõe.” (BAUDELAIRE, 2006, p. 290).

Posteriormente Baudelaire radicaliza em defesa da individualidade, contra o coletivo e impessoal das suas primeiras impressões “modernas” que viam o artista como instrumento das mudanças sociais em curso. Mas as supostas incoerências do bardo são, na verdade, amadurecimento e aprofundamento das primeiras impressões dos novos horizontes que se abriam.

Assim é que, neste terreno fértil, a vanguarda adquire, no limiar do século XX, a característica de ruptura com a tradição, da “inovação estética” e não somente “estilística”, do rompimento com as “escrituras convencionais”:

A linguagem, no projeto das vanguardas, é um elemento que se põe entre a arte e a vida, entre a expressão da vida e ela própria, que deve ser cancelado – daí que a pesquisa constante e o experimentalismo das vanguardas refletem uma vontade de anulação da própria linguagem, daquilo que ela representa enquanto fator mediador e, portanto atravessador da relação artista-realidade, ou obra-vida. O experimentalismo e a inovação frenética da linguagem querem levá-la ao limite de suas possibilidades e então à anulação de sua própria existência e função.  (MENEZES NETO, 2001, p. 102).

 

2 Vanguarda: a utopia possível

Philadelpho Menezes Neto (1960/2000), na sua brilhante e derradeira obra A crise do Passado, faz um histórico crítico das vanguardas, desde o primeiro uso deste termo, por Gabriel Désirie Lauerdant, em 1845, até a sua incorporação ao “ideário da modernidade” por Baudelaire, entre 1862 e 1864 (MENEZES NETO, 2001, p. 94). Nesta obra, após expor as semelhanças entre os termos, identifica elementos característicos da vanguarda e que o distinguem do modernismo, quais sejam: “a criação de uma linguagem de expressão do presente da modernidade que tem por fim uma interferência direta da obra na realidade associada a um futuro utópico que se afasta e cancela radicalmente o passado.” (MENEZES NETO, 2001, p. 100).

Menezes Neto identifica estes elementos no conceito de escritores de vanguarda de Charles Russell:

Aqueles escritores e artistas que afirmam não só que seja necessário achar uma linguagem estética para exprimir este sentido de novidade, mas também de achar-se de algum modo a vanguarda de uma situação futura da arte e da sociedade, que as suas obras inovadoras ajudarão a fazer nascer. (RUSSEL, apud MENEZES NETO, 2001, p.100).

Não sendo possível adentrar no tema, é imperioso anotar algumas características das vanguardas, além destas mencionadas no conceito de Russell. Uma delas é o experimentalismo, característica do processo criativo. É certo, também, que os ventos revolucionários produziram diversas formas de experimentalismo, numa sequência que se prolongou até a segunda metade do século XX, inclusive com manifestações na América do Sul.

Assim é que as “vanguardas” – sempre sob a égide do experimentalismo – ora se pugnam pelo “primitivismo, jogo e humor”, típicos do irracionalismo (sensorialismo), ora pelo racionalismo (cubo-futurismo russo, futurismo italiano), o racionalismo construtivista, sendo que estes últimos encontram seu paralelo nas artes plásticas, na primeira metade do século XX, na arte conceitual.

 

3. Vanguardas brasileiras: a ruptura que afirma a tradição

Não obstante a filiação declarada ou não aos movimentos europeus mencionados, no Brasil predomina até os dias atuais a produção de poesia de índole modernista, mesmo aquela autodenominada de “vanguarda”. Conquanto a bandeira da vanguarda tenha sido empunhada ostensivamente pela poesia concreta, a partir do ano de 1955, é certo que o conjunto de obras deste grupo está adequado à definição de modernidade ou “pós-modernidade”, como quer Philadelpho Menezes Neto.

O evento inaugural da corrente modernista no país, com implicações sociais e políticas, foi a Semana de Arte Moderna de 1922, liderada por Oswald e Mário de Andrade. O poeta e ensaísta Horácio Costa ressalta a expressividade da poesia brasileira pré-modernista, de Cruz e Souza a Augusto dos Anjos, vendo nesses exemplos a preparação do caminho para a renovação que viria com o modernismo brasileiro. (COSTA, 1998, p. 24). As forças econômicas e políticas do sul do país, notadamente do Estado de São Paulo, tiveram papel relevante na organização do movimento modernista que se expandiu para todos os setores da sociedade civil. Costa destaca os novos procedimentos poéticos, dentre eles:

La preferência por metáforas de velocidad; la escisión absoluta de las formas tradicionales y el consecuente imperio del versolibrismo; el rompimento secuencial y el montage cubista; la inclinación neologística; la libre asociación, factores estos últimos ya pronunciados sea por el “errante” Sousândrade, sea por el Cruz e Souza que escribe baudelairianos poemas em prosa. (COSTA, 1998, p. 25).

Para Costa (1998, p. 25), este movimento representa “uma ruptura que afirma la tradición” porque, com outros procedimentos estéticos, prossegue afirmando os valores progressistas das revoluções liberais.

Ressalta ainda, o papel relevante dos poetas Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira dentre outros, lembrando interdisciplinaridade do movimento, que reuniu a literatura, as artes plásticas, a música e o ensaio, “al punto de sernos difícil imaginar que outro cambio tan eficaz venga algún dia a repetirse.” (COSTA, op. cit., p. 26).

O movimento modernista de 1922 a 1930, afirma Costa (1998, p. 35), foi um “querer ser moderno”, uma tomada de posição em relação às artes e à cultura em geral, uma introdução à modernidade que marcaria todo o século XX.

Seguiu-se a este período a autodenominada Geração de 45, cuja característica foi a “es la continuidad crítica en relación con el movimiento de 1922” (COSTA, op. cit., p. 35), e que foi  denominada de “modernos“, diferenciando-a da modernista, conquanto não fossem estanques as suas propostas.

Esta geração trouxe o poeta João Cabral de Melo Neto, considerado um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, para o qual o rigor formal era o princípio poético determinante, o que o diferenciava dos demais, continuadores acomodados da Semana de 1922.

Costa (1998, p.36), aduz que, com Cabral, surge um novo tipo de verso na poesia brasileira, “el mineral, extraña transformación del verso elétrico dos modernistas y del verso animal de los modernos” com o qual surge uma nova objetividade:

“El verso, que es posible no hacer”, em un gesto, Cabral desmistifica lo específico de la poesia como lenguage electo; se relativiza en el famozo “compromisso” del poeta con su lengua; introduce una noción fundamental para la poesía contemporánea – la del “silencio poético” e el “silencio significante” -,  y reclama su liberdad de autor, en una palabra. Sutilmente, también, afirma la prioridad de la razón y de la decisión sobre la inspiración – estamos, realmente, en los antípodas del romanticismo – al mismo tiempo que anuncia su propria poética: encuentro de poesía y crítica e el mismo cuerpo de la escritura.  (COSTA, 1998, p. 37). 

Não resta dúvida de que há características que ultrapassam os conceitos modernistas na poesia de João Cabral que bem mereceria a alcunha de vanguardista, tão sonhada por tantos outros poetas brasileiros.

João Cabral vai além dos limites do modernismo, resumidos por Mário de Andrade, em uma conferência-balanço, em 1942, quando concluiu que as contribuições do modernismo foram “el derecho permanente de la investigación estética; a la actualización de la inteligência artística brasileira y a la estabilización de la conciencia creadora nacional.” (COSTA, op. cit., p. 38).

No que respeita à Poesia Concreta, modo como quer ser chamado o movimento, Costa lembra que surgiu quinze anos após a “conferência-balanço” de Mário de Andrade, com aqueles ideais já consolidados, quando um grupo de jovens poetas paulistas, liderados no início por Waldemar Cordeiro, insurge-se contra o verso como modo de expressão de poesia, bem como sua linearidade e sequencialidade, apontando-os como objetivos a superar.

Na fase ortodoxa deste movimento, seus autores pregam a negação do lirismo e do verso, de modo a afastar da obra qualquer possibilidade de representação: “o poema-produto: objeto útil”. (CAMPOS, A.; PIGNATARI; CAMPOS, H., 1987).

Costa (1998) ressalta, por outro lado, o inestimável trabalho de tradução do grupo, do mesmo modo que a produção crítica e teórica. É absolutamente induvidosa a enorme contribuição do grupo para a literatura, as artes e a cultura brasileira como um todo. Um dos aspectos a ressaltar, por oportuno, é a acolhida mundial das obras dos concretos, de modo que se convencionou por admitir o movimento como o primeiro na literatura brasileira a expandir-se para o exterior, o que é fato.

Outro ponto a se ressaltar é o enorme talento criativo dos membros mais destacados do movimento, cada qual com seu estilo pessoal, evidentemente. Décio Pignatari, independentemente de qualquer trabalho teórico que tenha realizado, de docência ou da própria organização do movimento concreto, tem seu lugar dentre os mais importantes poetas brasileiros. Sua obra é homogênea e consistente, sendo uma das mais criativas da poesia brasileira da segunda metade do século XX.

Como exemplos vale lembrar os poemas “Um movimento”, “Caviar”, “Terra”, “Coca-Cola”, dentre inúmeros outros.

Haroldo de Campos, já falecido, foi o mais produtivo dentre os mentores do movimento, tendo produzido uma obra poética tão vasta e complexa quanto a sua produção ensaística, e que o colocou no panteão dos intelectuais de reconhecimento mundial, ombreando-se a Octavio Paz.

Augusto de Campos produziu uma obra menos extensa e mais coerente com a teoria que elaborou com os demais, não abrindo mão dos elementos visuais em estreita interação com os verbais, mantendo-se, assim, fiel aos seus ideais iniciais.

É induvidoso, portanto, que a Poesia Concreta efetivamente trouxe inestimável contribuição à poesia e à literatura brasileiras, filiando-se, todavia, na sua essência, ao movimento modernista contra o qual se insurgiu, haja vista a simpatia pelas obras de Oswald e Cabral.

Porém, antes de qualquer coisa é preciso lembrar que no Brasil já ocorria nas artes plásticas, desde antes dos anos 1950, a produção de arte “abstracionista geométrica”, liderada por Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Amilcar de Castro, Luiz Saciloto, dentre outros. Desta destacada corrente das artes plásticas foi emprestado o nome do principal movimento “vanguardista” brasileiro.

Por outro lado, não tardaram as reações ao movimento autointitulado de vanguarda, do mesmo modo que não tardaram as defesas apaixonadas das suas propostas. Alguns poetas do Rio de Janeiro, a exemplo de Ferreira Gullar, romperam com o movimento logo no início (1959) e fundaram o que chamaram de “Neoconcretismo”, cuja proposta era contrária ao que entendiam por normatização e dogmatismo da poesia, pretendidas pela tríade paulista. Os neoconcretos defendiam a autonomia e o trabalho de investigação do artista. Estas ocorrências estão registradas na Pinacoteca do Estado de São Paulo, que dedica amplo espaço à arte concreta brasileira.

Falou-se em dogmatismo e normatização, mas outros termos são utilizados pelos críticos da poesia concreta, tais como “pedagogia” ou “didatismo”, termos estes que estão na contramão do que se entende por vanguarda, conforme acima exposto. E não poderia ser de outro modo. A Teoria da Poesia Concreta é um memorial descritivo de poesia que exclui deste gênero quaisquer expressões que não atendam aos seus requisitos.

 Segundo seus próprios autores o “movimento da poesia concreta alterou profundamente o contexto da poesia brasileira. Pôs ideias e autores em circulação. Procedeu a revisões do nosso passado literário. Colocou problemas e propôs opções.” (CAMPOS, A; PIGNATARI; CAMPOS, H., 1987, p. 7).

Porém, sem desmerecer a importância do movimento e dos seus militantes, verdadeiros guerrilhados da poesia, o movimento e sua produção estão a merecer o devido exame crítico, ainda tímido quando não servil. Um dos aspectos a lembrar, en passant é que este movimento acabou por se circunscrever aos fundadores e uns poucos outros militantes, não tendo sequência nem mesmo nas próprias obras. Alguns simpatizantes incursionaram pela prática com excepcional talento e competência, a exemplo de José Paulo Paes e Dora Ferreira da Silva, os quais, todavia, jamais foram admitidos no seleto clube.

 

4. Poesia concreta: vanguarda ou pós-modernismo? 

Não é diferente a opinião do renomado crítico Fábio Lucas, o qual reconhece a importância do movimento que:

Afluente do modernismo se declarou a força mais radicalmente transformadora da poesia nacional. Percebendo com agudeza o estado de saturação retórica atingido pela manifestação poética extremamente livre, inconsequente e vazia que se seguiu às facilidades da estética descompromissada, não dogmática e não-preceptiva reivindicada pelos modernistas, o grupo de poetas experimentais dos anos 50 pugnou contra o verbalismo frouxo que dominava o cenário lírico discursivo.  (LUCAS, 1985, p. 9-10).

Uma das mais abalizadas e pioneiras vozes a expor as fraturas do movimento, Fábio Lucas militou, com a desenvoltura que lhe é peculiar, pela pluralidade de sistemas, sem exclusões que entendeu de cunho ideológico.Neste imbróglio estético/cultural, demonstrou a necessidade de um exame pluralista, imparcial, independente de escolas ou confrarias, normas ou manifestos, o que é a característica da poesia através dos tempos:

O concretismo, como exemplo de falsa vanguarda, executou no contexto literário brasileiro um gigantesco plano de diluição de experiências já provadas em outros lugares, além de divulgar as obras de suporte teórico das “novidades” que já eram antigas. (LUCAS, 1985, p. 10).

A atualidade demonstra o acerto do citado crítico, posto que a poesia brasileira do início do Século XXI caracteriza-se pela pluralidade, livre de rótulos ou normas engessantes; pela multiplicidade de linguagens, suportes, mídias e processos criativos.

Assim é que a poesia brasileira renasce na terra devastada pelo radicalismo normativista concreto imposto à guisa de remédio caseiro para as “teorreias” atribuídas aos discordantes, alcunhados de “chupins desmemoriados”.

Para Lucas, a história da literatura é marcada pela “hesitação’ entre períodos que ora privilegiam a imitação ora evidenciam a criação”:

Naqueles momentos em que a criação se torna um valor em si, os artistas se preocupam com a ruptura com os sistemas linguísticos, mostram-se insatisfeitos com o gosto dominante, procuram particularizar ao máximo a atividade produtora. No caminho da particularização infinita chegam ao limiar do solipsismo e do isolamento. (LUCAS, 1985, p. 8).

Na fase do domínio da imitação “há busca do padrão coletivo”, “sancionado pela adoção de modelos exemplares”, atividade definida por Ezra Pound como beletrismo, quando a qualidade equivale a dos criadores e diluição, quando não passa de reprodução medíocre.

A vanguarda ressalta sua diferença com prática da imitação, pretendendo ultrapassá-la, deixá-la na retaguarda, instaurando a “modalidade de mecanismo de competição que rege a nossa sociedade”. (LUCAS, op. cit., p. 9).

Philadelpho Menezes Neto, declarado entusiasta da poesia concreta e da poesia de vanguarda brasileira, também ele um expressivo criador, além da extensa e excepcional obra teórica, realizou o mais profundo trabalho de dissecação da poesia concreta até agora.

Na obra A crise do passado, acima citada, ressalta que o termo “pós-modernismo” foi utilizado pela primeira vez no Brasil por Sérgio Buarque de Holanda, termo original da cultura hispano-americana, “para definir uma reação ao modernismo por tendências já presentes no seu interior.” (MENEZES NETO, 2001, p. 161).

Relata este autor que Sérgio Buarque de Holanda percebeu duas vertentes oriundas da mesma estética de confronto com o modernismo: a primeira de natureza contra-revolucionária e a segunda caracterizar-se-ia pela radicalização das “premissas abertas pela experimentação dos modernistas brasileiros” (MENEZES NETO, 2001, p. 162). Nesta última podiam ser incluídas as obras de estreia dos líderes da poesia concreta, juntamente com João Cabral de Melo Neto.

Não obstante, aduz Menezes Neto (2001, p. 162), “desde a primeira revista do grupo Noigandres, de 1953, o termo poesia de vanguarda foi adotado para cunhar a linhagem estética à qual se vincularia o grupo.”

Nesse choque interno entre concepções tipicamente vanguardistas, ligadas às categorias da modernidade (como superação e inovação – veja-se por exemplo o nome das edições concretistas: invenção) e outras que já prenunciavam um confronto com elementos do projeto moderno, pode-se entender o momento de passagem do ideário das vanguardas para seu próprio aniquilamento na pós-modernidade.” (MENEZES NETO, op. cit., p. 162).

Comparando o movimento ao Letrismo do romeno Isidore Isou (1947), no qual a racionalização foi levada ao extremo a ponto de desconsiderar a “materialidade física da letra” como linguagem, mas somente como “grupos de traços gratuitos” (MENEZES NETO, 2001, p. 163), assevera que este movimento antecipa a poesia concreta, devido ao projeto de valorização exacerbada da forma do poema. As diferenças que nota são nos aspectos da visualidade do texto, destacada pela poesia concreta, enquanto Isou valoriza o aspecto sonoro da letra o “anti-semanticismo” e a “gratuidade colagística”, enquanto “a visualidade no concretismo se dá como uma racionalização medida da forma.” (MENEZES NETO, 2001, p. 163).

Desse modo a poesia concreta se afasta das vanguardas sensorialistas. Nesse passo pode-se notar a origem da cisão que originou neoconcretismo, conforme acima exposto, pois é nítida a tese destes de que a racionalização tolhe “a realização imaginativa” (RUSSELL, apud MENEZES NETO, 2001, p. 155), para eles muito mais realizadora. A racionalização da poesia concreta vem agravada pelo dogmatismo que busca novos suportes a cada crítica, suportes estes que vão da poesia provençal a Mallarmé, por exemplo.

Segundo Menezes Neto (2001, p. 163), o concretismo, pelo menos na sua fase ortodoxa, “é essencialmente uma poética da racionalização”, mas seus métodos de composição, típicos da sociedade pós-industrial, distanciam-no dos movimentos de vanguarda, pois o esvaziam dos seus intuitos utópicos.

No entanto, ainda restava à poesia concreta o desejo de reconstrução da linguagem das vanguardas intelectualistas. Porém, ela se insere expressamente naquele “momento generoso de otimismo” (CAMPOS, H., p. 184, apud MENEZES NETO, 2001, p. 165) que caracterizou a década (1950), aderindo de carona ao frenesi oficial daquele período:

A poesia concreta, no entanto, já adentrando um pós-modernismo ao incorporar dados da nova linguagem tecnológica, busca penetrar na cultura como elemento estético desse novo código social, quer se situar como linguagem pertinente a toda estética do período, perdendo, assim, a instância da negatividade que o projeto de autonomia artística possuía nos modernistas. O projeto de autonomia estética, oriundo dos modernistas, mas agora destituído da crítica da negatividade, se combina com a índole racionalista das vanguardas intelectualistas, que se resolve na noção de comunicação de estruturas. (MENEZES NETO, op. cit., p. 164).

Assim é que, pelas ocorrências que se seguiram, pelo envolvimento dos poetas concretos com a música popular (Tropicalismo), pelo reconhecimento implícito de que toda arte e toda poesia é irracional, o movimento exauriu-se em si mesmo, sem deixar herdeiros, a não ser no experimentalismo que se seguiu, como se verá adiante, sucintamente:

Quando após a fase ortodoxa a poesia concreta vai se transmutando, tornando maleáveis seus procedimentos composicionais, incorporando mais fortemente a visualidade tipográfica, escapando do uso exclusivo do tipo futura [...] ela vai rompendo com a racionalização extremada da forma e da estrutura. Aí ela começa a desaparecer enquanto movimento, fecha-se o ciclo de sua estética, os poetas concretos deixam de fazer poesia concreta e passam a experimentar novos processos de organização visual da palavra, assim como os artistas plásticos experimentam a por art e os músicos, o teatro, musicado. Quando isso se dá, no início dos anos 60, desaparece junto com a poesia concreta a exacerbação racional que dirigia a obra de seus autores. (MENEZES NETO, op. cit., p. 166).

Por estes motivos, Menezes Neto conclui que:

a poesia concreta foi uma distorção classicista momentânea no percurso artístico dos poetas concretos brasileiros, no qual o teor vanguardístico-racionalista suplantou temporariamente a índole pós-moderna já observada, na fase pré-concreta, por Sérgio Buarque de Holanda, e que se acentuaria nas suas produções pós-concretas. (MENEZES NETO, op. cit., p. 166).

 Anota que Gomringer continuou fiel ao método que sempre caracterizou a sua obra.

 

5. O experimentalismo na poesia brasileira atual

Tendo os próprios criadores e tenazes defensores da poesia concreta a abandonado, tendo eles próprios resgatado o verso do túmulo onde jazia sob pétalas, passado meio século do evento, a influência da autodenominada vanguarda na poesia brasileira atual manifesta-se nas práticas experimentais aliadas à eletrônica e pela busca incessante pelo novo, com poucos resultados convincentes, todavia.

Na sua Tese de Doutorado (PUC-SP 1996) Omar Khouri assevera o caráter conservador e alheio à herança vanguardista da produção de poesia no final do século XX. Com efeito, é tímida a influência da vanguarda na poesia brasileira atual. Na maior parte da produção há escassa influência da poesia concreta e a das vanguardas históricas. Nesta vertente há presença marcante tanto do verso quanto do verbo. Ela é denominada de “verbalista” por Khouri (1996), cujo meio de expressão é o verso livre com escasso rigor formal e linguístico. Há uma vertente que se pretende sucessora da vanguarda e cuja obra ainda se enquadra na definição de experimental, “stricto sensu”. Neste último caso, a produção predominante é de “poesia visual”, como incursões pela "poesia objeto”, “livros de artista”, “instalações” e performances corporais, dentre outras, recursos que foram explorados largamente pelas vanguardas. Esta produção é veiculada principalmente pela internet, revistas independentes de grupos homogêneos. É uma produção que abrange desde a “poesia visual” até a poesia elaborada por computadores, mediante programas criados especificamente para esta finalidade. Esta produção tem diversas denominações, dentre elas destacam-se os nomes intersemiótica, “intersígnica” (termo criado por Philadelpho), intermídia, polipoesia, vídeo poesia, infopoesia etc. Esta produção utiliza predominantemente os suportes eletrônicos.

Nessa linha, a recente produção de “nanopoesia” por alunos, professores e técnicos da Unicamp, veiculada na imprensa (jornal Folha de São Paulo, 27 de abril de 2009, A5). Esta obra caracteriza-se pela inscrição da palavra “infinitozinho” em um fio mil vezes mais fino que um fio de cabelo. O poético da obra é a possibilidade de grafar a palavra num espaço infinitamente pequeno, no qual só pode ser lida com um microscópio especial. A esta obra denomina-se “Nano poema”. Este é um exemplo do uso da tecnologia na produção cultural. Para isto é necessária a conjunção de esforços de técnicos (Unicamp, LNLS – Laboratório Nacional de Luz Sincotron), o poeta (Arnaldo Antunes) autor do “texto” “infinitozinho”, extraído de um poema. Nesse caso uma palavra incorpora o prestígio do seu autor à nano-obra literária. O idealizador do projeto foi o poeta e músico Juli Manzi, pseudônimo artístico de Giuliano Tosin, cujo trabalho em desenvolvimento é “Transcriações: reinventando poemas em meios eletrônicos”. Há uma plêiade de pessoas envolvidas no projeto, desde o mentor da ideia, ao autor do “texto” escolhido, aos físicos e técnicos em eletrônica que executaram o projeto, o custo público da execução do projeto e também o jornal Folha de São Paulo que veiculou o feito, dando-lhe caráter de verdadeiro acontecimento literário. Estes são alguns dos aspectos da produção atual tributária da vanguarda. Resta aos leitores, críticos, poetas e demais interessados a avaliação da obra. Esta vertente de criação incorpora novas tecnologias digitais, tão logo estejam disponíveis e suas criações transbordem dos limites da poesia propriamente dita para o da arte digital. Há programas de computador criados para a elaboração de “poesia”, com a mínima participação do artista, senão nenhuma. Há uma obra que consiste em uma tela azul na qual se movimentam grafemas verdes, que surgem e desaparecem e induzem à ideia de morfemas (2). Numa outra obra, a palavra “dentro” em letras estilizadas entra e sai da tela branca. Estas obras são do poeta Amir Brito Cadôr. O Poema Civil n. 1, de André Vallias (3), consiste no seguinte:  

O LAUDO:

 

TA TUDO

EX TA(DO)

MINADO!

O texto conciso, formal, coloquial, de influência concreta, caracteriza-se pelas frases sobrepostas sugeridas (O laudo: (Ex-)Estado: está tudo dominado), num fundo vermelho, com sons de vozes, ruídos e música, enquanto as palavras alteram sua cor de modo a formarem as frases sobrepostas. Verifica-se nestas produções que de demandam extenso trabalho técnico além de artístico, tal qual nos jogos de computador, publicidade e outras artes eletrônicas e digitais. Outra característica é que sem um computador não é possível ter acesso a estes poemas, a não ser que os já disponíveis livros eletrônicos possam reproduzir tais obras, tornando-as mais acessíveis. A estas produções, dentre as milhares existentes na rede de computadores, Menezes Neto denomina de “poéticas extraordinárias”. Não há como afastar a natureza de poesia enquanto gênero à maioria delas, tanto pelo uso da palavra ou sinais gráficos, sons de palavras ou que contenham alguma simbologia, ou mesmo imagens estáticas ou em movimento que representem alguma forma de linguagem, posto que a comunicação depende da convenção, dos códigos ou da “chave léxica”. A indagação que se faz é sobre a extensão do gênero poesia. Tratando-se de atos criativos do homem com efeitos estéticos, sejam elas baseadas ou não em signos convencionais, somente por isto esta produção constitui poesia ou há casos nos quais não está adequada ao gênero? Por outro lado, não há razão para exclusão do gênero poesia se esta arte mais se aproxima do conceito de poeticidade do que qualquer outra. Em primeiro lugar sua raiz também está essencialmente na linguagem, como toda poesia, ainda que haja dificuldade de decodificação. Mas uma poesia em grego ou chinês não é de difícil decifração para qualquer leitor não conhecedor destas línguas? A poesia exclusivamente escrita não é inacessível para o analfabeto? Sendo a poesia essencialmente uma “arte do tempo”, estes processos de linguagem, poesia em movimento (na tela), “pensamento sucessivo” (FENOLLOSA) são a materialização da conjunção substantivo/verbo. Sendo estas obras “representação do pensamento” através de signos convencionais (palavras) ou não, de modo concreto, podem ser excluídas do gênero poesia? Evidentemente que não, mesmo porque a “mixagem de gêneros” é a característica cultura atual (Geertz,1983).

Por outro lado, sendo função da crítica a definição de critérios de avaliação da obra literária, quais serão os critérios de valoração destas obras? A qualidade do texto acrescenta valor à obra cujos recursos tecnológicos não sejam tão elaborados e vice-versa? A simples utilização de recursos tecnológicos numa frase de quase nenhuma potencialidade poética faz da obra uma poesia de qualidade? É certo que não.

Os critérios de qualidade poética dependerão de uma série de fatores em conjunto. Quando começaram estas manifestações com o uso de recursos tecnológicos, Augusto de Campos foi o primeiro a alertar “que o domínio da informática não transforma ninguém em poeta”(4). Nessa linha, há obras mais radicais, caracterizadas por sinais fotoelétricos movimentando-se na tela, sem nenhuma possibilidade de decodificação.  

 

6. O conceito “metamoderno” de poesia

A produção de poesia sem o uso da linguagem verbal ou simbólica levará à ampliação do conceito de considerada literatura, já não restrita à arte com palavras, mas à arte intersígnica.

A poesia visual tem largo trânsito no mundo todo, com dezenas de exposições em todos os continentes, tornando-se uma das mais bem sucedidas formas de expressão de poesia da atualidade.

Entre nós, Plaza (2003), um autêntico criador de vanguarda, comprovou a viabilidade da poesia visual e sua perfeita adequação ao gênero conforme o conhecemos, através de traduções “intersemióticas. 

Referida tradução “consiste na interpretação dos signos por meio de sistemas de signos não verbais, ou de um sistema de signos por outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura”, conforme as lições de Peirce. (apud PLAZA, 2003).

Assim é que traduz intersemióticamente o célebre Hai-cai de Bashô: o velho tanque, rã salta, rumor de água, para as imagens: 1º momento: fotograma de água calma, significando o “velho tanque”; 2º momento: fotograma de uma rã; 3º momento: fotograma do tanque com movimento ondulatório da água à guisa de “rumor de água”, após o salto.

Verifica-se que neste exemplo, como em diversos outros, com base na análise do significado das imagens ou da visualidade, Julio Plaza traduz diversos poemas para a linguagem puramente visual, mantendo o significado intacto.

Estas são autênticas experiências com a linguagem, nas quais Julio Plaza demonstra que o significado e o conteúdo poético da mensagem são perfeitamente válidos

As poesias visuais pretendem estabelecer a comunicação poética a exclusivamente partir de imagens, ou , quando muito, em interação com a palavra ou, eventualmente, outros signos.

Com a evolução dos recursos eletrônicos, poder-se-ia realizar a tradução intersemiótica do Hai-cai citado através de imagens cinéticas, seja um simples salto de uma rã para o tanque, com o som produzido por isto, seja através de animações artificiais sonorizadas. A estas manifestações obviamente não se poderá negar a natureza de poesia.

Desse modo, o conceito de poesia, na pós-modernidade ou na “metamodernidade”, amplia-se para abranger as produções resultantes da fusão de linguagens, de suportes e de gêneros de arte.

A literatura e a poesia veiculada e produzida na rede de computadores torna-se um produto de uso e consumo coletivo, perecível e volátil, propiciando o surgimento da figura predominante na produção “artística” do técnico, do comunicólogo, animador cultural, conforme preconiza Terezinha Losada.

Estes temas são recorrentes nos debates sobre a poesia atual, causando certo desgaste no gênero, pela sua expansão para todas as linguagens, ao mesmo tempo em que parte da produção de poesia mantém-se fiel à tradição modernista, na maioria desvinculada de rigores formais.

A respeito do tema é oportuna a análise de Cauquelin (2005) sobre a complexidade da arte atual, inclusive a poesia e a literatura:

É preciso distinguir arte contemporânea de arte atual. É atual o conjunto de práticas executadas nesse domínio, presentemente, sem preocupação com distinção de tendências ou com declarações de pertencimento, de rótulos. Não se pode realmente definir o pós-moderno como contemporâneo [...] mas simplesmente como atual. O termo designa justamente o heterogêneo, ou a desordem de uma situação na qual se conjugam a preocupação de se manter ligado à tradição histórica da arte, retomando formas artísticas experimentadas, e a de estar presente na transmissão pelas redes, desprezando um conteúdo formal determinado. É, pois uma formula mista, que concede aos produtores de obras a vantajosa posição de portadores de uma nova mensagem e desloca e inquieta os críticos e historiadores de arte, que não sabem como captá-la nem a quem aplicá-la. (CAUQUELIN, 2005, p.129).

Estas são as características da poesia experimental atual, em seus diversos suportes tais como a imagem, o som e a poesia digital ou eletrônica inclusive aquela produzida por programas de computador sem a participação humana a não ser na programação. São inúmeras as obras nas quais não há linguagem verbal ou simbólica, mas apenas efeitos gráficos, sonoros, fotoelétricos etc., algumas delas estranhas ao gênero poesia, pela total ausência de linguagem. Por outro lado, considerando-se os princípios de ruptura e transgressão das vanguardas históricas, talvez estas obras sejam adequadas a este conceito. Mesmo considerando “poesia” como obra da criação humana, não se pode abandonar a natureza artística desta produção, ou seja, os efeitos estéticos, tanto no produtor quanto no receptor e suas características de obra de arte. As produções tecnológicas devem apresentar certas características sob pena de pertencerem a outros gêneros de arte.

Porém, constata-se que há a institucionalização do experimentalismo, o qual já incorporou a tecnologia eletrônica, inclusive através de produções do computador, a preconizada “máquina de poesia”. No entanto, a produção que utiliza os novos recursos tecnológicos nem sempre está adequada aos conceitos estritos de poesia e literatura. A utilização de textos em prosa e verso, literários ou discursivos, sem qualidade literária, com suportes eletrônicos, digitais, não fazem desse trabalho uma obra de qualidade artística nem literária. A análise crítica desta produção é quase inexistente, de modo que é pertinente o estudo da questão em face da crítica. 

A tecnologia – revolução eletrônica - como principal recurso na produção de poesia, a arte elaborada pelo computador, evidenciam mudanças radicais no sistema cultural, vale dizer, uma crise (alteração dos conceitos de arte e poesia, dos autores, dos difusores, dos cânones etc., com implicações antropológicas e sociais).

Estes fenômenos devem merecer atenção como fenômenos culturais contemporâneos; as novas mídias; as questões mercadológicas e a rede de informação mundial que altera o equilíbrio tradicional da produção e difusão cultural e suas consequências.

A massificação dos produtores e a veiculação pela rede mundial de computadores alteraram o sistema de produção e divulgação cultural, criando outros meios de veiculação, o que põe em questão o problema dos cânones.

Assim é que o experimentalismo, agora marcado pela influência da tecnologia, torna-se norma, de modo que a “metamodernidade” “aponta para a falência dos projetos, o esvaziamento do caráter transgressor da arte” (MENEZES NETO, 2001, p. 274,) sendo que este infatigável pesquisador acredita na possibilidade de criação de novas estéticas que “entrem em confronto com o assintaxismo dessignificante herdado das vanguardas sensorialistas” de modo que:

Uma arte e uma poética extraordinária hoje ainda seriam possíveis no âmbito da invenção estética de modo a propor uma outra forma de experimentalismo integral. Elas se contraporiam à tendência geral do período, conduzindo à modificação da sensibilidade, à desrotinização dos hábitos, à transformação dos gostos, reinstalando uma comunicação estética onde se conciliem a atividade intelectual e a intuitiva, a prazerosa e a perturbadora. (MENEZES NETO, op. cit., p. 277).

Desse modo a poesia terá que redescobrir suas origens, retornar ao corpo, ao prazer, ainda que lhe seja impossível renunciar aos jogos de linguagem nos quais a modernidade e as vanguardas colocaram-na.

 

   

  (1) Prefácio escrito por Jorge Fazenda Lourenço. In: BAUDELAIRE, C. A Invenção da Modernidade. Lisboa: Relógio D’Água, 2006.

(2) Disponível em: <http://www.iar.unicamp.br/alunos/poesiavisual>.

(3) Disponível em: <http://www.erratica.com.br>. p. 5.

(4) Folha de São Paulo, 22 set. 1999, p. 5, Caderno 4 – Informática e Poesia visual..., São Paulo: Perspectiva

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDELAIRE, Charles. A invenção da modernidade. Tradução Pedro Tamen. Lisboa: Relógio D’água,  2006.

CAMPOS, Augusto; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da Poesia Concreta. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea. 1. ed. São Paulo :  Martins Fontes, 2005.

COSTA, Horácio. Mar Abierto. México: Fondo de Cultura Economica, 1998.

FENOLLOSA, Ernst. Os caracteres da escrita chinesa como instrumento da poesia. Notas de E. Pound.

GAY, Peter. Modernismo - O fascínio da heresia. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.

KHOURI, Omar. Poesia Visual Brasileira: Uma poesia na era do pós-verso. (Tese de Doutorado), PUC-SP. São Paulo, 1996.

LUCAS, Fábio. Vanguarda, História e Ideologia da Literatura. São Paulo: Ícone, 1985.

MENEZES NETO, Philadelpho. A crise do passado. 2. ed. São Paulo: Experimento, 2001.

PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1976.

PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. São Paulo: Ateliê, 2004.

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.

 

 

Washington Luis Lincoln de Assis (Brasil).
Poeta,  artista plástico,  ensaísta,  enxadrista e promotor de Justiça do Meio Ambiente em São Paulo. Contato: wlla2004@yahoo.com.br.

 

 

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