REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 02

 

O baile particular teve lugar quando as andorinhas ensaiavam o concerto desafinado da chilreada, prévio à chegada da Primavera, nas árvores do jardim da Estrela, próximo da casa de Isaura.

 Os colegas do escritório quiseram inclui-lo no número restrito de convidados, todos eles a rondar os vinte, aos quais dava certo gozo iniciarem-no nos jogos do amor em que os bailes se constituíam palcos apropriados ao debute nesse território de lágrimas e suspiros, mas também de muita energia esbanjada em júbilos efémeros, desordenadas batidas do órgão primordial e o fogo largo da imaginação. Foi numa tarde de domingo, recordava-se perfeitamente até por ter sido dia de derby no futebol. Ia pelos dezasseis anos. Nesta história será conhecido por Norberto, o de dezasseis.

O pai de Isaura fez as honras ao grupo. Tornou-se claro aos “velhos” e ao neófito que a cordialidade da recepção escondia aviso severo: quem pisasse o risco teria de prestar contas a um português do tempo da guerra tão vulnerável a gentilezas se os ventos soprassem a favor como duro de roer e temperamental se alguém lhe arranhasse sem piedade os pergaminhos de anfitrião.

DIRECÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
   
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Júlio Conrado

 

ACERCATE MAS...

                                                                Júlio Conrado

 
 
 
 
 
   
 

O homem – o comissário Sebastião Cordato – quis mostrar o corpanzil, a farda e sobretudo o chanfalho, à horda invasora, supostamente para lhe dar a perceber a importância de ter de se comportar, durante a sua ausência, nos limites apertados do decoro. Sim. Deixá-los-ia à rédea solta por umas horas. Mas regressaria preparado para o pior, caso, por hipótese, se lhe apresentasse um cenário de catástrofe no próprio lar. Quis que ficasse a pairar a ideia de que não se acanharia a distribuir uns pares de sopapos pelos eventuais subversores da ordem sacrossanta em espaço proibido a malfeitorias (manchar os tapetes, partir bibelôs, danificar móveis, etc.), além dos assédios vários que lhe povoavam os pensamentos, ou não fosse ele polícia experimentado em lidar com o pior lixo social da grande cidade capital do império. A malandragem empinocada levaria dele recordação indelével se ousasse deixar mácula que expressasse barafunda fora de escala ou distúrbio violento em lugar ainda habitado pelo fantasma da querida esposa, que partira dois anos atrás. 

Isaura fora informada pelo pai das condições de cedência da casa. Tranquilizara-o quanto à qualidade dos convidados: as meninas eram todas do seu conhecimento, companheiras de trabalho e vizinhas, e os rapazes todos empregados de escritório, controlados pelo “veterano” coordenador dos assaltos de Carnaval. O Duarte. Não se lembrava do Duarte? O moço que em dada noite lhe pedira para a deixar estar no baile dos Alunos do Apolo por mais meia hora? E que ele, pai, achara um rapaz tão conveniente ao ponto de acordar numa hora extra? Esse? – perguntara o comissário, aliviado. Esse, respondera Isaura, segura de si como nunca. Esse mesmo.

– Que tudo corra como deve ser – alertou Sebastião Cordato entre ameaçador e condescendente.

O comissário Sebastião Cordato chumbara até à data a realização de bailes particulares intra-muros. Viúvo, reverenciava a memória da defunta assumindo responsabilidades de vigilância sobre a filha que o tornavam a um tempo pai e mãe, insólita condição tratando-se de alguém cuja mentalidade paramilitar sustentava como tarefa eminentemente maternal a preparação da filha para a vida. Ir ao baile dos Alunos do Apolo aos sábados à noite era o máximo permitido a Isaura, então na plenitude dos vinte anos, dentro de horários exigentes de permanência, na colectividade de recreio, por ele estabelecidos; qualquer prolongamento do período estipulado passava por elaborada negociação. No mais, a rapariga, balconista numa retrosaria da Baixa, largava sempre o serviço em cima da hora para apanhar o eléctrico vinte e oito e vir fazer o almoço e o jantar, já que a paternal figura nada percebia de cozinha e detestava o rancho (nestes precisos termos diabolizava a comida servida na messe da Polícia), o que a ela desarrumava tanto o período pós-laboral como o intervalo da tarde. 

Isaura era estrábica. Compensava, porém, o estrabismo com um corpo de sonho e um bom humor irresistível. Naquele tempo era muito arriscada a correcção cirúrgica do defeito. Esperava-se pela consolidação do crescimento e depois pela chegada da maioridade – vinte e um anos –, sendo de levar em conta que a complexidade da cirurgia situava o esforço financeiro fora do alcance das bolsas médias baixas. Em todo o caso o pai propunha-se dar-lhe por dote o conserto do olhar. Para isso juntava, juntava, juntava. Queria para ela umas pupilas bem colocadas e confiantes, garantia de bom casamento. Entendia serem os olhos em bico factor de retracção dos pretendentes de nível. Esbarrava, estranhamente, no pouco empenho de Isaura em ser operada. Sentia-se às mil maravilhas na sua pele, a pequena. Era hábil a fazer amigos, adorava dançar e nunca lhe faltavam pares (pudera, só o chamariz daquele corpinho cinco estrelas!). Conhecia-se-lhe um fraco pelo Duarte e era recíproco o interesse dele. Em suma: negligenciava alegremente o descuido da Natureza. Não fazia parte dos seus planos imediatos esfaquear a imagem que lhe era tão cara, a troco de uma outra, de olhar certeiro, bem entendido, mas que não deixaria de ser para si estrangeira, quando diante do espelho interpelasse, pela manhã, o rosto incrivelmente perfeito: Quem és tu?

Ela até gozava, imagine-se, com a situação:

– Quem quer dançar com a vesga?

Duarte perfilava-se logo na primeira linha dos candidatos a enlaçá-la. Respeitaria uma vez mais a regra. Escolhera, aliás, essa tarde para se declarar a Isaura, segundo se descaíra no escritório. Assim o chefe policial lhe desse tempo e depois o ámen, tomando por seguro que ela estava mais que madura para a resposta ambicionada.          

Meio desconfiado, o comissário lá deixou a casa ao cuidado da filha e da “horda”, imprecando entredentes contra a viuvez precoce que o obrigava a trabalhos dobrados com a rapariga, em idade tão ingrata, e arrancou para o estádio, então dito stadium (depois substituído pelo novo estádio de Alvalade, hoje cadáver sepultado ao rés do Alvalade XXI). Ia supervisionar a manutenção da ordem pública (naquele tempo não se dizia segurança, jogo de alto risco, essas tretas de agora) no Sporting-Benfica, no Lumiar, o que o obrigava a entrar em alerta máximo; entre as falanges de apoio (também ninguém falava em claques organizadas nem em adeptos) daqueles dois havia sempre zaragateio fortíssimo. Já deixara, pela manhã, os seus homens e o dispositivo prontos, viera a casa só para petiscar qualquer coisa e receber (melhor: mostrar-se) os dançarinos, voltando de imediato para a zona circundante do recinto desportivo onde era suposto armarem-se sarilhos grandes quando o match terminasse. Desejava, muito no íntimo, que o fim de festa não descambasse em porrada de criar bicho. Tinha de estar atento ao que poderia encontrar de irregular no domicílio, pois caso a este retornasse fora de horas já não encontraria “culpados” a quem assacar responsabilidades. Isso incomodava-o-o tanto como as prováveis escaramuças entre os fanáticos dos dois clubes, pelo que, face à situação, implorava ao santo patrono das polícias o exercício da sua influência no sentido de não acontecerem desacatos, para que chegasse a casa a horas de fechar o baile. Nessas ocasiões havia sempre a ajuda de elementos  da GNR a cavalo, força realmente dissuasora. A pilantragem da bola, todavia, arranjava sítios inacessíveis aos cavalos para se bater entre si e era aí que entrava a polícia, a pé.  

Isaura organizara o espaço para dançar, deslocando os móveis e encostando-os às paredes. Sobre uma mesinha de sala colocara o gira-discos e, em cima da cadeira junta, os discos com as músicas e vozes da moda. Na divisão contígua, antes da cozinha, a ampla mesa de jantar recebera as contribuições dos participantes em comes e bebes, a consumir à hora do lanche – no intervalo. Os rapazes encarregaram-se dos refrigerantes: laranjinas cê e pirolitos de gargalos engasgados com carolos (nem o comissário consentiria pingo de álcool ali). As meninas foram portadoras, umas, de bolinhos caseiros, sortidos, e outras, do famoso bolo de buraco, uma espécie de pão de ló mas mais espesso e açucarado, evidenciando arte de doceiras cultivada desde a pré-adolescência a par dos lavores, cânones da educação feminina da época.

Eles, de cabelo abrilhantinado, em poupa, fato completo (ombros dos casacos enchumaçados) e gravata, e elas, envergando blusas de seda, saias franzidas sobre saiotes interiores, que lhes ficcionavam as ancas e as coxas, com cintos elásticos, largos, a adelgaçar-lhes as cinturas, e sapatos rasos, deram então início ao baile. A composição dos pares, previamente combinada, funcionou de imediato ao som do desenxovalhado cha-cha-cha com que a moça de vela ao pick-up encetou as hostilidades. Ao de dezasseis, Norberto, coube a gazelinha de catorze, pescoço alto, à Modigliani, flexível e longilínea, de feições muito belas, Sílvia, de seu nome, como ele intérprete de grau zero da arte de dançar e que as raparigas haviam trazido também para iniciação.        

            O de dezasseis, tímido como as pedras, procurava imitar os mais velhos, cingindo a de catorze pela cintura. Esta, porém, mantinha a distância mercê da firme pressão da sua mão direita no ombro esquerdo dele. Norberto olhava  amiúde para Duarte. Implorava conselhos a quem obviamente não lhos podia dar, absorvido, como estava, o colega, no desenvolvimento do seu próprio discurso amoroso. Entretanto, a curta série de cha-cha-chas dançada em cadência movimentada seguiram-se melosas  baladas (Besame mucho, Acercate mas, Teus olhos castanhos) dos cantores românticos Lucho Gatica, Nat King Cole  e Francisco José, e logo os pares mudaram de atitude, unindo os corpos e antecipando a anunciada sagração da Primavera. A de catorze condescendeu em afrouxar a pressão sem contudo baixar a guarda por completo, zelando ferozmente pela manutenção dos escassos centímetros que lhes separavam os ventres, vigilância só alterada quando as pernas se tocavam ao fintarem desajeitadamente os ritmos melódicos para quase desafiarem a lei da gravidade. Num desses enganos a mão feminina aliviou o esforço. O rapaz apertou então aquela que se furtava e pôde tocar, num ímpeto de prazer, os seios, as coxas, o ventre, que se lhe entregavam em desequilíbrio enquanto a líbido atacava nas suas formas expressivas e naturais o lugar onde espontaneamente se manifesta. A vermelhidão invadiu a cara dela. Ele também corou. Convencido de que o pior havia passado e que de aí em diante era só fruir a doce leveza da tarde, aconchegado às pernas daquela miúda tão bonita, cantou, muito no íntimo, vitória.

            Tremendo erro de cálculo.

            Inesperadamente, Sílvia soltou-se. Iniciando um choro convulsivo deu uma corridinha até à sacada para aí carpir a sua decepção, com grande espanto de todos mas, naturalmente, mais de Norberto. Incapaz de fazer refluir para outras categorias de visibilidade o legado erótico da peripécia; exibia, meio espantado, no meio da sala, a protuberância vital no seu superlativo índice volumétrico. Parado, varado, vidrado, vira os pares ignorarem  Nat King Cole e o seu Acercate Mas e precipitarem-se para a estreitíssima varanda (onde, agachada, a virgem de catorze se afogava em lágrimas), tentando perceber o que se estava a passar.

            Isaura compreendera logo tudo. Talvez receosa de um incidente que pudesse desencadear a ira paterna (imaginou o pai a irromper subitamente pela casa e a dar de caras com a garota em pranto), tratou de chamar a si a resolução do problema, afastando, inclusive, o futuro namorado. Mandou que se continuasse a dançar e enfiou-se com Sílvia no quarto dos pais, cuja porta fechou.

            Cerca de dez minutos depois, Isaura saiu com a de catorze pelo braço, já de olhos enxutos e cabeça levantada, dirigindo-se ao acabrunhado Norberto:

            – Pronto, agora vão dançar os dois e nada de fitas. Tu, minha menina, não te esqueças: Deus fez-nos assim, é da ordem natural das coisas.

            Sílvia e Norberto dançaram ao longo da restante tarde muito agarrados um ao outro, hirtos e tensos, sem trocarem  palavra. Por tempo superior ao previsto. O santo patrono das polícias não escutara os rogos de Sebastião Cordato. Houve mesmo alteração da ordem à saída do campo de futebol. Quando o comissário chegou a casa, já não encontrou, como temera, “culpados”.     

            Um ano depois, alguém notou que Sílvia passava com frequência, na rua, a certa hora, mesmo por debaixo de uma das janelas do escritório.

            Esse alguém chamou a atenção de Norberto.

            – Anda aí às voltas por tua causa. Lembra-se de ti. Atira-te a ela.

            – Não estou interessado – respondeu secamente o então de dezassete.

            – Até a puseste a chorar…

            – Chorou. Mas não por mim.

            O caso ficou por aí. Nunca chegou a saber o que dissera Isaura à mais jovem nos dez minutos cruciais em que falaram a sós, para lá do que a frase enigmática Deus fez-nos assim, é da ordem natural das coisas deixara supor. Tão pouco Duarte tinha ficado ao corrente.

            Deixou de pensar na rapariga naquele mesmo instante.

Para sempre.

            Para sempre?

Para sempre é muito tempo.

            Até hoje.

            Resolveu-se a narrar a história por lhe terem encomendado um conto. Viu passarem desinspirados dias sem achar assunto capaz. Preparava-se para desistir.

Em cima do prazo, a recordação vadia acudiu a salvá-lo.

 

Cascais, 2010

   

 

Júlio Conrado  (Olhão, 26.11.1936) 
Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro), centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão, inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010), Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia: Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009). 
Ver currículo alargado no site do Pen Clube Português

 

 

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