REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 01

 

Após o conflito de Ourique [25 de Julho de 1139], onde Afonso Henriques e os seus homens atacaram cinco covis de infiéis, o Infante deixou Santarém, passou para as suas terras de Coimbra e organizou um grupo de cavaleiros vassalos que o acompanhassem a Roma e ao reino de Leão. Tinha em vista:

1. O reconhecimento de uma carreira militar de mais de uma década (1127 e 1128-1139);
2. O título de “Rei” que pretendia ver reconhecido e em uso, repetidas vezes, desde 1140, sem qualquer legitimidade: um rei sem reino;

3. E a ajuda para a organização de uma cruzada poderosa que lhe desse Santarém, Sintra e Lisboa, tomadas antes, perdidas depois, conquistadas, definitivamente, em 1147.

O Imperador da Hispânia Cristã – onde se incluíam, além de Leão e Castela, os condados da Galiza e de Portucale, e as terras de Coimbra e Santarém – Afonso VII, organizou com D. Afonso Henriques, seu primo, uma assembleia, dispensando a saída do nosso governante para Roma e, antes, convocando um representante emissário papal para a reunião que tomaria lugar em Zamora, a 5 de Outubro de 1143. Beneficiava o nosso Príncipe, desta feita, da acção desenvolvida, em favor da constituição do novo “Reino” de Portugal, pelo arcebispo de Braga, Dom João Peculiar, que procurou conciliar os dois primeiros, e fez com que eles se encontrassem na dita cidade, naquela data, na presença do cardeal emissário Guido de Vico.

 

 
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Maria Estela Guedes  
   
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JOÃO SILVA DE SOUSA

D. Afonso Henriques:

de “Rei” a Rei

(Filho de Henrique da Borgonha, cônsul de Portugal,
Neto de Henrique, conde da Borgonha,
Bisneto de Roberto I, duque da Borgonha e
Trineto de Roberto II de França)

 

A soberania portuguesa, reconhecida naquela assembleia, por Afonso VII, só veio a ser confirmada pelo papa, em 1179. Mas o título de “Rei” de Portugal, que D. Afonso Henriques usava desde 1140, foi autorizado pelo rei de Leão, seu primo, no convénio de Zamora, que tomou lugar a 5 de Outubro de 1143, comprometendo-se, então, o monarca português, ante o cardeal-embaixador romano, a considerar-se vassalo do Papado e obrigando-se, por si e pelos seus descendentes, ao pagamento de um censo anual, no valor de cerca de 126 gramas de ouro da época.

As negociações vão durar trinta e seis anos – de 1143 a 1179. Com data de 23 de Maio de 1179, o Papa Alexandre III envia a D. Afonso Henriques a bula Manifestis probatum est argumentis. Neste documento, o Sumo Pontífice aceita que D. Afonso Henriques lhe preste vassalagem directa, reconhece, definitivamente, a independência do Reino de Portugal, sem vassalagem em relação a Afonso VII de Leão e Castela (pois nenhum vassalo podia ter dois senhores directos), e a D. Afonso Henriques como (primeiro) rei de Portugal, sob o nome de D. Afonso I, além da especificidade de uma monarquia hereditária, de então em diante. Recorde-se que na bula se diz exactamente que “decidimos fazer a mesma concessão a teus herdeiros e, com a ajuda de Deus, prometemos defender-lha, quanto caiba em nosso apostólico magistério”.

Como poderemos justificar, estes 36 anos de espera de uma súbita decisão favorável de Roma, praticamente inesperada – dados os esforços, entretanto, continuados, tendentes à independência de Portugal, à obtenção da categoria de Reino e a D. Afonso Henriques, a si mesmo, como Rei de Portugal e o consequente reconhecimento do Papa, o árbitro do direito internacional da época –, que obriga os demais monarcas cristãos a admiti-lo como tal, proibindo-os, por outro lado, de virem a subtrair-lhe as suas terras, nem no todo, nem sequer em parte?

O importante documento é confirmado por Clemente III a D. Sancho I, filho e sucessor de D. Afonso Henriques, a 7 de Maio de 1190 e a D. Afonso II, a 16 de Abril de 1212.

Que motivos estariam, pois, – repetimos –, na base da outorga de tão importante documento?

1.º D. Afonso Henriques continuou a guerra para Sul, com perdas e ganhos, e perdas depois dos ganhos. Era assim, como assim sempre foi. Conquistava-se e perdia-se;

2.º A efectivação da ‘reconquista’ do que se havia deixado para trás, a qual fora uma demonstração clara dos esforços que o caudilho tomava entre mãos e nas de seus homens de nunca desistirem e prosseguirem além da linha do Tejo, fronteira a Sul, legada já por seu pai, o Conde;

3.º Prosseguimento incessante da restauração da Igreja de Braga, dando-lhe ainda mais força e ultimando contactos com as arquidioceses de Santiago e Toledo;

4.º Restauro das dioceses de Lamego e de Viseu, em 1147, demonstrativa da sua continuada atenção ao reordenamento das que manter-se-iam até hoje: facto ocorrido há 863 anos;

5.º Concessão de privilégios tementes a facilitar o povoamento que entrava em linha de conta com o desenvolvimento económico, a outorga de forais e de outras chartae populationes, como, por exemplo, concelhos pré-existentes e que só vieram a ser legalizados e organizados posteriormente;

6.º A outorga de doações de várias tipologias – na maior parte, para produzirem efeitos de imediato – quer a particulares, quer a institutos religiosos, como Santa Cruz de Coimbra, S. João de Tarouca, Santa Maria do Bouro e Santa Maria de Alcobaça, esta última com uma construção provisória em 1154 e definitiva iniciada em 1178. Apenas para precisarmos as quatro mais importantes ao Centro-Norte do território;

7.º Consolidação da importância da alta Nobreza ante os demais extractos sociais e da Clerezia mais notável que, por este facto, facilmente se distinguia do médio e baixo clero: eram os grandes senhores feudais latifundiários, os ministros da corte régia e homens do conselho do rei, os embaixadores aos países vizinhos e à Santa Sé;

8.º Protecção das ordens religiosas e militares (Templários e Hospitalários, fixados em Portugal por volta de 1120/1130 e Calatrava ou freires de Évora e Santiago, por 1170), a fim de, com a entrega de grandes extensões de terra, as encarregar do desenvolvimento e da defesa do território, basicamente nas linhas de fronteira (Leste/Oeste);

9.º Promessa ao Santo Padre do quádruplo da tença anterior, passando de 126 gramas de ouro para cerca de 500 gramas anuais, colocando-se à disposição de Roma na continuada luta contra os inimigos do nome de Cristo que tinham posto um ponto final às instituições romanas e suevo-godas, agora retomadas pari passu.
O facto é que a unidade imperial que se vivia na Península, com um único imperador encarregado da “Reconquista”, contanto com reis e outros como vassalos, desde há 122 anos atrás, com Fernando Magno, bisavô de Afonso VII e de D. Afonso Henriques, perdia-se à morte do imperador de Leão e Castela, verificada em 21 de Agosto de 1157, ano em que os seus dois filhos lhe sucederam no Império, constituindo-se, então, ao invés, dois reinos independentes: Sancho III ficou com Castela e Fernando II com Leão. Não mais se obteve a unidade da “Espanha”, senão séculos mais tarde.

Depois, num desaire impensado do nosso “Rei”, – contrariando o disposto no Tratado de Sahagún [Maio de 1158] –, este deslocava-se a Badajoz, tentando salvar Geraldo Geraldes, já preparado para conquistar a alcáçova do castelo, quando, então, a 3 de Maio de 1169, seu genro, Fernando II, aliado aos Almóadas que chegaram prestes do Norte de África, capturaram o “rei”, no momento em que ele tentava escapar, fracturando uma perna. As condições tendentes à sua libertação não foram as melhores, dado que D. Afonso Henriques teve de restituir terras com que pretendia agraciar a Igreja. Mas a circunstância também não foi totalmente negativa, apesar dos desastres militares do filho, seu sucessor. O facto é que D. Afonso de Portugal, incapacitado de lutar contra quem quer que fosse, pela idade e pela doença, voltou-se para a Diplomacia e entabulou novos contactos com Roma. Deste modo, repare-se, as missivas começaram a trocar-se com uma maior assiduidade; as embaixadas cruzavam as fronteiras para chegarem à Santa Sé; as doações de D. Afonso Henriques à Igreja e as expressas nas suas últimas disposições testamentárias, num segundo codicilo de 1179, alimentavam a boa vontade e o agrado do Sumo Pontífice em tomar acções, a um nível correspondente.
Um facto internacional iria, pois, precipitar os acontecimentos. Frederico Barba Ruiva, imperador do Sacro Império Romano-Germânico media forças com o Papa, neste caso Alexandre III. Chegou a ameaçar invadir Roma. Opunha-se, peremptoriamente, à designação por parte do Papa de tutores para assumirem poderes laicos. Resumindo, o Sumo Pontífice devia ater-se nos negócios espirituais e nunca intervir na esfera de acção do representante máximo secular. Esta luta, nem tão surda quanto muitos pretendem fazer ver, pois que nem a ela se referem, fará com que o Papa reivindique, ou, melhor, se esforce o máximo que puder para que a nomeação de Príncipes e Reis, a coroação dos Imperadores, representantes dos Povos, e colocados por Deus na Terra para o governo destes, seja da sua exclusiva competência. Que melhor exemplo ou evidência poderia Alexandre III dar a Frederico, o Imperador, do que começar por fazer Rei D. Afonso Henriques e colocar na Europa mais um Reino independente, o de Portugal?

Não foi caso único, no momento. Mas, para nós, tendo em conta a conjuntura e todos os factos menores que acima enunciámos, fácil será admitir que o novo Reino resultou de um conflito de interesses e de uma persistente acção militar e diplomática de D. Afonso Henriques. Na verdade o que de melhor e mais evidente podemos considerar ter ficado a dever-se ao nosso primeiro Rei foi o nosso Reino: foi Portugal, um pequeno rectângulo, lado a lado com a gigante Espanha do futuro!



Cronologia

Raimundo (1080-1107)
Veio à Península: 1.ª vez, em 1086/1087; 2.ª vez, em 1090, para casar-se com Urraca.

Urraca (1082-1129). A morte de Afonso VI, em 1109, legou a Afonso de Leão, seu neto, a Galiza, como Rei; A morte de Urraca entregou Leão ao filho em 1126, e Castela e Toledo, em 1127.

Henrique (1066-1112)
Conde de Portugal: 1093, ao ser dada Teresa como mulher.
Em 1096, recebeu de Afonso VI o Condado de Portugal, retirado da Galiza, fazendo-o vassalo régio e dependente de Raimundo e, mais tarde, após a morte deste, de Afonso, o futuro Imperador Afonso VII.

Teresa (1080-1130)
Teresa com 13 anos e Henrique com 24, recebiam o Condado que, em 1096, já se estendia até ao Tejo,

Raimundo morre em 1107; Afonso VI em 1109 e Henrique, em 1112. Em Agosto de 1109, nascia D. Afonso Henriques na cidade de Viseu.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

João Silva de Sousa (Portugal)
Professor do Departamento de História da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Comissário-Geral das Comemorações dos 900 Anos do Nascimento de D. Afonso Henriques em Viseu, Académico Correspondente da Academia Portuguesa da História. Este pequeno artigo foi publicado numa folha que se distribuiu aos Congressistas com dir. de trabalhos de Júlio Cruz.

 

 

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