REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 01

 

Corria o mês de Setembro de 1940 quando, em São Paulo, Rubem Braga (n. 1913- Cachoeiro de Itapemirim) escrevia e publicava uma das suas mais famosas crónicas: «Os mortos de Manaus». Estava Rubem Braga a hesitar no tema de uma crónica, algures entre um grupo de pretos que cantava na madrugada os sambas da moda e uma fita de cinema sobre a qual podia valer a pena escrever mas, de súbito, caiu na sua mesa de trabalho o «Boletim Estatístico do Amazonas» com os 428 mortos do primeiro trimestre de 1940 em Manaus. Ao ler e interpretar os números, Rubem Braga percebe que dos 428 mortos, 73 são crianças com diarreia e enterite. E explica: «Eis uma coisa que não chega a me dar pena porque me irrita: o número de crianças que morre no Brasil. O que me irrita é o trabalho penoso das mulheres, o sacrifico inútil de dar vida a tantas crianças que morrem logo. A indústria nacional que nunca foi protegida é a indústria humana. Preferimos importar.»

Depois de uma dissertação emocionada sobre as várias causas de morte (paludismo, tuberculose, nefrites, lepra, cancro), depois de perceber que cada morto projecta sobre a sua mesa de trabalho e sobre a sua alma uma «sombra acusativa», Rubem Braga termina a crónica com uma expressão irónica, vasta e fria como a tristeza do Mundo: «Eu não tenho culpa nenhuma e nada tenho a ver convosco. Eu não tenho culpa de nada, eu não tenho culpa nenhuma!»

No mesmo ano de 1940 o poeta Carlos Drummond de Andrade (n. 1902 – Itabira do Mato Dentro) publica «Ode no cinquentenário do poeta brasileiro» escrita em 1936 para os 50 anos do poeta Manuel Bandeira. Vejamos um excerto:
«Esse incessante morrer / que nos teus versos encontro / é tua vida, poeta / e por ela te comunicas / com o mundo em que te esvais.

 

 
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Maria Estela Guedes  
   
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José do Carmo Francisco

Somos todos irmãos




«Somos todos irmãos – do «número de crianças que morre no Brasil» a um
inesperado poema de Rubem Braga passando pelo «Sentimento do Mundo»

                                                                    José do Carmo Francisco
 

Não é canto de andorinha, debruçada nos telhados da Lapa / anunciando que tua vida passou à toa, à toa. / Não é o médico mandando exclusivamente tocar um tango argentino / diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão direito infiltrado. / Não são os carvoeirinhos raquíticos voltando encarrapitados nos burros velhos. / Não são os mortos do Recife dormindo profundamente na noite.»

Em 1927 Carlos Flávio, o filho do poeta Carlos Drummond de Andrade, nasce e vive apenas alguns instantes. Esse drama terrível marcará para toda a vida a obra poética do autor de «Sentimento do Mundo». Por exemplo, no poema «Consideração do Poema» pode ler-se:

«São todos meus irmãos, não são jornais / nem deslizar de lancha entre camélias: / é toda a minha vida que joguei./ Estes poemas são meus. É minha terra / e é ainda mais do que ela. É qualquer homem / ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna / em qualquer estalagem, se ainda as há. / - Há mortos? Há mercados? Há doenças? / É tudo meu.»

Projectado um pouco do contexto deste poema inesperado de Rubem Braga, inesperado também porque incluído num livro de crónicas intitulado «O conde e o passarinho» (1961 – Editora do Autor), aqui fica, nos seus inesperados 35 versos, o poema «Adeus»:

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 



«Adeus, escritório, adeus,
Para sempre e nunca mais.
Eu vou sair pelo mundo,
Vou para Minas Gerais.
Já não quero mais cidade,
Onde tem muita prisão
E nenhuma liberdade.
Nem quero ser lavrador,
Quero ser é um vagabundo,
Do mais pobre e desgraçado,
Mas de espingarda na mão.
Se precisar trabalhar
Mudo sempre de patrão.

No fundo do mato arranjo
Comida para comer,
Cachaça para tomar,
Maleita para morrer.
Adeus, mulherada, adeus,
Para sempre e nunca mais.
Eu vou no rumo de Minas
Pego o sertão de Goiás.
Vou caçando, vou pescando,
Vou matando sem aviso
O branco que aparecer.
Depois desço por um rio
Para o Norte ou para o Sul
- Vou descendo sem saber -
Em Marajó ou no Prata
Eu varo as ondas do mar
E saio por este mundo
Barbado, pobre, sozinho
Doente, todo estragado,
Mas de espingarda na mão.
Eu saio por este mundo
E de espingarda na mão!»

A conclusão disto tudo está talvez no título do trabalho e no seu sentido – somos todos irmãos no sentimento do Mundo também porque, como escreveu em 1940 Rubem Braga, o poeta da prosa, «A força da vida, a força da vida mais mesquinha é um milagre de todos os dias.»

 

 

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO (Santa Catarina, Caldas da Rainha,1951).

Prêmio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. Colaborou no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses do Instituto Português do Livro. Poeta. Possui uma antologia da sua poesia publicada no Brasil. Jornalista, colaborou entre outros em "A Bola", "Jornal do Sporting", "Remate", "Atlantico Expresso"... Autor de "Universário", "Jogos Olímpicos", "Iniciais", "Os guarda-redes morrem ao domingo", etc., bem como de antologias como "O trabalho", "O desporto na poesia portuguesa e "As palavras em jogo", entre outras. É secretário da Associação Portuguesa de Críticos Literários.
Vive em Lisboa.
Contacto: jcfrancisco@mail.pt

 

 

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