REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

Análise comparativa da linguagem e gênero dos registros memorialísticos dos naturalistas italianos Ermanno Stradelli e Bartolomeu Bossi

 

ANA MARIA HADDAD BAPTISTA
&

MÁRCIA DO CARMO FELISMINO FUSARO

 
EDITOR | TRIPLOV  
ISSN 2182-147X  
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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1. Introdução

Viajar sempre foi visto, pela maioria das pessoas, com algo sedutor por várias razões. Viajar é, em certo sentido, um recorte vertical temporal na vida, visto entrarmos e adentrarmos em universos paralelos se comparados aos cotidianos. É uma oportunidade de sairmos fora de uma rotina estabelecida.

Viajar é caminhar por terras e paisagens diferentes das usuais. Geralmente nos coloca diante do diferente em muitos sentidos.

 
 
 
   
   
 
 

Houve, especialmente, no século XIX uma verdadeira febre por viagens em busca de paisagens naturais e explorações. Há registros muito interessantes que fizeram a respeito do Brasil.

De acordo com Teresa Isenburg (1900-15), a imagem de Lineu, no que diz respeito ao recolhimento e classificação, foi seguida por muitos e, dessa forma, houve uma espécie de “febre” em busca de uma diversificação na botânica, além das fronteiras da Europa. Dispensável dizer o quanto a América Latina oferecia em termos de variedades e, sobretudo, novidades. Além disso, as narrativas que envolviam viagens e descobertas de flora e fauna faziam um grande sucesso junto ao público em geral.

Considere-se que o momento é bastante propício à difusão de livros e outros gêneros impressos, como por exemplo, na área da literatura, os gêneros conto e romance. Há um novo modelo de subjetividade que emerge e, consequentemente, exige uma outra produção literária. O romance é um dos primeiros gêneros que mostra o indivíduo, muitas vezes, em sua interioridade, assim como um fruto de um meio sócio-econômico que o determina.

Além disso, houve, não somente na área da botânica, uma verdadeira busca pela classificação em várias áreas, como por exemplo, na área filológica. A classificação dava uma ordem e um lugar para as coisas em geral.

Stradelli parte de Manaus através do Rio Negro. Avança pela floresta Amazônica por intermédio, inclusive, do Rio Branco, o Acre e outros lugares. Registra em suas memórias a grande diversidade da fauna e flora brasileiras, assim como alguns aspectos da vida dos indígenas que habitavam os lugares. Seus registros contêm imagens fotográficas.

Bossi possui uma perspectiva um pouco diferente de Stradelli. Agiu por conta da autoridade imperial e percorreu, à época, a denominada província de Mato Grosso através de rios.

Relata, principalmente, a diversidade vegetal e animal. Suas observações tendem a uma análise bastante detalhada e técnica, visto que deveria apresentar um relatório bastante objetivo ao governo imperial.

Por intermédio dos recursos textuais e de linguagem empregados por Stradelli e Bossi, propõe-se alguns questionamentos: até que ponto os naturalistas estavam preocupados em registrar com maior ou menor exatidão suas observações a partir do que viam, considerando-se o contexto do século XIX? Os registros não são ficcionais, logo, há um comprometimento para com a verdade. Tal comprometimento estaria claro? Em que medida isso foi possível? Até que ponto uma linguagem rica de elementos literários compromete a veracidade do que foi narrado?

  2. Stradelli: considerações importantes
 

Ermano Stradelli nasceu em Borgotaro (Itália), em 1852, e morreu em Manaus no ano de 1926. Além de registros escritos, deixou também muitas fotografías dos lugares pelos quais passou no Brasil durante suas explorações.

O primeiro registro de Stradelli iniciou-se a partir de sua saída de Manaus, no dia primeiro de janeiro de 1888. Contudo, para os propósitos deste estudo, nos deteremos em sua viagem de 1889, quando o naturalista parte de Manaus, através de matas e florestas do Rio Branco.

Ao principiar o relato reproduz, em discurso direto, ou seja, em forma de diálogo, uma conversa com o major Ernesto Jaque Ourique, com o intuito, de alguma forma, de valorizar o que vai fazer, ou seja, para enfatizar o caráter de aventura que o aguardava, visto que falaram sobre as dificuldades de uma expedição.

Enfim, Stradelli parte de Manaus:

O Presidente da Província colocou à nossa disposição uma lancha a vapor da flotilha de guerra, e a 10 de maio [1889], às 3:30 zarpamos, deixando para tras a cidade de Manaus, como que reclinada sobre a margen do rio, perdendo-se num longo trecho de graciosas casas escondidas entre o verde das palmeiras e dos manguezais, entre os avanços de sua antiga selva distante, lá no fundo seguindo as mil ondulações do terreno, como que fugindo aos beijos de fogo de seu sol ardente. (Stradelli, 1990, p. 230)

Depreende-se do texto em questão detalhes de horário e data, ao mesmo tempo em que o autor não persegue a objetividade de uma descrição. Note-se que o naturalista se refere à cidade de Manaus a partir de uma perspectiva subjetiva. Refere-se à cidade de Manaus usando de imagens metafóricas para dar maior exatidão daquilo que pretende passar ao leitor.

Predomina no texto do naturalista italiano o gênero textual narrativo, mesclado a grandes descrições. Tal fato significa que o autor, muitas vezes, não está preocupado com a objetidade total do que lhe parece, mesmo porque opina, com frequência, a respeito do que vê e observa, como, por exemplo, no seguinte trecho:

No dia onze às 6:43 recolocamo-nos a caminho, e à noite, estivemos em Tanapessassu, de onde partimos novamente na manhã do dia 12 e chegamos à noite em Airão. Airão está em festa, em honra – segundo me diz um dos festeiros – ‘do glorioso santo Elias’. Ontem, ergueram o ‘mastro’ e depois de amanhã será o banquete, com o que terminará a festa, e a eleição do juiz, da juíza e dos mordomos para o ano que vem.Estas festas são, para mim, uma das coisas mais características do país; sobretudo no interior, onde a civilização ainda não tolheu seu caráter semipagão, e onde as tradições indígenas despontam aqui e ali a todo instante. Populações abandonadas  quase absolutamente a si mesmas, formadas pela fusão das raças indígenas, ninguém saberia calcular por quanto tempo; no rebaixamento moral, em que se encontram, seria de surpreender se fosse o contrário. (Stradelli, 1990, pp.231, 232)

 No trecho em questão há uma preocupação com datas e horários, o que ocorre em todo texto do autor, assim como uma perspectiva própria a respeito dos costumes e a moral, por exemplo.

Um ponto importante a ser considerado é o de Stradelli haver escrito a primeira parte de sua narração sem haver recorrido, sistematicamente, a anotações, como sugere: “Hoje ainda admiro minha coragem, e tremo”. (Stradelli, 1990, p. 240). Tal afirmativa significa que a primeira parte do relato foi escrita posteriormente aos acontecimentos. Nessa medida, nada garante que os fatos em si foram narrados tal como ocorreram. O afastamento temporal do que foi visto e vivido deturpa os fatos, queira-se ou não. Toda retrospecção é feita a partir do momento presente. Não há como recuperar os fatos sem o vivido após estes.

Como afirma Saramago: “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória.” (Saramago, 2009, p.18). Esta memória seria a de um tempo e de um espaço, entretanto, habita-se uma memória à qual estamos presos, visto que se trata de uma interioridade e a ela o homem está preso. Logo, não há como as descrições não terem relações com o narrador a partir de suas próprias memórias. E os fatos selecionados naturalmente possuem um significado afetivo, subjetivo. De acordo com Paolo Rossi, a memória não possui um elo somente com a o passado, mas, sobretudo, e de forma inelutável, com a identidade, e, desta forma, com a persistência em relação ao futuro. (Paolo Rossi, 2003, p. 27).

Um outro trecho também sugere que a narração de Stradelli foi feita posteriormente aos fatos:

De volta a Manaus, pouco depois voltei; o Barboza, entrementes, foi encarregado pelo governo de tentar fixar à terra e catequizar os ririchaná. Pelo que, fui diversas vezes ao Jauapiri pedindo a todos, medida, de resto necessária, desejando obter algum resultado sério. Com o índio, toda precaução é pouco, e uma imprudência pode, num instante, pôr a perder qualquer vantagem já obtida. Eis os fatos, sobre os quais talvez me detive demasiado, mas espero obter a devida vênia. (Stradelli, 1990, p. 242)

A partir dessa afirmativa, Stradelli fixa seus registros na forma de um diário. O estilo textual mescla muitos detalhes às datas. Tal fato sugere que a narração foi baseada em anotações muitas vezes bastante precisas a respeito dos fatos: “5 de junho – A boa e cordial acolhida recebida, fez com que, ao invés de partir hoje, como já estabelecido, partamos amanhã.” (Stradelli, 1990, p. 256)

Observa-se pelos tempos verbais usados pelo naturalista que as anotações são feitas a cada dia. Caso contrário, ele não anotaria que partiria somente no dia seguinte. Afinal os registros diários poderiam ter sido apenas um recurso inventado para dar maior veracidade à narrativa. Tudo indica que o naturalista, realmente, usou do recurso de anotações diárias em muitos momentos e não como um processo inventado.

  3.  Stradelli: as descrições mais frequentes
 

Em suas memórias, Stradelli estava mais preocupado em descrever o que via em relação à paisagem, como no seguinte trecho:

As cadeias da Parima e Paracaíma são invisíveis, e só do forte são vistas eventualmente a N-NE os perfis azuis das Serras dos Tucanos e do Quano Quano. O terreno do amplo vale é, segundo as observações de Haag, formado de dois estratos de argila bem distintos, o primeiro, ou inferior, de cor branca, muito ligeiramente amarelado, fino, pegajoso ao tato (tauatinga e tauá), o segundo ou superior, mais granuloso, avermelhado, contendo uma quantidade mais ou menos grande de óxido de ferro, e misturado, sobretudo nos campos, de areias dominam nas manifestações rochosas circunstantes, junto com pséfito argiloso em que se encontram mica e fragmentos de xisto. (Stradelli, 1990, p. 262)

No fragmento em referência, o naturalista italiano se detém nas descrições da paisagem e do solo. Busca detalhar a composição material do que está vendo, assim como os termos mais exatos, como, por exemplo: óxido de ferro, estrato de argila e outros contidos no trecho em questão.

Muitas vezes o autor se detém em descrições da flora, como no seguinte trecho:

A Bertholetia eccelsa ou castanheira, diversas espécies de euforbiaceae, a copaíba, o cumaru, a andiroba, nascem espontaneamente sobre suas margens, [do vale] e a salsaparrilha cresce abundante nas selvas das regiões elevadas, aos pés das madeiras mais esplêndidas para construção e stipetteria, entre as quais mencionarei apenas o procurado muirá pinima, vermelho com manchas negras regulares, o muirá piranga, de um belo vermelho com faixas negras oblongas, o muirá pixuna, negro como o ébano, o pau-rosa, com o odor da rosa, o pausetim, o pau-rainha, para não falar das numerosas espécies de itaúba, lauríneas, acapu, etc. utilizadas nas construções das chatas e embarcações menores, que servem para a navegação do rio. (Stradelli, 1990, p. 263)

Depreende-se do texto em questão o filtro do naturalista quando afirma que “mencionarei apenas” aquilo que pretende, não mencionará tudo o que vê, além do mais há o uso do etc, ou seja, há outras plantas não mencionadas por ele. Registrou aquilo que julgou importante para o seu olhar, para o seu filtro, a partir de uma perspectiva subjetiva. Tal fato nos leva a afirmar que a verdade e a fiel observação dos fatos está comprometida pelo naturalista. Sua descrição não possui uma preocupação classificatória, entretanto seleciona textualmente aquilo que observa. Enumera o que vê.

  4.  Bartolomeo Bossi
 

Bartolomeo Bossi nasceu na Ligúria (Itália), em 1817, e morreu em Nizza no ano de 1890. Durante a primeira parte de sua vida foi marinheiro no Uruguai.

 Bossi possui uma perspectiva de viagem em que especifica seus objetivos. De acordo com suas memórias, numa viagem que fez a Mato Grosso (na época chamada de província), ele declara:

Minhas inclinações de viajar, desde os primeiros anos, devo a ter abraçado a carreira de marinheiro; e cansado do mar, lancei-me aos bosques virgens, buscando impressões novas que já não encontraba na imensidão dos oceanos.O leitor não deve esperar de mim esse estilo elevado que fez a fama de tantos viajantes, mas em seu lugar encontrará a verdade desnuda, sem esses contos fantásticos que fazem duvidar de tudo, sem essas histórias que tanto entretêm e enchem muitas páginas.Apenas proponho-me descrever mina viagem, para o que possa ser útil; referirei tudo o que tiver visto e observado, tal qual se apresentaram os objetos perante meus olhos. Minhas observações, em certos ramos, carecerão das abstrações da ciência, mas em troca, não faltará exatidão. O sextante, de um lado, e a máquina fotográfica, por outro, ajudar-me-ão a revelar ao mundo o que vi e observei no espaço que percorri. (…) Este opúsculo, se algum mérito pode ter, será a exatidão rigorosa de seus pormenores, sem preocupar-me com encher os vazios literários que possam achar os que se dignem lê-lo. (Bossi, 1990, pp. 311-312).

Bossi, como se depreende do fragmento textual de suas memórias, afirma, com convicção, que vai descrever tudo o que vê e observa, ou seja, o naturalista crê, de fato, que poderá abarcar toda a verdade de maneira imparcial, visto, inclusive, afirmar que descreve tal qual as coisas se lhe apresentam. Não menciona que ele mesmo já seria um filtro. Reconhece que não possui as abstrações da ciência, contudo, declara que haverá exatidão. Outro argumento é crer que a fotografía seria uma garantia de que poderá complementar suas descrições, sempre em busca do que ele julga ser exato no que descreve.

Um outro ponto a se destacar seria aquele em relação aos vazios literários, o que nos autoriza a afirmar que para ele a literatura é vista como uma espécie de linguagem ornamental. Inclusive, condena a fantasia.

Stradelli mantém a escritura mais geral de suas memórias num estilo predominantemente narrativo, com alguns espaços para descrição, como no seguinte fragmento:

Acampamos às margens do Nóbrega. Que espetáculo tão belo! Necessito deter-me um momento, e se minhas propensões tivessem a faculdade descritiva com que os poetas idealizam os encantos da natureza selvagem, os leitores desta viagem achariam uma página de Ariosto, ou de Tasso, uma imagen de florestas encantadas onde seres fantásticos e semideusas fabulosas tecem suas intrigas e desencadeiam paixões.A agua do Nóbrega é clara como o cristal mais puro; corre sobre um leito de pedras silicosas de mil cores que se vêem através do líquido transparente. Uma floresta imensa se ergue à sua margen. A vegetação é ali gigantesca. As árvores se erguem a uma altura prodigiosa e misturam-se com as elevadíssimas taquaras as verdes palmeiras , que se entremisturam com um capricho verdadeiramente artístico sobre um solo límpido e despojado, formando às vezes um arremedo dos portais destruídos dos templos góticos; arcos-de-triunfo como so que comemoram as glórias épicas, imensos túneis, onde só se escuta a passagem dos ventos ou subterráneas catacumbas de alguma abadia da Idade Média.(…) jardins de inverno que a arte européia parece vir copiar aquí, onde os traçou a mão sublime da Providência. (Bossi, 1990, pp. 339).

Como depreende-se do texto de Bossi, há um verdadeiro encantamento do naturalista pelas paisagens que narra e descreve. Diferentemente de sua proposta de veracidade e exatidão, ele se encanta com as paisagens que vê ao longo de sua expedição. Os elementos propriamente literários que ele diz não possuir estão presentes não só no fragmento em questão, mas praticamente em todas suas memórias.

A hipérbole, um dos muitos recursos usados na literatura, ou seja, o exagero, está bastante presente quando o naturalista comenta a respeito da vegetação gigantesca, por exemlo, ou quando utiliza expressões como a altura prodigiosa, pedra de mil cores e assim por diante.

Suas comparações, e não poderia ser muito diferente, estão de acordo com seu universo europeu, conforme declara literalmente no texto.

  5. Algumas comparações entre as memórias de Stradelli e Bartolomeo Bossi
  Constata-se pelas memórias selecionadas para esta análise de Stradelli e Bossi que o primeiro possui um estilo em que busca mesclar o gênero narrativo com o descritivo. Tal escolha de discurso permite afirmar que, em relação ao gênero de sua escritura, há uma mescla de descrição,  anotações diárias e narração. Logo, não há uma unidade textual. Constata-se um relato que resulta num gênero propriamente híbrido. Seus relatos são fragmentados. Ora há a presença de elementos narrativos, ora descritivos e, muitas vezes, o naturalista recorre às anotações diárias.

Além do mais, como mostram alguns trechos de seus diários, Stradelli se mostra mais isento se comparado a Bossi. Sua linguagem é mais seca, despojada de pretensões literárias.

Bossi possui anotações que, em relação ao gênero, possuem uma unidade textual. Embora negue que possua atributos literários, não economiza hipérboles e comparações metafóricas ao longo de suas memórias. Além do mais, um outro ponto a ser destacado é o da preocupação para com a verdade.

Textualmente Stradelli não denuncia sua preocupação com a objetividade, ou seja, tal como as coisas se mostram, já Bossi reclama dessa necessidade, como mencionado em suas memórias. Bossi também não possui um estilo em que busca mesclar os gêneros narrativo e descritivo. Em seu estilo de escrever predomina o narrativo com algumas descrições. Suas narrações são literalmente cheias de juízos de valor baseados em sua vivência europeia.

Stradelli está tão preocupado com a exatidão à qual se compromete textualmente que, em diversos momentos de suas memórias, insere fotos que foi tirando ao longo de sua expedição. Em nenhum momento menciona, por exemplo, que a fotografía também é uma linguagem e que, como tal, não revela a verdade e a exatidão do que se vê. Sabe-se que a fotografía é uma linguagem e que, no caso, foi o naturalista quem escolheu o ângulo e outros elementos de subjetividade que tão bem caracterizam a linguagem fotográfica.

  Considerações finais
  Na área propriamente literária, durante o século XIX, a concepção predominante era de que seria possível, por intermédio dos recursos apregoados pelos movimentos Naturalista e Realista, ficar-se próximo aos fatos, mesmo na ficção, como, sabidamente, exemplificam romances brasileiros como O Mulato e O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, uma das principais expressões da literatura Naturalista brasileira.

Todavia, essa pretensão ao registro da verdade se mostra igualmente frágil e questionável no meio literário. Justamente ao se pretenderem isentos de subjetividade é que autores realistas-naturalistas se mostraram mais tendenciosos em suas descrições do “real”, evidentemente conduzidos por um contexto muito mais complexo do que suas pretensões e que ia além de suas opções estilísticas e literárias.

Como consequência do contexto realista-naturalista, o homem é retratado na literatura como um ser animalizado, subjugado ao instinto, por ser essa sua condição “natural”, e também ao meio e ao contexto histórico e social, sem alternativa de superação dessa condição, dado o determinismo próprio dessa abordagem. Portanto, esse é o filtro através do qual os autores desse movimento constroem as personagens e os contextos de suas obras. Percebemos assim, também na literatura, um evidente prejuízo em relação ao comprometimento com a verdade na descrição do real.

Tem-se um exemplo de destaque na obra O Mulato, de Aluísio Azevedo, inauguradora do Realismo-Naturalismo na literatura brasileira. Ainda que se trate de uma obra de crítica anticlerical e antirracista, percebemos, logo em suas páginas iniciais, marcas evidentes do tendencialismo com que o real é retratado:

 A Praça da Alegria apresentava um ar fúnebre. De um casebre miserável, de porta e janela, ouviam-se gemer os armadores enferrujados de uma rede e uma voz tísica e aflautada de mulher, cantar em falsete a “gentil Carolina era bela”, doutro lado da praça, uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por uma nuvem de moscas, apregoava em tom muito arrastado e melancólico: “Fígado, rins e coração!'' Era uma vendedeira de fatos de boi. As crianças nuas, com as perninhas tortas pelo costume de cavalgar as ilhargas maternas, as cabeças avermelhadas pelo sol, a pele crestada os ventrezinhos amarelentos e crescidos, corriam e guinchavam, empinando papagaios de papel. Um ou outro branco, levado pela necessidade de sair, atravessava a rua, suado vermelho afogueado, à sombra de um enorme chapéu-de-sol. Os cães, estendidos pelas calcadas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos, movimentos irascíveis, mordiam o ar querendo morder os mosquitos. Ao longe, para as bandas de São Pantaleão, ouvia-se apregoar: “Arroz de Veneza! Mangas! Macajubas!”. Às esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um cheiro acre de sabão da terra e aguardente. O quitandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava a sua preguiça morrinhenta, acariciando o seu imenso e espalmado pé descalço. Da Praia de Santo Antônio enchiam toda a cidade os sons invariáveis e monótonos de uma buzina, anunciando que os pescadores chegavam do mar; para lá convergiam, apressadas e cheias de interesse, as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas. (Azevedo, 1998, pp. 2-3).

O ambiente é marcado por condições ignóbeis de sobrevivência, descritas por expressões como “fúnebre; miserável; seboso; cheio de sangue; coberto por uma nuvem de moscas”. Os seres humanos são degradados, comparados a animais, em sua condição deterministicamente natural: “voz aflautada e tísica de mulher; preta velha, vergada; crianças nuas, com perninhas tortas; cabeças avermelhadas pelo sol, pele crestada, ventrezinhos amarelentos e crescidos; peixeiras, quase todas negras, muito gordas, rebolando os grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas”. As ações humanas são letárgicas, animalizadas, e as ações dos animais humanizadas: crianças “corriam e guinchavam”; “os cães, estendidos pelas calçadas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos, movimentos irascíveis”; “o quitandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava a sua preguiça morrinhenta, acariciando o seu imenso e espalmado pé descalço”.

As literaturas Realista e Naturalista buscavam menos ornamentação literária e mais objetividade. Entretanto, como é possível notar, também elas foram francamente contaminadas pelos preceitos e ideais científicos, muitas vezes extremamente tendenciosos, do século XIX.

Evidentemente que tal postura ia contra os verdadeiros valores da literatura. A literatura, conforme é sabido, depende de uma perspectiva subjetiva e, como tal, não pode render-se a conceitos aparentemente de objetividade e exatidão, até porque tais conceitos não garantem tal pretensão, conforme foi analisado nas memórias dos naturalistas italianos e no fragmento literário em referência.

Diferentemente do que se possa pensar, a rigor, a literatura ao se distanciar dos fatos tais como eles ocorreram, pode sim, por intermédio de uma perspectiva singular e particular ficar muito mais próxima da verdade e da realidade do que se imagina, como também exemplificam Deleuze e Foucault.

De acordo com Foucault (1990, pp. 51-52), a linguagem no século XVI, por exemplo, é um processo misterioso, fechada em si mesma, cheia de elementos enigmáticos que na verdade se misturam às figuras do mundo. Há uma relação de mistério, de segredo. O que a linguagem diz oculta, via de regra, algo mais. Há segredos a serem desvelados que a linguagem não diz de forma clara. Nessa perspectiva, a linguagem não é um sistema arbitrário, faz parte do mundo. Integra-se ao universo. Há uma convergência.

Nas palavras do pensador francês:

A grande metáfora do livro que se abre, que se soletra e que se lê para conhecer a natureza não é mais que o reverso visível de uma outra transferência, muito mais profunda, que constrange a linguagem a residir do lado do mundo, em meio às plantas, às ervas, às pedras e aos animais. (Foucault, 1990, p. 51).

Nessa medida, a linguagem por si é estudada enquanto um processo da natureza, assim como os animais, as plantas e as estrelas possuem analogias e suas leis obrigatórias. Nessa perspectiva, a mesma disposição epistemológica que repousa na ciência da natureza está para o estudo da gramática.

Contudo, desde o século XVII a linguagem se desliga das coisas. A linguagem permanece de um lado e as coisas de outro. Há uma ruptura. A partir desse processo, inicia-se uma representação. As palavras representam as coisas, as ideias, os conceitos. E desta maneira uma das grandes questões epistemológicas que vão surgir: até que ponto as palavras significam a verdade?

De acordo com o pensador francês, nessa medida, quanto maior o ideal de uma perspectiva predominantemente objetiva de linguagem, maior seria o distanciamento entre as palavras e as coisas. E, segundo ele, a literatura poderia atenuar tal distanciamento entre as palavras e as coisas, entre aquilo que se vê e aquilo que se escreve, que se registra. Desta forma, conclui-se, pelo exposto das análises das memórias selecionadas que, embora Stradelli use diversos recursos de registro, como anotações diárias, descrições e narrações, está, em parte, distante do que viu e do que, realmente, registrou.

Bossi declara textualmente que vai colocar no papel aquilo que vê, entretanto, perseguindo uma perspectiva objetiva de linguagem. Contudo, ao se valer de recursos propriamente literários como comparações metafóricas, distanciando-se de sua proposta de objetividade e numa visão mais subjetiva, realmente cumpre sua meta e registra com mais proximidade aquilo que testemunha, se comparado a Stradelli.

De acordo com Deleuze (1998, p. 51), os signos da arte são superiores aos outros porque buscam, essencialmente, as qualidades sensíveis do objeto. Somente os signos artísticos podem, em princípio, carregar o aspecto qualitativo de uma sensação. Diferentemente dos signos materiais, ou seja, aqueles mais objetivos, convencionais, inteligíveis. Os signos artísticos são imateriais, o que justifica que a linguagem literária possibilite a apreensão do objeto de uma forma mais abrangente, mais próxima do real, diluindo, nessa perspectiva, o possível débito da representação entre as palavras e as coisas, como também exemplifica Foucault. Não faltaram, conforme é sabido, (ver Bachelard, por exemplo), pensadores de diversas áreas que fizeram uso de recursos da linguagem literária como um mecanismo de aproximação entre objeto e representação.

Diante do exposto, os movimentos Naturalista e Realista, que predominaram durante o século XIX, estiveram distantes das intenções mais profundas da literatura, sob a ótica de Deleuze e Foucault, visto que, como já foi colocado anteriormente, buscaram uma objetividade, em termos de linguagem, assim como em termos de perspectiva, que, na verdade, distanciam a possível apreensão do objeto a que se destina a literatura.
  Referências bibliográficas
 

AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.

DELEUZE, Gilles. Proust et les signes. Paris: Presses Universitaires de France, 1998.

DELEUZE, Gilles. Le bergsonisme. Paris : Presses Universitaires de France, 1998.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

DELEUZE, Gilles. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7.  ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

ISENBURG, Teresa (org.). Naturalistas Italianos no Brasil. Tradução de Norberto de Paula Lima. São Paulo: Ícone Editora, 1990.

SARAMAGO, José. O Caderno. São Paulo: Cia das Letras, 2009.

ROSSI, Paolo. El pasado, la memoria, el olvido. Tradução de Guillermo Piro. Buenos Aires: Nueva Vision, 2003.

 

 

Ana Maria Haddad Baptista (Brasil).
Mestre e doutora em Comunicação e Semiótica; Especialista em História da Ciência; pesquisadora e professora da Universidade Nove de Julho – UNINOVE e da UNIFAI.

 

 

Márcia do Carmo Felismino Fusaro (Brasil).
Mestre em História da Ciência; Especialista em Língua, Literatura e Semiótica; pesquisadora e professora da Universidade Nove de Julho – UNINOVE.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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