REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

ANNA CAROLINA REGNER

Darwin:

o colecionador de cartas

 
EDITOR | TRIPLOV  
ISSN 2182-147X  
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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Em esta homenagem à grande figura portuguesa de Ana Luísa janeira para a História e Filosofia da Ciência, com trabalhos pioneiros não só em Portugal mas em tantas outras terras, entre as quais encontra-se a minha, Brasil, quero dar um exemplo de sua influência em mim, com uma reflexão que a ela dedico. Com a Ana Luisa despertei para o significado epistemológico do colecionismo.  Examinando-o sob a ótica da coleção das cartas darwinianas, reconheço a importância desse significado.

O motivo que me leva a explorar o espírito de Charles Darwin, o celebrado autor da Origem das Espécies  não é o fato de que ele tenha sido cientista, nem de que tenha sido o grande marco revolucionário da História Natural. Por certo quando o cientista é um “naturalista”, cresce a tendência a vê-lo como um “colecionador”, pois a História Natural tem sido sobejamente dita “classificatória”, ainda que sob tal rótulo muitas vezes se oculte um certo desdém teórico, sem que se faça jus ao enorme esforço teórico que sustenta e emerge da atividade classificatória.  Qualquer classificação requer um princípio que a oriente a determinar quais sejam as “classes” – o que necessariamente envolve um modo de ver as coisas, um catalogar ontológico e não apenas prático – e a reconhecer a pertinência a uma classe.

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
 

Charles Darwin pode, de muitas maneiras, ser visto como um colecionador, desde menino, deliciado com o “inventar nomes”, com suas pedras e seus besouros:

Ao tempo em que fui diariamente a essa escola (refere-se à escola do Rev. G. Case, na primavera de 1817), “meu gosto pela história natural e, mais especialmente, por colecionar, estava bem desenvolvido. Eu tentava inventar nomes para as plantas e coletar toda a sorte de coisas: conchas, selos, francos, moedas e minerais. A paixão por coletar, que leva um homem a se tornar um naturalista sistemático, um virtuoso ou um miserável, era muito forte em mim e era claramente inato, uma vez que nenhuma de minas irmãs ou meu irmão tinham tal gosto. (Darwin, 1993, p.22-23).
 
Com respeito à ciência, continuei coletando materiais com muito zelo, mas muito a-cientificamente – tudo que me era importante era dar um nome a um novo mineral, e dificilmente tentei classificá-los. Devo ter observado insetos com algum cuidado, pois quando eu tinha dez anos (1819) fui a Plas Edwards, na costa de Wales, por três semanas e fiquei muito interessado e surpreso ao ver um grande inseto hemíptero, preto e vermelho, muitas mariposas (Zygæna),e uma Cicindela,os quais não são encontrados em Shropshire. Quase tomei a decisão de começar a colecionar todos os insetos mortos que eu pudesse encontrar, pois, consultando minha irmã, conclui que não estava certo matar insetos a fim de fazer uma coleção. A partir da leitura do livro de White, Selborn, tive muito prazer em observar os hábitos dos pássaros e mesmo fazer algumas anotações sobre o tema. Na minha simplicidade, lembro-me de surpreender-me pelo fato de todos os cavalheiros não se tornarem ornitologistas (Darwin, 1993, p. 45)
 
Depois, no ponto decisivo de sua vida, à bordo do Beagle, na juventude de seus 21 anos, foi o colecionador das evidências geológicas, zoológicas e botânicas que sustentariam a radical mudança no modo de ver a natureza das coisas que inaugura com sua teoria da seleção natural e seu desejo de contribuir para com a ciência:

A viagem no Beagle foi, de longe, o evento mais importante em minha vida e determinou toda a minha carreira; (...) Tenho sempre acreditado que devo à viagem o primeiro treinamento ou educação que realmente tive de minha mente. Fui levado a atentar com cuidado a vários ramos da história natural e assim meus poderes de observação foram aperfeiçoados, embora já fossem bem desenvolvidos. (Darwin, 1993, p. 76-77)

Ao longo de todo o seu trabalho, a paciência, o cuidado, a organização, o “faro” para com os fatos decisivos, tudo isso unido a uma fértil imaginação e habilidade argumentativa pontuariam todo o seu trabalho. Em sua Autobiografia, diz:

Minha dedicação tem sido tão grande quanto poderia sê-lo na observação e coleção de fatos. O que é mais importante, meu amor pela ciência natural tem sido permanente e ardente. Esse amor puro tem sido, porém, muito auxiliado pela ambição em ser estimado pelos meus colegas naturalistas. Desde minha tenra juventude tive o mais forte desejo de entender ou explicar qualquer coisa que eu observasse, isto é, em agrupar todos os fatos sob algumas leis gerais” (Darwin, 1993, p. 141)

Contudo, não é ainda com esses testemunhos do espírito colecionador de Darwin que quero aqui me ocupar. Fascina-me, em particular, o Darwin colecionador de cartas. Ainda inconclusa, a publicação da coleção completa de cartas de Darwin pela Cambridge University Press, sob a editoria de Frederick Bukhardt, Duncan M. Porter e outros, encontra-se já no volume XVIII e apenas atinge a correspondência até o ano de 1870. Desde seus 12 anos de idade Darwin colecionava cartas.  Espírito de colecionador, colecionador de lembranças, de informações, de afetos? Escrever e ler cartas eram parte de sua rotina. Como nos relata seu filho Francis Darwin: “Ele tomou como regra guardar todas as cartas que recebia; esse fora um hábito que aprendera de seu pai e que dizia lhe ser de grande utilidade”. (Darwin, 1958, p. 78).

Nas Reminiscências sobre seu pai (Darwin, 1958, p. 78-79), Francis conta que ele não deixava sem resposta nem mesmo as cartas mais tolas. Seus correspondentes mereciam-lhe consideração e muitas vezes pedia ao filho, quando lhe ditava alguma carta, que cuidasse e escrevesse bem, pois tratava-se de um estrangeiro. Como pensava que suas cartas poderiam ser lidas sem atenção, dizia-lhe para chamar a atenção do leitor a uma oração importante, iniciando com um parágrafo óbvio. Sentado à sua poltrona, próximo à lareira, à tarde, escrevia suas cartas que, quando longas, eram ditadas a partir de um esboço às costas de um manuscrito ou de páginas de prova de textos.

O legado epistolar de Charles Darwin é muito grande. Há que aqui fazer um recorte. Minha proposta é a de que tomemos a leitura de suas cartas como chave para recompor a rica trajetória intelectual que se refletiu objetivamente em seu trabalho e na formação de seu perfil como pesquisador. Isso envolve deixar de lado as singelas e cativantes cartas que, em 1821 e 1822, escreve a um “querido amigo” que não foi identificado, onde registrava suas apreciações do comportamento familiar, suas relações com o irmão, as irmãs e suas “cobranças” quanto à higiene e aos estudos, bem como seus afetos que iam além do círculo familiar, seus planos para a organização de seus instrumentos e de suas “relíquias” e esboço de máquina a ser construída.  Também passarei ao largo de suas mais ou menos acaloradas cartas de caráter político e anti-escravagista, tanto em sua juventude a bordo do Beagle quanto em sua maturidade, como na correspondência com Asa Gray sobre a Guerra de Secessão, bem como passarei ao largo de suas carinhosas cartas a irmãs, irmão Erasmus e à noiva e esposa Emma Darwin, de suas cartas sobre suas precárias condições de saúde, de suas sofridas cartas sobre a perda da filha Annie, ou de suas quase prosaicas cartas comerciais e de administração de bens. Vale destacar, que minha opção não deixa também espaço para um tema também fascinante de que trato em outro lugar, sobre a questão da controvérsia interna que o acompanhou durante toda a sua vida entre Deus e Ciência, desde as cartas trocadas com a noiva Emma Wedgewood em 1838 até suas cartas de 1880 a 1881.   De fato, a sua correspondência é o manancial mais rico para se examinar essa questão, que se mostra bastante complexa e escapa a uma rotulação simplista de Darwin ateísta ou materialista. Perseguindo por meio da fluência do estilo epistolar, a formação e discussão de sua teoria, e em presenciar, pelo fio de sua correspondência, aquelas qualidades de Darwin que o tornam um dos mais distinguidos colecionadores cientistas, assim divido o tema.

   I Prática e atitude de um Colecionador.
 

Contribuindo à formação de seu espírito, antes de ida para estudar em Edimburgo, merece destaque a correspondência mantida com seu irmão Erasmus (1822-1825), quando este estudava medicina em Cambridge, mostrando o interesse de ambos pelo seu “laboratório de química” em um galpão na propriedade da família em Shrewsbury.  Erasmus enviava de Cambridge instruções a Charles, que incluíam diretrizes e desenhos para a remodelagem do laboratório. Informava sobre a compra de instrumentos e da aquisição de minerais que levaria a Charles. Animadamente, descrevia os experimentos realizados nas aulas em Cambridge e orientava Charles quanto a experimentos que este deveria realizar. O gosto pela atividade científica crescia não apenas através de coleções, mas do hábito de experimentar.

Dos tempos de Edimburgo (1825-1827), sobressaem as cartas das irmãs, zelosas por sua formação literária e moral. No período de sua formação em Cambridge (1828-1831), o interesse de colecionador persiste e de forma vigorosa, sobretudo de insetos,além do prazer de suas incursões geológicas. Em carta a seu primo William Fox, de 12 e 30 de junho, 29 de julho, 30 de agosto e de outubro de 1828 diz estar morrendo aos poucos por não ter com quem falar sobre insetos e, com desenhos feitos pela irmã de insetos por ele capturados, dá início a uma série de consultas práticas que fará a Fox, um privilegiado consultor de Darwin pelo resto da vida. Em 1829 inaugura-se uma característica que será marcante em seu trabalho: a de criar uma rede informativa de dedicados correspondentes. Além de Fox, John Maurice Herbert é chamado a colaborar com espécimes de insetos, em cartas de 13 de setembro e 3 de outubro de 1828.

  II. O colecionador antecipa as evidências de sua teoria.
 

De 1831 a 1836 tem lugar o famoso episódio que viraria de modo decisivo a vida de Darwin: a viagem a bordo do Beagle. O Beagle zarpou  em  27 de dezembro de 1831 e regressou em 02 de outubro de 1836. As cartas que antecedem a viagem, de agosto a dezembro de 1831, descrevem as vicissitudes e a benévola conspiração de fatos que determinariam seu destino: a recusa de outros naturalistas ao convite para acompanharem a viagem, a indicação de Henslow, o aceite de Fitz-Roy (com base em características da Fisiognomia), a decisiva interferência de seu tio Josiah Wedgwood para persuadir seu pai a concordar com a viagem. De sua correspondência durante a viagem, vemos, de início, seu deslumbramento diante dos trópicos. Em carta a seu pai de 8 de fevereiro a 1º. de março de 1832, diz:

É completamente inútil dizer qualquer coisa sobre a paisagem. – tão proveitoso quanto explicar as cores a um cego seria explicar a alguém que nunca saiu da Europa a total dessemelhança de uma paisagem Tropical. (Burkhardt, 2009, p.61)

Não vou entrar em êxtase outra vez, mas é um grande mérito eu não enlouquecer de puro prazer (Burkhardt, 2009, p.64)

As cartas desse período introduzem-nos a questões e enfoques que serão fundamentais ao desenvolvimento posterior da teoria darwiniana da seleção natural.

  O suporte mútuo de diferentes áreas da História Natural.
 

Um deles é sua atenção às mais diversas áreas da História Natural, ainda que a Geologia talvez seja então o ponto de elaboração mais madura. O grande correspondente durante a sua viagem foi A. J. S. Henslow. Nas cartas a Henslow de julho e agosto de 1832, Darwin explicitamente refere-se à sua “coleção”, numerada, de espécimes geológicos e  pede informações. Quanto a plantas, lastima sua ignorância, que não lhe permite decidir sobre coletar aquilo de que, segundo suas palavras, nada sabe:

É decididamente entristecedor andar pela floresta gloriosa, em meio a tamanhos tesouros & sentir que todos são desperdiçados em mim (Burkhardt, 2009, p.66)

Considera, contudo, sua coleção de plantas dos Abrolhos quase completa, envia 4 frascos de animais conservados em álcool, e aguarda a finalização de mais 4 para enviá-los à casa. Faz uma enorme coleção de aracnídeos no Rio de Janeiro e de besouros pequenos, acondicionados em caixas de pílulas. Sempre presente é sua preocupação em aproveitar ao máximo as embalagens antes de remetê-las para casa. Encantou-se com o colorido e elegância das planárias e com a “maravilhosa organização” de algumas espécies marinhas da mesma família. Em Montevidéu, coleta toda a sorte de animais, incluindo cobras e escorpiões. Assombra-se com a descoberta de 2 planárias vivendo sob pedras secas e pede a Henslow que pergunte a L. Jenyns se Jenyns já ouvira falar disso.

De Montevidéu, em carta de 26 de outubro a 24 de novembro de 1832, faz de Henslow seu declarado confidente:

Como não tenho ninguém com quem conversar sobre minha sorte e azar na coleta, estou decidido a dar vazão a tudo contigo. (Burkhardt, 2009, p.68).

Lastima-se que um dos colecionadores do governo francês o tenha precedido e que, “muito egoisticamente”, teme “que ele consiga a nata de todas as coisas boas antes de mim”.

  A sucessão geológica das formas orgânicas.
 

Relata sua sorte com os ossos fossilizados e sua atenção à localização geológica dos mesmos. Com detalhes, faz sua descrição e diz a Henslow:

Se eles te interessarem o bastante para que os desembrulhes, estarei muito curioso por ouvir alguma coisa a seu respeito: - É preciso teres cuidado, nesse caso, para não confundires os lotes – Eles estão misturados com conchas marinhas, que me parecem idênticas às que existem na atualidade. Mas, desde a época em que foram depositados em seus leitos, diversas mudanças geológicas ocorreram na região. - (Burkhardt, 2009, p.69)

Em carta posterior a Henslow, de 11 de abril de 1833, a questão de tais fósseis é retomada:

Estou convencido, por minha conversa com o descobridor, de que o Megatherium enviado à Soc. Geol. pertence à mesma formação dos ossos que mandei para casa & que foi lançada ao rio dos penhascos que compõem as margens: o professor Sedgwick talvez goste de saber disso: dize-lhe que continuo a me sentir grato por aquela breve excursão ao País de Gales. (Burkhardt, 2009, p.73)

Segue a discussão em carta enviada a Henslow em março de 1834, onde Darwin mostra-se apreensivo com a “limpeza de todos os ossos” feita pelo sr. Clift, temendo que os números gravados sejam perdidos, uma vez que parte dos ossos fora encontrada em um leito de cascalho com conchas recentes e, parte, em um leito muito diferente, juntamente com ossos de uma Cutia, gênero aparentemente existente então apenas na América,

... e seria curioso provar que algum do mesmo gênero co-existiu com o Megatherium; esse e muitos outros aspectos dependem inteiramente da cuidadosa preservação dos números. (Burkhardt, 2009, p.73)

Em Porto St. Julian encontrei alguns ossos perfeitos de um animal grande, imagino que um mastodonte – (...) – A propósito, esse Mastodonte & o Megatherium, não tenho dúvida, foram irmãos nas antigas planícies. (Burkhardt, 2009, p.74-75)
 
A idéia de comunidade de descendência com modificação já estava a esgueirar-se no pensamento de Darwin[1]. Retornando à carta a Henslow de 26 de outubro a 24 de novembro de 1832, ainda que de modo tosco, faz-se presente a suposição do caráter intermediário exibido por alguns pássaros e anfíbios entre diferentes raças de pássaros e de anfíbios, respectivamente:
 
Há um pobre exemplar de um pássaro que, a meus olhos não-ornitológicos, parece ser uma feliz mistura de cotovia com pombo & narceja... Suponho que se revele um pássaro conhecido, embora me tenha desconcertado. – Capturei uns anfíbios interessantes; um belo Bipes; um novo Trigonocephalus, que une lindamente em seus hábitos o Crotalus e o Viperus: e uma porção de novos Sáurios (até onde vai meu conhecimento) (Burkhardt, 2009, p.69)
 
Em Carta a Henslow de 24 de novembro de 1832, fala de novos e curiosos gêneros de crustáceos pelágicos, a interessantes zoófitos, de uma flustra com estrutura anômala, e a uma família de animais pelágicos, semelhantes a Medusas, mas altamente organizados:

Examinei-os repetidamente &, com certeza, a julgar por sua estrutura, seria impossível situá-los em qualquer ordem existente. – Talvez a Salpa seja o animal mais próximo, embora a transparência do corpo seja praticamente a única característica que eles têm em comum.(Burkhardt, 2009, p.69-70)

Em carta de março de 1834, fala-lhe claramente de uma nova espécie de avestruz e aponta às distinções em relação a outras:

mas o que tem maior interesse geral é a existência incontestável (ao que me parece) de uma outra espécie de avestruz, além do Struthio Rhea (...) As diferenças encontram-se principalmente na cor das penas & nos flocos das pernas, que têm penas abaixo dos joelhos; {e na} nidificação & distribuição geográfica .(Burkhardt, 2009, p.76).

  O papel da Geologia.
 

A geologia encanta-lhe. Na carta a Henslow de março de 1834, diz-lhe:

Ao me intrigar com a estratificação &c, sinto-me inclinado a dar toda a atenção a tuas grandes ostras & teus megatérios ainda maiores. – mas, depois, ao escavar uns belos ossos, pergunto-me como pode algum homem esfalfar seus ossos martelando granito. (Burkhardt, 2009, p.75).

E logo se queixa e pede ajuda:

A propósito, não tenho uma só idéia clara sobre a clivagem, a estratificação e as linhas de sublevação. – Não disponho de livros que me digam muita coisa, & o que eles dizem, não posso aplicar ao que vejo. (...) Será que podes lançar alguma luz em minha mente, dizendo-me qual é a relação que há entre a clivagem e os planos de deposição? (Burkhardt, 2009, p.75)
 
Apesar de tais “restrições”, seu grande atrativo à medida em que a viagem avançava, foram os relatos de suas notas, observações e teorizações em Geologia. À sua irmã Susan escreve de Valparaíso, em 23 de abril de 1835, relatando o sucesso de sua excursão pelos Andes até Mendoza:

(a viagem) foi muito dispendiosa, entretanto; (mas) tenho certeza de que meu pai não a lamentaria, se soubesse quão profundamente ela me agradou. – foi mais do que prazer: não consigo expressar o deleite que senti ante uma finalização tão estranha de toda a minha geologia na América – do s. – eu mal conseguia dormir à noite, pensando no meu trabalho do dia. .(Burkhardt, 2009, p.87).

Seus estudos levam-no a supor – “convicção de sua mente” - que a imensa massa da cadeia das Cordilheiras é tão moderna que chega a ser contemporânea das planícies da Patagônia. Comenta:

se esse resultado for comprovado, será um dado importantíssimo na teoria da formação do mundo.(Burkhardt, 2009, p.88)

Mas, numa carta a Henslow de 12 de agosto de 1835, revê sua avaliação:

Desde aquela ocasião viajei por terra de Valparaíso a Copiapó e vi um pouco mais das Cordilheiras. – Algumas de minhas concepções geológicas foram alteradas depois da última carta. – Creio que a massa superior de estratos não é tão contemporânea quanto supus. (Burkhardt, 2009, p.91)

E propõe uma teoria em termos de uma cadeia de vulcões, expelindo lavas que depois formaram ilhas, a partir das quais produziram camadas de um conglomerado bruto.

  A visão da complexidade ecológica.
 

As cartas de Darwin, relatando as coleções enviadas a Inglaterra, guardam todas as referências a plantas, animais e fósseis. Inclusive a água mineral das fontes de água quente de Cauquenes, no sopé dos Andes, foi cuidadosamente acondicionada e remetida, como conta a Henslow em carta de Valparaíso, em 1834.

A importância das questões de distribuição geográfica, que serão centrais na Origem das espécies, já aparece em sua correspondência, como acontece em sua carta a Susan acima referida:

Como sabe, é freqüente encontrar plantas das regiões Árticas em latitudes inferiores, a uma altitude que produz um grau idêntico de frio. (Burkhardt, 2009, p.88)

A importância da teorização.

No que concerne à formação dos corais, seu teorizar não requereu que revisasse posições. Em carta a sua irmã Caroline, de 29 de abril de 1836, diz:
O tema da formação dos corais tem sido para mim, neste último semestre, um assunto de especial interesse. Espero poder expor alguns fatos de um ponto de vista mais simples & coerente do que aquele em que eles tem sido até hoje considerados. (Burkhardt, 2009, p.95-96)
 
O zelo pela ciência.

A importância que a Geologia passa a assumir ao longo de sua viagem claramente transparece em um trecho de carta dirigida a a sua irmã Caroline, de 29 de abril de 1836, em que seu afã geológico vem associado a uma questão metodológica que lhe será central  em sua trajetória intelectual, a busca incansável pela clareza:

Minha ocupação consiste em rearranjar velhas notas geológicas: um rearranjo que, em geral, consiste em reescrevê-las por completo. Estou apenas começando a descobrir a dificuldade de expressar as idéias no papel. Enquanto isso consiste unicamente em descrições, é muito fácil.; mas, quando o raciocínio entra em jogo, estabelecer uma ligação apropriada, {ter} clareza e uma fluência moderada são, para mim, como já disse, uma dificuldade da qual eu não fazia idéia. - (Burkhardt, 2009, p.97)

Seu zelo pela ciência e pelo reconhecimento de trazer uma contribuição à ciência já desponta com força no longo período epistolar que reflete sua viagem. Susan Darwin relatou a Darwin em carta de 22 de novembro de 1835 as palavras de Sedwick sobre Darwin dirigidas a Samuel Butler, diretor da escola freqüentada por Darwin em sua infância:

Ele ... já mandou para casa uma Coleção que suplanta qualquer elogio. – para ele, foi a melhor coisa do mundo ter partido na Viagem de descobrimento – Havia um certo risco que viesse a se transformar em um homem ocioso: agora, no entanto, seu caráter se firmará &, se Deus poupar sua vida, ele terá um grande nome entre os naturalistas da Europa (Correspondence, v. 1, p.469)

Em carta à irmã Susan de 04 de agosto de 1836, ao final da viagem, Darwin comenta:

Tuas duas cartas estavam repletas de boas notícias: - especialmente as expressões que me disseste que o Prof. Sedgwick usou sobre minhas coleções. – confesso que elas são profundamente gratificantes. – Confio que ao menos parte delas venha a se confirmar verdadeira, & que eu possa agir como penso agora: - que o homem que se atreve a desperdiçar uma hora do tempo não descobriu o valor da vida. – O fato do Prof. Sedgwick chegar a mencionar meu nome traz-me a esperança de que ele me auxilie com a sua orientação, da qual, em muitas questões geológicas, sinto-me muito necessitado ... (Burkhardt, 2009, p.98)

Podemos encontrar na correspondência de sua viagem a bordo do Beagle, muito das questões centrais com que se ocupará ao longo de sua vida, além de certas características típicas de seu modo de investigação futura, tal como a constituição de redes epistolares de informação. É curioso, então, depararmo-nos com a escassa referência, em sua correspondência, feita a Galápagos – cuja visita será apontada na Origem das Espécies como determinante de suas buscas explicativas e de seu objeto. Mais surpreendente se torna em vista de sua declarada expectativa pela chegada a Galápagos, carta a Caroline Darwin de 19/julho – 12/agosto de 1835 (Correspondence, vol I, p.458), tendo mesmo dito a Fox, carta de 9-12/agosto de 1835 (Correspondence, vol I, p.460) que seria o ponto mais esperado de sua viagem. Dessa visita, em suas cartas, ficou um breve registro de que trabalhou duro, referindo-se a sua atenção à flora, aos pássaros, sem qualquer detalhamento, e fazendo alguns comentários sobre sua geologia – carta a Henslow de janeiro de 1836 (Correspondence, vol I, p.485).

Mas tal escassez de informação pode redundar  em um argumento a favor de uma visão já evolucionista. Para um naturalista que recomenda não se basear na memória, conselho dado em seu Retrospecto, tanto na versão original como na da 2a edição de seu diário, Darwin devia sentir-se bastante confiante quanto à sua capacidade de guardar as impressões, que deveriam ser suficientemente fortes e claras, dos fenômenos de Galápagos. Não é improvável pensar que a força e clareza dessas impressões fluíssem de seu encaixe num esquema já delineado em seus suportes, na mente de Darwin. Este esquema, que será claramente estruturado no Notebook de 1837, foi evolucionista. Não parece provável que Darwin não houvesse de imediato registrado suas observações sobre Galápagos por não lhe parecerem então suficientemente importantes. Ele freqüentemente registrava as mais comezinhas observações. Uma possível razão para sua inicial omissão de registros poderia ser a atenção que, em 1835, estava devotando a seu trabalho geológico, Isso por si não reduz o papel de uma visão evolucionista e pode bem inserir-se na perspectiva de um procedimento que será característico na Origem: o mútuo suporte provido por evidências e considerações geológicas e biológicas.

  III. O estabelecimento de um programa de pesquisa.
 

Em suporte a essas minha considerações, assinalo outro indicador importante. Ao regressar à Inglaterra, Darwin abre importantes coleções de notas, seus Notebooks de 1836 a 1844 que, bem arranjadas, constituem o programa de investigação levado a cabo por Darwin ao longo de sua vida e que resultará em seus diversos livros e memoires. Em particular, em julho de 1837 abre o Notebbok sobre Transmutação, onde encontramos todos os principais pontos de sua teoria, com fartas referências aos fenômenos de Galápagos, inclusive com a clara consciência de Darwin quanto a suas demandas revolucionárias na Cosmologia, Filosofia da Mente e Metafísica. No entanto, a correspondência desse decisivo período teórico, cala sobre o seu projeto como um todo e atém-se antes a comentários sobre a publicação dos volumes referentes à viagem do Beagle e questões mais ou menos pontuais sobre o material coletado em sua viagem e enviado a naturalistas em seus diversos campos para identificação e avaliação.  Aqui e ali aparecem perguntas postas a seus interlocutores sobre fenômenos da maior pertinência ao desenvolvimento de suas idéias – como sobre aquisição de instintos, de distribuição geográfica de plantas, variedades e espécies. Esse trabalho colocou-o em comunicação com os principais naturalistas de então, mas apenas a um reduzido grupo (Lyell, Henslow, Jenyns, Waterhouse e Fox), como mostra sua correspondência, Darwin disse que estava coletando todos os fatos sobre a origem e variação das espécies (carta a Henslow de novembro de 1839).

A Charles Lyell, em carta de 30 de julho de 1837, fala de seu interesse pela questão das espécies, da forma americana de pássaros e répteis das ilhas de Galápagos (e pergunta-lhe o que tem observado de seu trabalho com conchas), da arbitrariedade das classificações dos naturalistas, dos resultados das observações feitas por Darwin e Owen sobre cinco grandes Edentatas de Bahia Blanca, sobre como viveram e se extinguiram, sobre a não relação do grosso dos animais com a exuberância da vegetação:

Que mistério extraordin. é a causa das mortes desses inúmeros animais, tão recentemente & com tão poucas alterações físicas (Burkhardt, 2000, p.108)

A Henslow indaga sobre distribuição geográfica de plantas (10 de novembro de 1839), a William Fox sobre cruzamentos entre todas as aves e animais domésticos (25 de janeiro de 1841) e, com rigorosos detalhes, envia a Henry Thomas de la Beche (7 de fevereiro de 1842) um questionário sobre cruzamentos entre cavalos, gado, cães, gatos, aves, porcos e caprinos domésticos e selvagens – quanto a cores, tamanhos etc. Darwin introduz no seu círculo de fontes de informação a criadores e agricultores. Em particular, suas mais importantes cartas sobre seleção artificial foram trocadas com William Herbert, Dean de Manchester. A seleção artificial aparece como um ponto importante de suas preocupações, bem como as possíveis aplicações de sua teoria, notadamente na busca de definições mais claras de espécie e das relações entre as espécies. Seu grande interlocutor a esse respeito fora G. R. Waterhouse – o que entender por sistema “natural”? Para Darwin, a comunidade de descendência com modificação era a resposta correta.

De um modo geral, porém, a correspondência desse período nem de longe retrata o fervilhar das idéias do programa darwiniano. Esse silêncio, contudo, vem ao encontro da cautela que Darwin teve em postergar até 1859 a publicação de sua teoria que tinha seus elementos básicos já em seus Notebooks de 1836 a 1844 e sua estrutura geral nos Ensaios de 1842 e, mormente no de 1844. A esse longo período – de 1842 a 1859 - corresponde uma farta correspondência em que Darwin trabalha minuciosamente as evidências e o detalhamento teórico que marcarão a extraordinária força persuasiva de sua teoria.

Em 1842, Darwin escreve seu primeiro Ensaio, onde sua teoria é exposta em suas linhas gerais, mas já segundo a estrutura que exibirá na Origem das Espécies, exibindo, inclusive, as principais dificuldades que lhe seriam levantadas e o encaminha,mento para seu tratamento. Não há referência ao ensaio em sua correspondência. Seguindo seu trabalho, em 1843 assumem importância dois novos interlocutores: George Robert Waterhouse e Joseph Dalton Hooker. Hooker, a quem conheceu em setembro de 1843, passará a ser o grande correspondente de Darwin no período que vai de 1843 até a publicação da Origem e pelo resto de sua vida. Com Waterhouse (26 de julho de 1843) discute as relações numéricas e qualitativas entre os seres vivos existentes e as formas fossilizadas:

Seria preciso um capítulo para defender a idéia de como é provável que a geologia nunca tenha revelado & nunca venha a revelar mais do que uma dentre um milhão de formas que existiram ...  (Burkhardt, 2009, p.127-128)

Hooker será seu grande consultor em botânica, com questões que se iniciam na carta de 13 ou 20 de novembro de 1843. Henslow remetera a Hooker a coleção de plantas colhida na viagem do Beagle. Darwin expõe-lhe sua principal atenção ao caso das flores alpinas da Terra do Fogo, das plantas de Galápagos e seu paralelo com a flora de Santa Helena. De aí em frente, intensa será a correspondência e a amizade entre ambos. Em 1844, uma farta correspondência com Hooker foca em especial questões de distribuição geográfica.

Em 1844, Darwin conclui uma versão bem mais detalhada de seu Ensaio de 1842 e, em carta de 5 de julho de 1844 à sua esposa Emma, pede-lhe que, em caso de sua morte, tome as providências necessárias para a publicação do mesmo:

Minha. Querida. Emma.

Acabo de terminar meu esboço de minha teoria sobre as espécies. Se, como creio, minha teoria for verdadeira, & se ela for aceita até mesmo por um só juiz competente, isso será um passo considerável na ciência.

Portanto, redijo isto, para a eventualidade de minha morte súbita, como meu mais solene e último pedido, que estou certo de que irás considerar da mesma forma que se eu o houvesse incluído legalmente em meu testamento: (...)(Burkhardt, 20009, p.133)

  IV O desenvolvimento do programa.
 

O fato de que o esboço de sua teoria sobre as espécies estava terminado, conforme o diz, serve de parâmetro para avaliarmos, a partir da correspondência que vai de 1844 a 1859, a contribuição da correspondência de Darwin para recompormos a teoria darwiniana. Questões relativas a distribuição geográfica de plantas e animais parecem ter sido um ponto que Darwin considerava chave para o fortalecimento de sua teoria, bem como, a partir de 1854, o será a questão dos meios de transporte. A respeito dessas questões, Hooker será o grande interlocutor, mesmo para indicar outros informantes, em um massivo e contínuo trânsito epistolar. Com Hooker Darwin também discute, detalhadamente, formações geológicas e teorias a respeito (ambos divergem quanto à aceitação da teoria de Forbes!), bem como critérios para a classificação (27 de junho e 07 de julho de 1854):

Com respeito a “superioridade”e “inferioridade”, minhas idéias são apenas ecléticas & não muito claras. Parece-me que o desejo inevitável de comparar todos os animais com os homens, como seres supremos, gera uma certa confusão (Burkhardt, 2000, p.130)

Mas Darwin também dirigia-se a outros especialistas, como a Henry Denny (7 de novembro de 18444), perguntando sobre semelhanças e diferenças entre parasitas de pássaros em diferentes partes do mundo(Burkhardt, 2009, p.137-138). A J. D. Dana (8 de maio de 1852). Solicita doação de morcegos ao Museu Britânico.A Jenyns (12 de outubro de 1844) pergunta sobre os obstáculos e períodos da vida pelos quais o aumento das populações é limitado e comunica-lhe:

Tenho continuado a ler regularmente e a compilar dados sobre a variação dos animais e plantas domésticas & sobre a questão do que são as espécies; disponho de um corpo de dados formidável & creio que posso extrair algumas conclusões sólidas. A conclusão geral a que tenho sido levado lentamente, partindo de uma convicção diametralmente oposta, é que as espécies são mutáveis & que as espécies co-aliadas são co-descendentes de troncos comuns. Sei o quanto me exponho à censura por essa conclusão, mas, pelo menos, cheguei a ela de maneira bastante honesta e deliberada.

Não publicarei nada sobre esse assunto por vários anos. (Burkhardt, 2009, p.137 – grifo meu)

Questões metodológicas de diferentes abrangências, com reflexos nas teses da teoria darwiniana de seleção natural, também são discutidas no período que vai de seu Ensaio à primeira publicação da Origem. Em carta a Hooker de 6 de maio de 1847, Darwin responde ao que chamou de “ataque selvagem” de Hooker à teimosa e tola insistência de Darwin de que nossas plantas carboníferas teriam vivido em águas marítimas rasas. O interessante dessa resposta está em que ela nos revela a identificação de questões metodológicas com questões de abordagem ou mesmo de viés de investigação, à luz de certas suposições[2] (entre essas, Darwin questiona a legitimidade de inferências do presente ao passado):

Acaso é uma tese segura dizer (dizer) que, pelo fato de as algas serem quase as únicas, ou as únicas plantas marinhas submersas, outros grupos não tiveram anteriormente membros com esses hábitos (?); nos animais, esse argumento não seria conclusivo, como eu poderia ilustrar através de muitos exemplos; - mas estou perdendo a cabeça, quero apenas defender-me até certo ponto, & não sofrer as conseqüências de te atacar (Burkhardt, 2009, p.147)

Preocupações metodológicas referentes a uso de aparelhos adequados também são foco de sua atenção, como aparece em sua carta a Henslow de 01 de abril de 1848, em que lhe recomenda os microscópios produzidos por um determinado manufatureiro como sendo “maravilhosamente” superior a qualquer outro (Burkhardt, 2009, p.155). Questões metodológicas também se revestem da condição de princípios gerais e estratégicos de investigação, como quando se propõe a examinar com isenção ambos os lados da questão, favorável e desfavorável à sua tese. Assim dirige-se a Hooker em 25 de setembro de 1853, comentando seu trabalho sobre a flora da Novas Zelândia:

Muitos de teus argumentos me parecem muito bem enunciados: &, até onde vai minha experiência, a maneira franca como discutes o assunto é ímpar. O conjunto todo me está sendo muito útil, quando quer que eu venha a me dedicar a meu livro, embora algumas partes sejam uma ducha fria para mim, pois faz algum tempo que decidi fornecer os argumentos favoráveis a ambos os lados da questão (tanto quanto me for possível), em vez de defender apenas o lado da mutabilidade (Burkhardt, 2009, p.189).

Esse será um dos procedimentos / estratégias argumentativas chave que Darwin utilizará na elaboração e defesa do argumento da Origem.

Não apenas as discussões de enfoques, instrumentos e princípios explicativos são cobertos por preocupações metodológicas, mas também a formação de hábitos de pesquisa. Em especial, o treinamento requerido pelos seus estudos sobre as cracas, que o consumiram por oito anos, requereu uma habilidade e disciplina práticas, além da dedicação, muitas vezes difícil, a um tópico pequeno, se pensarmos na abrangência da temática darwiniana. Todavia, serviu também para exemplificar a feliz combinação, em Darwin, da grande visão condutora, e do detalhado exame das suas partes, o qual assegura a tal visão uma validade objetiva. Em ambos os níveis de investigação, a constituição de uma rede de dedicados correspondentes-informantes foi vital para o sucesso do empreendimento darwiniano. Syms Covington, por exemplo, foi um daqueles decididamente incorporados na rede por força do estudo sobre as cracas.

A abordagem crítica.

Em 1853 entra no cenário dos correspondentes e amigos de Darwin Thomas Huxley, a quem Darwin solicita uma resenha de seu trabalho sobre as cracas (13 de abril de 1853). Em 1854, discute com Huxley a resenha que este fizera dos Vestiges of the natural history of creation. Nesta oportunidade, revela-se uma avaliação que Darwin faz da situação de sua própria teoria que vai além de uma avaliação de procedimentos ou teses parciais e a situa na trajetória das “grandes respostas” à questão maior da origem das espécies:

Mas é possível que eu não seja um juiz imparcial, pois sou quase tão pouco ortodoxo a respeito das espécies quanto os próprios Vestígios, embora tenha a pretensão de não ser tão pouco racional. (Burkhardt, 2009, p.193)

Essa avaliação de algum modo antecipa àquela que será acrescida à 5ª. edição da Origem através de sua “Notícia histórica”.

As cartas trocadas com especialistas mostram que igualmente procedem as buscas de “evidência” para pontos específicos da teoria.  Para tratar da questão dos meios de transporte de plantas e animais a locais distantes a partir de um centro de origem – questão característica da teoria darwiniana em oposição à creacionista - Darwin recorre a diversos estudiosos e observadores. A Walter Baldock Mantell (17 de novembro de 1854) recorre para saber da existência ou não, na Nova Zelândia, de grandes blocos de pedra, especialmente angulosos, que houvessem sido transportados por grandes distâncias. Examina com Hooker o caso dos gêneros aberrantes, isolados em seus territórios (11 de dezembro de 1854). Realiza experimentos sobre transporte a grandes distâncias de sementes em águas marinhas e sua posterior germinação e os descreve minuciosamente a Hooker (07 e 13 de abril de 1855), bem como discute com ele hipóteses sobre o meio de transporte (05 de junho e 05 de julho de 1855). William Fox continua prestando-lhe valiosas informações sobre animais domésticos e sobre o possível transporte de ovos através de água salgada (07 e 17 de maio e 25 de junho de 1855). William Tegetmeir passa a integrar sua equipe de colaboradores, no que concerne ao estudo das aves domésticas. Sabe-se quão importante será o argumento sobre a origem dos pombos domésticos que Darwin apresentará na Origem para a defesa de sua teoria.

A partir de abril de 1855, Darwin inicia uma intensa correspondência com Asa Gray, botânico norte-americano e que será um dos grandes adeptos da teoria darwiniana. Dele vale-se Darwin para informações sobre a flora americana (25 de abril, 08 de junho e  24 de agosto de 1855, 14 de janeiro de 1856). A carta de Darwin a Asa Gray de 5 de setembro de 1857 terá um grande valor estratégico para a defesa da paternidade darwiniana da teoria da seleção natural. Nela, Darwin oferece um resumo de sua teoria, antes de receber o famoso ensaio de Wallace envolvendo a seleção natural e ameaçando a longa paternidade darwiniana da idéia. A favor de Darwin, contou o fato de, desde há muito, Lyell e Hooker conhecerem sua teoria e da exposição de seus pontos principais feita a Asa Gray nessa correspondência. De fato, os anos de 1858 e 1859 foram os mais agitados de sua correspondência intelectual.

  V A pressão para a publicação.
 

De 1856 a 1858 estava Darwin trabalhando sobre o seu “big book” sobre a seleção natural, quando, em 18 de junho de 1858, recebe uma carta de Wallace, que, por razões óbvias, seria o grande “blow” do trabalho de Darwin. Na mesma data, Darwin escreve a Lyell:

Cerca de um ano atrás recomendaste-me a leitura de um artigo de Wallace dos anais, o qual te havia interessado &, como eu estava escrevendo para ele e sabia que isso lhe daria muito prazer, contei-lhe esse fato. Hoje ele me enviou o texto anexo & pediu-me para que eu o encaminhasse a ti. parece-me muito digno de ser lido. Tuas palavras, quando disseste que alguém se anteciparia a mim, confirmaram-se num grau incomum. (...) Portanto, toda a minha originalidade, importe ela no que importar, estará, se vier algum dia a ter algum valor, não venha a se deteriorar, uma vez que o trabalho inteiro consista na aplicação da teoria arruinada, muito embora meu Livro (Burkhardt, 2009, p.255).
 
Em meio a esse torvelinho aniquilante, é também do próprio Darwin que, uma semana após, em carta de 25 de junho de 1858 dirigida a Lyell, surge a indicação de uma solução salomônica:

Lamento muitíssimo incomodar-te, ocupado como és, com um assunto tão meramente pessoal. mas se me deres tua opinião ponderada, estar-me-ás prestanto um serviço maior do que qualquer outro homem, pois tenho plena confiança em teu julgamento e tua honradez.

Não há nada no esboço de Wallace que não tenha sido escrito com muito mais detalhes em meu esboço transcrito em 1844, & lido por Hooker há nuns doze anos atrás. Há mais ou menos um ano enviei um resumo de minhas idéias, do qual tenho uma cópia, a Asa Gray (em virtude da correspondência quanto a diversos pontos), de modo que poderia, com toda a veracidade, afirmar e provar que não tirei nada de Wallace. Eu ficaria extremamente feliz, neste momento, em publicar um esboço de minhas concepções gerais, com cerca de dez páginas. Mas não consigo convencer-me de que poderia fazê-lo de maneira honrada. (...) Se eu pudesse fazer uma publicação de maneira honrosa, declararia ter sido induzido a publicar um resumo agora (7 muito me agradaria ter a permissão de dizer que estava seguindo o teu conselho de muitos anos atrás), pelo fato de Wallace haver-me remetido um esboço de minhas conclusões gerais – Diferimos apenas quanto ao fato de eu ter sido levado a minhas concepções a partir do que a seleção artificial faz com os animais domésticos. Eu poderia remeter a Wallace uma cópia de minha carta a Asa Gray, para lhe mostrar que não roubei sua doutrina. Mas não sei dizer se fazer agora a publicação não seria vil e mesquinho; essa foi a minha primeira impressão, & eu certamente teria agido com base nela, não fosse por tua carta. – (...)

A propósito, espero que não faças objeção a enviar esta carta e tua resposta a Hooker (...).(Burkhardt, 2009, p.256-257).

  VI As sucessivas edições e lapidações.
 

O desfecho dessa situação é um dos fatos mais conhecidos da história da ciência: a leitura conjunta dos papers de Wallace e Darwin à Linnean Society (sem nenhuma repercussão), encaminhados por Hooker e Lyell em 30 de junho de 1858 e lidos em 10 de julho. Foram, realmente, tempos tormentosos para Darwin. Nesses mesmos dias, perdia sua filha mais nova com febre escarlatina. Outros membros da casa contraem a doença. Falece sua irmã mais moça.

Em 1859, é publicada a Origem das espécies de Charles Darwin, como um abstract do seu “big book”, com estrondoso sucesso de vendas, também registrado em suas cartas. Em março concluíra seu o último capítulo e em outubro finalizaria a leitura das provas gráficas. Uma intensa correspondência com seu editor John Murray tem lugar, onde se pode também ver as ponderações sobre o título, que finalmente é decidido como On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of the favoured races in the Struggle for Life. Em 24 de novembro o livro estava à venda e imediatamente estava esgotado.

Em dezembro preparava-se uma nova e revisada edição, publicada em 07 de janeiro de 1860. A segunda edição sofreu poucas alterações. Uma dessas foi a inclusão, no capítulo conclusivo, de um comentário à Origem feito por uma autoridade religiosa (Charles Kingsley), segundo o qual é muito mais digno da Divindade criar formas primevas capazes de se desenvolverem em todas as formas temporal e espacialmente necessárias, do que a cada vez intervir de novo para preencher lacunas.

A batalha, contudo, pela aceitação da teoria recém começava. Mesmo seus mais ardorosos apoiadores, como Thomas Huxley e Asa Gray tinham suas reservas. 1860, como bem o demonstra sua correspoindência, será marcado, de um lado pela reação de Darwin às críticas e críticos. De outro, por um empenho em projetos que pudessem, sobretudo pela clara ilustração do poder explicativo e vigor metodológico da teoria, levar seus oponentes a melhor compreendê-la. E isso significaria aumentar o número de seus adeptos.

Como também vemos na Origem das Espécies, as cartas revelam as diferentes estratégias de Darwin no tratamento das objeções que lhe são feitas. Darwin parece bastante sensível à acusação de falta de cientificidade. Seu antes admirador, Adam Sedwick, em carta de 24 de novembro de 1859, dirige-lhe crítica “mortal” para os padrões de cientificidade à época:

Li o seu livro mais com pesar do que com prazer (..) Você desrtou – após um começo naquela estrada de toda a sólida verdade física – do verdadeiro método da indução e acionou uma maquinaria tão selvagem como a da locomotiva do Bispo Wilkins que nos levaria à Lua. (Correspondence, vol 7, p. 396)

A uma crítica desse teor comentou Darwin em carta a Henslow de 8 de maio de 1860:

Posso perfeitamente entender Sedwick ou qualquer outro dizer que a seleção natural não explica amplas classes de fatos; mas isso é muito diferente do que dizer que me afastei dos corretos princípios da investigação científica” (Correspondence, vol 8, p. 195)[3]

Darwin também se desagradara da resenha de Asa Gray em que a seleção natural foi apresentada como uma hipótese e não, uma teoria, ao que respondeu a Asa Gray (carta de 18 de fevereiro de 1860): “Parece-me que uma hipótese desenvolve-se em uma teoria apenas por explicar uma ampla classe de fatos” (Correspondence, vol 8, p. 91). E agradou-lhe sobremaneira a afirmação de Henry Fawcet de que sua teoria estava de acordo com a exposição de John Stuart Mill do método da investigação científica. Assim entendeu Darwin o elogio: inventar uma hipótese e, se ela explicar muitos fenômenos, tornar-se-á real, diz em carta a C.J. Bunbury, 9 de fevereiro de 1860 (Correspondence, vol 8, p. 76).

Do ponto de vista de dificuldades de conteúdo, essas foram variadas, de onde Darwin tirou que sua teoria não havia sido compreendida. As dificuldades que lhe foram levantadas versavam desde a questão da origem da vida (Darwin: separa esse problema do problema da origem das espécies) até a da multidão de formas simples existentes (Para Darwin: a seleção natural não leva necessariamente ao progresso). Trata-se de um período de intensa correspondência entre Darwin e Lyell, a cujos questionamentos Darwin responde pacientemente e com detalhe, certo de que, além de poderoso aliado, Lyell queria realmente entender a seleção natural. Huxley insistia em como explicar, pela seleção natural, a esterilidade interespecífica. A questão da esterilidade continuava a ser um objeto de reflexão para Darwin. Muitas dificuldades eram levantadas a partir da evidência geológica disponível, embora houvesse mais geólogos “convertidos” à teoria darwiniana do que outros naturalistas. E, a partir de março, Darwin começa a tabular e categorizar os “convertidos”, tal como os apresenta a Hooker em carta de 3 de março de 1860:

Geólogos                Zoólogos e paleontólogos         Fisiólogos             Botânicos
Lyell                       Huxley                                    Carpenter             Hooker
Ramsay                  J. Lubbock                               Sir H. Holland        H. C. Watson
Jukes                      L. Jenyns (em boa parte)                                     

Asa Gray (em
H. D. Rogers            Searles wood         alguma parte)
Twaines
                                 (Correspondence, vol 8, p. 116)

Porém, a dificuldade que parecia ser a mais séria para aceitação da teoria era a das suas implicações para o caso do homem. Bem conhecida é a polêmica havida com Samuel Wilberforce, bispo de Oxford, em que Huxley defendeu, com toda energia e com os aplausos dos jovens estudantes, a posição darwiniana. Hooker, por sua vez, testemunha ocular do evento, deliciaria Darwin com sua detalhada carta (2 de julho de 1860) relatando o evento (Correspondence, vol 8, p. 270).

O convencimento da comunidade científica. Mas o peso das críticas e o temor de que a teoria não viesse a convencer a comunidade científica pesava sobre Darwin. Fazia-se necessário uma ação positiva a respeito. Uma delas consistia em obter a publicação de resenhas que dessem a conhecer a teoria, tal como suas cartas o revelam. E foi assim que Darwin empenhou-se em ver publicadas na Inglaterra os ensaios que  Asa Gray publicara com sucesso nos Estados Unidos. Seus ensaios empenhavam-se em mostrar que a operação da seleção natural era compatível com a crença de um Desígnio na Natureza. Darwin pensava que Asa Gray entendia o argumento darwiniano e que, além disso, seus ensaios seriam um antídoto aos ataques teológicos a seu livro na Inglaterra.  A outra estratégia estava em influir a nova geração de naturalistas com o  vigor teórico e experimental da teoria. Essa seria a tarefa para seus projetos botânicos, nos quais reencontraria seu caro tema da fertilização de plantas por insetos, o que o levou a seu cuidadoso trabalho com as orquídeas. O projeto crescia de interesse à medida que passava de um gênero a outro de orquídeas.  Outro projeto botânico era o do estudo das prímulas. Esses estudos ofereciam aos naturalistas diferentes aspectos dos maravilhosos mecanismos adaptativos das plantas e mostravam como suas estruturas podiam ser interpretadas à luz da teoria da seleção natural. Como as cartas trocadas entre Darwin, Hooker e Oliver indicam, a novidade de abordagem via seleção natural para a pesquisa em botânica surpreendeu favoravelmente mesmo os especialistas. Em anos seguintes, o trabalho em botânica serviu como modelo de investigação em história natural, ilustrando graficamente o poder conceitual e metodológico da teoria.

Em que pesem o interesse de Darwin por tais projetos, ele também estava “convencido de que deveria trabalhar sobre variação e não se distrair com interlúdios”, como aparece em sua carta a Lyell de 24 de novembro de 1860 e a Daniel Oliver de 20 de outubro de 1860 (Correspondence, vol 8, p. 491 e p.440). Havia que dar seguimento aos temas do projeto maior, o “big book” que fora interrompido pelo “abstract”.  No entanto, em novembro John Murray o chama para uma terceira edição da Origem e Darwin propõe-se a revisar o texto, incluindo os criticismos que sofrera e o novo material de suporte à sua teoria. A terceira edição aparecerá em 1861. Todas as edições subseqüentes, até a sexta e última revisada pelo próprio Darwin, em 1872, incorporarão os resultados de sua constante investigação, argumentação, discussão e busca de evidências, todas documentadas em sua cartas e traduzidas nas cuidadosas revisões de cada nova edição.

Na terceira edição foi acrescida uma tabela de “adições e correções à segunda e terceira edições”, além de um “esboço histórico do progresso de opinião sobre o origem das espécies”. O acréscimo desse esboço permitirá uma comparação da abordagem darwiniana com outras abordagens, ressaltando, de um lado, sua novidade própria e, de outro, colocando a teoria darwiniana no ápice do referido progresso.

As cartas desse período fornecem um entendimento detalhado do método de resolver problemas de Darwin e transpiram confiança na teoria, com a crescente redução dos temores anteriores. As resenhas são mais favoráveis e as arestas vão sendo aparadas. Darwin consegue publicar os ensaios de Asa Gray na Inglaterra. Asa Gray é um dos seus mais expressivos correspondentes do período. Assim lhe diz (carta de 26-27 de fevereiro de 1861): “creio que seu panfleto prestará a mim e à seleção natural um grande bem” (Correspondence, vol. 9, p. 39), ainda que Darwin mesmo não esteja convencido da providência de que fala Gray.

Parte importante do trabalho de Darwin, revelado pelas cartas de 1861 será de natureza política: como estruturar interesses e influências de modo a garantir e fortalecer o espaço à sua teoria. Organizou uma cuidadosa lista de pessoas e instituições às quais enviar os ensaios de Gray. Um número maior de especialistas começava a examinar com mais cuidado as implicações da teoria. O apoio que sua metodologia encontrara na filosofia da Stuart Mill, bem como o aval que obtivera de John Herschel para sua teoria (excetuado o caso do homem), somava o suporte de lideranças epistemológicas da época, garantindo à teoria sua pretensão de “cientificidade”. Certamente, o apoio que mais entusiasmara Darwin era o apoio de Henry Walter Bates, recém chegado à Inglaterra, após 12 anos de investigações na Amazônia, anunciando que logo publicaria material trazendo evidência empírica à teoria da seleção natural.  Opositores como Richard Owen estavam sendo batidos por partidários como Huxley. Huxley pública e exacerbadamente apontou aos erros de interpretação de Owen quanto a fatos anatômicos.

Cresce a aceitação da teoria darwiniana. A botânica continuou sendo um dos maiores e frutuosos interesses de Darwin. Os projetos iniciados em 1860 por distração tornaram-se programas científicos de pesquisa que renderiam muitos frutos à aceitação de sua teoria mais ampla. Todavia, o tempo gasto com tais atividades não fizeram espaço para o estudo da variação que lhe cabia realizar para dar continuidade ao grande projeto da origem das espécies. Em 1862 persistem seus projetos botânicos, com a publicação de dois papers e de um livro sobre polinização de orquídeas e o incremento de seus experimentos que ele ou seus colaboradores realizam, fartamente noticiados em suas cartas.  A promoção de sua teoria também cresce, seja pelos próprios trabalhos de Darwin, seja pelas conferências de Huxley sobre o tema ou pelas explicações que nela Bates encontra para fenômenos tais como o mimetismo. Em carta de 15 e 20 de novembro de 1862, Hooker comenta com Darwin:

aludem a você em não menos do que em 3 dos papers apresentados na Linnean Society! – Não creio que você seja vaidoso, mas realmente penso que você teria o direito de sê-lo (Correspondence, vol. 10, p.527)

A crescente divulgação e aceitação de sua teoria não significa, contudo, superação das dificuldades. Um bom exemplo a esse respeito, testemunhado em suas cartas, é a posição de Huxley que, embora advogando a favor da teoria darwiniana, continua cobrando-lhe uma prova definitiva, uma produção experimental de uma espécie nova “fisiológica”. Réplicas e tréplicas ao argumento de cada um deles povoaram boa parte da correspondência de Darwin nesse período. Em carta a Huxley de 18 de dezembro de 1862, diz Darwin:

Você diz que a resposta a variedades quando cruzadas serem plenamente estéreis é “absolutamente negativa”. Você quer dizer que Gärtner mentiu ... quando mostrou que esse era o caso com verbascum & com o milho ... Kölreuter mente quando fala sobre as variedades de tabaco (Correspondence, vol.10, p. 611)

A correspondência com Huxley foi uma das motivações para que Darwin dedicasse especial atenção a seu trabalho experimental. Sua visão sobre a questão da esterilidade foi afetada por e, ao mesmo, estimuladora de seu trabalho sobre plantas dimórficas, que começara com o estudo da prímula no ano anterior e a respeito do qual manteve significativa correspondência com Hooker e com John Scott. Esse último, dotado de habilidades experimentais e teóricas aplaudidas por Darwin e por Hooker, fora por Darwin comissionado para realizar uma série de experimentos. Em carta a Hooker de 12 de dezembro de 1862, diz que suas noções sobre hibridismo foram se tornando bastante modificadas pelo seu trabalho sobre dimorfismo, sentindo-se então fortemente inclinado a crer que a esterilidade fosse uma qualidade selecionada para manter as espécies incipientes distintas (Correspondence, vol.10, p. 598). Seus estudos sobre dimorfismo envolveram também sua correspondência com Asa Gray. Os resultados desse trabalho deram seus frutos em diferentes momentos que se estenderam até 1864.

Seu livro sobre Orquídeas transformou-se em novo sucesso de vendas. Darwin foi cuidadoso na organização da lista de botânicos na Inglaterra e exterior que o receberiam. Esse sucesso foi importante para a Origem das espécies porque foi a primeira exposição detalhada do poder da seleção natural. Em carta a Hooker de 14 de março de 1862, diz:

Achei que o estudo das orquídeas foi eminentemente útil em mostrar-me como quase todas as partes da flor são co-adaptadas para fertilização por insetos e, conseqüentemente, o resultado da seleção natural (Correspondence, vol. 10, p. 115)

Asa Gray (carta de 2-3 de julho de 1862), diz que o livro foi um movimento nos flancos do inimigo (Correspondence, vol. 10, p. 292), uma maneira de induzir os céticos a aceitarem a verdade da seleção natural pela porta dos fundos. 

Em que pese a crescente receptividade de suas idéias no exterior, Darwin buscava  atingir audiências ainda maiores. As cartas de Claparède revelam a impopularidade das idéias de Darwin na França, enquanto crescia sua aceitação na Alemanha. A tradução francesa estava quase pronta e Claparède, exasperado com as rebeldias da tradutora, Clemènce Royer, recomendava a Darwin que escolhesse um outro tradutor para quando seu grande livro sobre as espécies estivesse pronto. Na Alemnha, a tradução da Origem estava praticamente esgotada. Crescia sua penetração na Alemanha, como nos mostram seus correspondentes. Entre os estrangeiros, interessava-lhe contar com o apreço de De Candolle a seu trabalho. Enviara também cópias de seu livro sobre Orquídeas a Naudin, poi embora dispensasse os métodos e alegações de Naudin, como mostra –o em cartas a Hooker, procurava contar com sua ajuda para entender hibridização. Asa Gray continuava sendo seu grande apoiador nos Estados Unidos, com quem Darwin, afora as matérias científicas,  trocava polêmicas  cartas sobre a escravidão e a guerra americana.

  VII. O programa continua.
 

 As investigações e discussões de Darwin sobre temas aparentemente bem estabelecidos na Origem não cessavam. A propósito do trabalho de Bates, Hooker e Darwin terminaram o ano engalfinhados na discussão sobre o papel das condições externas na variação e produção das espécies. Hooker criticara Darwin por não insistir o bastante sobre a incapacidade da seleção natural para produzir variações. Darwin tornava-se cada vez mais interessado na reação sensitiva das plantas. Também prosseguiam as discussões e as coletas de evidência sobre o Período Glacial, com as recentes evidências favoráveis das montanhas dos Cameroons (descoberta de plantas temperadas a alturas tão baixas como 4.000 pés acima do nível do mar).  Em carta a Hooker de 9 de maio de 1862 (Correspondence, vol 10, p. 187, ele diz:  “Jurarei que o período glacial no mundo é tão verdadeiro quanto o evangelho; então, deve ser verdadeiro”! E a descoberta do Archaeopteryx engrossava as evidências favoráveis à teoria darwiniana, em que pese os percalços de sua descrição, como será discutido em 1863.

Novas investigações também floresciam! Darwin começara a investigar as reações do sistema nervoso dos animais a vários venenos, narcóticos anestésicos e relatava que  crescia a sua convicção de que a Drosera deveria ter uma matéria difusa similar à matéria nervosa dos animais. Relatava seus resultados em cartas a Fox e Hooker e pedia a este sua opinião. Realizara mais experimentos com plantas sensitivas e insetívoras, dizia ter mais prazer com esses experimentos do que com seu trabalho sobre as espécies, mas teve que deixá-lo de lado para concentrar-se, novamente, em seu livro sobra variação (que seria publicado em 1868). Seus trabalhos estavam sendo apreciados pelos botânicos a ponto de merecerem de Hooker - a quem Darwin considerava como “melhor do que qualquer um no mundo” e a pessoa cuja opinião Darwin mais valorizava (carta de 14 de outubro de 1862  - Correspondence, vol 10, p. 460) - o seguinte comentário: “você é fora de questão o melhor observador e experimentador em Fisiologia que a Botânica já teve (carta de 28 de junho de 1862 - Correspondence, vol 10, p. 275 ).

Sua precária saúde, se interferia com seu trabalho, também protegia-o de compromissos mais desgastantes, como dos ataques em reuniões públicas que lhe era desfechado pelo seu menos apreciado inimigo, Richard Owen, como o declara em carta a Asa Gray de 9 de outubro de 1862 (Correspondence, vol.10, p. 331). Os estreitos laços entre seu mundo familiar e afetivo e o de seu trabalho transparecem de suas cartas aos filhos  George e William. Mesmo à distância, continuavam observando, desenhando plantas e calculando sementes – preciosas informações para seu pai!

  VIII. Preocupação com ressonâncias da teoria.
 

Em 1863, na segunda metade, a correspondência e o volume do trabalho de Darwin decaíram bastante. Sua saúde estava abalada. As cartas da primeira metade gravitam em torno da questão da origem do homem. Revelam um Darwin preocupado com as publicações de livros de dois amigos, Lyell (Antiquity of Man) e Huxley (Evidence as to man’s place in nature) – como se refletiriam em sua própria teoria?  Darwin alegrou-se com as similaridades apontadas por Huxley entre o cérebro do homem e dos grandes macacos. Na mesma carta em que se congratulava com Huxley, referia-se ao desapontamento causado pela excessiva cautela de Lyell em expressar qualquer juízo sobre as espécies ou a origem do homem, a quem Darwin também reprovaria em carta pessoal (carta a Huxley de 26 de fevereiro de 1863 – Correspondence, vol 11, p. 180-181; carta a Lyell de 6 de março de 1863 – Correspondence, vol 11, p.207). Lyell defende-se dizendo que, se fizesse afirmações mais fortes, muitos se rebelariam contra elas e Asa Gray afirma que o livro de Lyell traria muitos à nova maneira de pensar sobre as espécies, enquanto o livro de Huxley os assustaria (carta de 20 de abril de 1863 – Correspondence, vol 11, p.336) Em resumo, Darwin responde a Gray que a indecisão de Gray e de Lyell a respeito da mudança das espécies por descendência o “desespera”. (carta a Asa Gray de 11 de maio de 1863 (Correspondence, vol 11, p.402-403)

As descobertas de fosséis apresentados como humanos (Moulin-Quignon) deixou a sociedade vitoriana mais ansiosa sobre as origens do homem e acendeu a atenção sobre os argumentos de Darwin sobre as espécies. As discussões esquentam mais ainda com o descontentamento causado a Darwin, Falconer e outros pela descrição feita por Owen de um dos achados méis significativos para a teoria darwiniana, o do Archaeopteryx A descrição omitira alguns elementos essenciais. Em sua correspondência com Falconer a respeito, Darwin pensava que agora talvez uma importante lacuna havia sido preenchida no registro fóssil (carta a Falconer, 5-6 de janeiro de 1863 -  Correspondence, vol 11, p.11-12). Os ataques de Owen a Darwin continuaram, bem como as réplicas. Muitos diziam respeito à linguagem usada por Darwin em certas passagens da Origem, que soavam como linguagem bíblica, e a críticas desse tipo as respostas de Darwin serviram para esclarecer as posições de ambos, estabelecer claramente sua posição e a de Lamarck sobre a transmutação (carta ao Athenaeum de 18 de abril de 1863 - Correspondence, vol 11, p.324-325), bem como para pressionar Lyell a tornar público até onde estaria disposto a ir. Hooker pediu a Darwin para não mais escrever ao Athenaeum, pois lhe desagradava o modo como tal proceder trazia a ciência ao público (carta de hooker de 7 de maio de 1863 - Correspondence, vol 11, p.387).

Enquanto temia pelo efeito negativo junto ao público de tais disputas sobre sua teoria, crescia sua aceitação em círculos científicos influentes, não apenas nacionais mas estrangeiros, como a correspondência o mostra.  Apesar disso, Darwin teve negada sua indicação para a Medalha Copley da Royal Society, que lhe será dada no ano seguinte. Em seu lugar, ganhou-a Adam Sedwick, ao que Darwin atribuiu a influência de Richard Owen! Mas, por certo, um dos votos que lhe foram contra foi o de Edward Sabine, Presidente (carta de Sabine a John Phillips de 12 de novembro de !863 - Correspondence, vol 11, p.668-669).

Dentre as discussões retomadas, persiste a crítica de Huxley a Darwin, pedindo “prova” para a emergência de uma nova espécie por seleção natural, fornecendo um caso em que duas formas da mesma espécie de animal ou planta, produzida por cruzamento seletivo, ou fossem incapazes de cruzar ou dessem lugar a híbridos estéreis. Mas Darwin continuava discordando de Huxley quanto a tomar a esterilidade como um bom teste para espécies, com base no que Darwin conhecia da domesticação. E Darwin relembrara Huxley dos trabalhos de Gärtner. O criticismo de Huxley tivera, porém, um impacto positivo, renovando o ímpeto de Darwin a continuar seu trabalho sobre plantas dimórficas. Em 1862 publicara o artigo sobre Prímula e, em 1863, sobre o Linum. Multiplicavam-se e refinavam-se os experimentos para mostrar experimentalmente se havia uma “seleção para” a esterilidade, ou se, como dissera na Origem,  a esterilidade “incidia em outras diferenças”. Seus experimentos botânicos estreitaram seus laços de trabalho com John Scott, também interessado em hibridização. Quando, mais adiante, John Scott, frustrado com a sua posição de jardineiro deseja uma melhor oportunidade para seu trabalho experimental, Darwin intercedeu junto a Hooker para que Scott obtivesse uma posição na Índia, tentando convencer a Hooker a auxiliá-lo, em uma intensa correspondência.

Seu trabalho com orquídeas continuava, bem como o de fertilização por polinização, e envolvia uma rede epistolar de troca de informações. Suas observações botânicas contribuíram para seu entendimento sobre cruzamentos, o que daria lugar a vários artigos mais tarde publicados, bem como aos livros Forms of Flowers e Cross and self-fertilization, publicados em 1870. Hooker, Asa Gray and Oliver continuam sendo seus correspondentes preferenciais para assuntos de botânica. Em 1863, seu interesse pelo movimento das plantas ganha um tratamento de estudo sistemático, dando, de certo modo, seqüência a seu trabalho sobre as reações sensitivas das plantas e energia à sua troca de correspondência. De resto, Darwin continuou a contar com a preciosa ajuda de seus filhos. Sua filha Henrietta lia e comentava os livros de Huxley e Lyell. E, junto aos filhos, também colaborara em uma petiçãocontra o uso de armadilhas de aço para prender animais e o sofrimento que lhes causavam.

Muito dos seus trabalhos com plantas se justapuseram ao seu grande projeto do livro sobre variação, sobretudo quando escrevia o capítulo sobre “cruzamento e esterilidade”. Mas o trabalho em seu todo continuava inconcluso. As cartas de 1864 mostram um dos períodos mais acirrados de sua luta contra a doença, a colaboração da sua família com seu trabalho científico (em particular, de seu filho William Erasmus, que o ajudou com observações e desenhos de formas dimórficas), e os esforços de Darwin, como um amigo dedicado, tentando achar uma posição para John Scott, um investigador promissor. 1864 é um período de muito trabalho botânico, a depreender-se não só de suas cartas, mas do paper sobre Lythrum, que seria apresentado à Linnaean Society de Londres em 1865. Deu continuidade ao trabalho com orquídeas, e prosseguiu em seu trabalho dobre as leis de variação em animais domésticos e cultivo de plantas, que só viria a ser publicado em 1868.

As cartas de 1864 mostram como o trabalho botânico de Darwin enriqueceu a evidência para a teoria da seleção natural. Entre outros, os resultados sobre dimorfismo e graus de fertilidade entre variedades quando cruzadas será absorvido na 4ª. edição da Origem de Espécies (1866). Seu principal correspondente nesse período foi Hooker. Darwin o considerou como o maior dos velhos amigos e a opinião com a qual lhe era mais importante contar (carta a Hooker de 26 de novembro de 1864). Com ele Darwin discutiu muitas das perguntas sobre plantas trepadeiras, dimorfismo, hibridação, fertilidade, efeitos da época glacial, e até mesmo critério por distinguir entre espécies e variedades. Com seus vários "correspondentes especializados" Darwin formou uma rede muito efetiva que provou ser extremamente útil ao seu  trabalho botânico e experimental. As cartas igualmente ilustram a penetração internacional crescente da teoria de Darwin na correspondência de 1864 com Ernest Haeckel, que entusiasticamente informou a influência de Darwin na Alemanha, e com Benjamim Walsh que se acrescentou aos defensores de Darwin na América. A correspondência de Darwin também permite uma comparação entre a aceitação de Darwin na Alemanha e na França, bem como entre partidários de "gerações mais jovens" e "mais velhas".  

Também de suas cartas aprendemos outras facetas da ciência. Os meandros  envolvidos na questão da indicação de Darwin para a Medalha Copley ensinam-nos sobre aspectos políticos na produção dos méritos da ciência. Em 1864, esta medalha, o reconhecimento britânico mais alto para realização científica, foi dada a Darwin depois de lhe ter sido negada em anos anteriores. Olhando para a sua correspondência do período, relatórios de reuniões e procedimentos, vemos o quanto de relações de poder, prestígio de campos de pesquisa e instituições, gerações e preconceitos, bem como o papel de circunstâncias ocasionais interferem nas avaliações científicas.  As bases para darem a Darwin o lisonjeiro prêmio omitiram o reconhecimento público do trabalho internacionalmente conhecido de Darwin na Origem de Espécies!

 As cartas de 1865 revelam um amplo espectro de interesses e discussões. Seu principal projeto era a redação de A variação de animais e plantas sob domesticação. Suas condições de saúde atrasam o projeto. Não obstante, ele continuou trocando informação com uma rede mundial de correspondentes, cientistas e criadores, sobre vários assuntos: plantas trepadeiras, fertilização (de orquídeas, em particular), reprodução, variação, herança, distribuição geográfica, e classificação.  A maioria dessa informação foi trazida à 4ª. edição da Origem de Espécies (1866) e à Variação de animais e plantas sob domesticação. para Variação (1868). Em 1865, Darwin publicou seu elogiado paper sobre plantas trepadeiras. O trabalho de Fritz Müller sobre plantas trepadeiras preenchia importante hiato sobre o tema e Darwin editou a respeito excerto das cartas de Müller. O trabalho de Müller sobre crustáceos foi citado na 4ª. edição da Origem. W. Tegtmeier, o maior perito sobre aves e pombos, era o correspondente de Darwin sobre tais assuntos.

As cartas de 1865 revelam outros fatos importantes. À guiza de exemplo, Darwin então submeteu a primeira versão da hipótese de pangenesis a T. Huxley. Com H. Acland Darwin discutiu a operação de "causas finais", um assunto sobre o qual  Darwin se declarava em uma "desalentadora confusão mental”. Em uma carta anterior a C. Daubeny (07/16/1860), Darwin informou ter mudado sua concepção da variação como a causa final de reprodução sexual (Notebooks), para acentuar a sexualidade (Origem) como meio para manter as formas constantes.

O respeito de Darwin para com os " rituais " de ciência passa pela importância que ele dá à organização de uma lista de seus diplomas, comentados em suas cartas.

Na correspondência do ano de 1865, encontramos  também registrada uma variedade de interpretações da teoria de Darwin, seja como uma teoria do desenvolvimento progressivo, segundo W. Martin, ou como a visão de Lyell da Seleção Natural harmonizando-a com Criação, até à adesão entusiástica de homens como Kingsley, Müller, Häeckel, von Vogt, Asa Gray, B. Walsh, e J. Shaw, enfatizando vários aspectos do grande poder explicativo da teoria darwiniana. De acordo com a veia literária de Shaw, o trabalho de Darwin provou que a idade do romance não pereceu, pois a verdade de Darwin era realmente mais estranha que a ficção! 

  IX. Os novos projetos.
 

Em 1866, sua correspondência conta-nos muito de sua vida  intelectual, social e emocional. A última foi marcada pela perda de duas irmãs, Emily Catherine Langton e Susan Darwin. A segunda foi marcada por contribuições a instituições de caridade e pelo engajamento em uma petição contra o governador da Jamaica. Mas meu interesse aqui recai em sua vida intelectual. Sua saúde - como ele mesmo o diz – esteve muito melhor pela maior parte do tempo durante 1866. Como uma conseqüência, ele teve energia para empreender vários projetos, ocupar-se de discussões muito complexas, e até mesmo participar de uma recepção da Royal Society de Londres, para a alegria de seus amigos e admiradores.

Inicialmente concentrado em terminar seu livro sobre Variação (enviado ao editor em dezembro de 1866), Darwin aceitou o pedido do editor para preparar uma 4ª. edição da Origem de Espécies, cuja extensa revisão o manteve ocupado de março a maio.  Tanto a 4ª. edição da Origem como o seu livro sobre Variação incorporaram muito das discussões registradas em suas cartas de 1866. Tópicos sobre distribuição geográfica, período glacial, extensão continental, e meios ocasionais de transporte eram polemizados por Darwin e seus bem conhecidos oponentes, como Agassiz, mas também pelo seu grande amigo e partidário, Joseph Hooker. Para Hooker, a teoria de Darwin sobre migração e meios de transporte não estava razoavelmente fundamentada em evidência. Parte dos argumentos de um contra o outro – registrados nas cartas - era uma reivindicação por "argumentos justos"!  E Darwin estava preocupado com as críticas que Hooker poderia fazer-lhe na conferência que Hooker proferiria em agosto, na British Association for the Advancement of Science, em Nottingham, a convite de William Grove, sobre flora insular e a teoria de Darwin. Contudo, Hooker apresentou uma solução salomônica: ambas as teorias, extensão continental e transporte ocasional enfrentavam "obstáculos" insuperáveis, embora o último resolvesse racionalmente muitos fenômenos enigmáticos para as ilhas oceânicas.  

A correspondência de 1866 revela sólidas evidências a favor da teoria de Darwin relacionadas à variação sob domesticação, a formas, fertilização e hibridização de plantas - a partir do trabalho de Tegtmeier com aves, de R. Kaspary com fertilização, do trabalho botânico de Fritz Muller e das observações e desenhos do filho de Darwin, William. Uma edição alemã nova e cuidadosa da Origem estava sendo organizada. Graças a seguidores leais como Ernest Haeckel, Asa Gray e Benjamim Walsh, a teoria de Darwin foi crescentemente discutida internacionalmente. Correspondentes velhos e novos, como J. T. Moggridge, perito em orquídeas, alegremente forneceram a Darwin material enriquecedor para suas coleções de evidências. As cartas de 1866 são particularmente instrutivas a respeito de dois pontos teóricos principais. Ajudam a clarificar o conceito de "seleção natural”, enquanto nos trazem as objeções de Alfred Wallace a esse conceito e a resposta dada por Darwin, e a posição de Darwin sobre religião, a partir de sua resposta às dúvidas de Mary E. Boole sobre a compatibilidade ou não da ação da seleção natural e Deus - um episódio breve, mas profundo.

A correspondência de 1867 mostra que Darwin, nesse período, intensificou linhas de pesquisa resultaram em duas publicações importantes, A descendência do homem e Seleção em relação ao sexo, e Expressão das Emoções no Homem e Animais. Com o auxílio de seus colaboradores, Darwin fez circular um questionário sobre expressão humana, o que o levou a receber cartas de uma rede de correspondentes ainda mais ampla. Convencido de que a descendência humana foi influenciada fortemente pela seleção sexual, ele também começou a perguntar a seus correspondentes por diferenças sexuais em animais e pássaros. Ao mesmo tempo, Darwin estava trabalhando na revisão das provas gráficas de seu trabalho sobre a Variação de Animais e Plantas sob domesticação e, apesar de sua intensa atividade de investigação, quase semanalmente  tratava com tradutores franceses, alemães e russos. Publicado em 30 de janeiro de 1868, Variação de Animais e Plantas sob domesticação monopolizará boa parte de sua correspondência no período. No mesmo dia de sua publicação, mandou uma cópia a Fritz Müller pedindo sua opinião sobre a parte da “Pangênesis”. Como declara em carta a Hooker de de fevereiro de 1868, “pangênesis”, sua criança querida, o desgosta bastante, ainda que tenha feito o melhor que podia.

No que concerne à teoria da Origem das Espécies, as discussões e experimentos que se seguiram até a 5ª. edição (1869), estão, como no caso das demais edições, retratadas em suas cartas e incorporadas em seu texto. Quase todos os tópicos foram enriquecidos com novos resultados ou referências a novos trabalhos de diversos investigadores. Segundo Darwin (carta a Victor Carus de 4 de maiode 1869), ele foi levado a colocar um pouco mais de peso na ação direta das condições externas de vida, a pensar que o lapso de tempo medido por anos não é tão grande como muitos geólogos pensam  e a inferir que variações são ainda menos importantes do que anteriormente pensara, quando comparadas com as diferenças individuais. É a edição em que aparece, pela primeira vez, a expressão “sobrevivência do mais apto”, usada por Herbert Spencer, a cujo respeito, diz Darwin a J. Fiske, em carta de 8 de dezembro de 1872: 

À exceção de alguns pontos especiais, nem mesmo entendo a doutrina geral De H. Spencer: pois seu estilo é um muito difícil para mom (LL, vol. III, p.193)

Crescem as discussões sobre o homem e as implicações da teoria darwinana para a questão da origem do homem. A correspondência entre Darwin e Wallace é  então volumosa, sendo sobre  o tópico a respeoto do qual crescem suas divergências.

  X. A última grande revisão.
 

A última grande revisão da Origem, que corresponde à da 6ª. edição (1872) vem, como as demais, testemunhadas em suas cartas. Talvez o episódio mais significativo a esse respeito seja a inclusão, de acordo com Francis Darwin, de mais um capítulo na 6ª edição da Origem, cuja preparação começou em junho de 1871. De julho a setembro, Darwin ocupou-se com as objeções de Mivart, talvez as mais duras que teve de enfrentar. Decidiu incluir um capítulo novo a seu mais inteligente e injusto inimigo (Peckham, 1959, p.22), recolhendo as objeções antes tratadas no capítulo IV e o material novo das objeções de Mivart e os colocando num novo capítulo VI. A Origem passava a ter quinze capítulos e perdia a palavra On em seu título. Em janeiro de 1872 a revisão do livro para sua 6ª. edição estava terminada. A importância aí desempenhada pelas objeções de Mivart pode ser igualmente medida pela correspondência de Darwin. Em uma carta a Wallace de 30 de janeiro de 1871 de janeiro, Darwin pede-lhe que leia a parte de Seleção Sexual em Lepidóptera, onde Darwin expõe as visões de Wallace. E acrescenta: 

Estou com receio a respeito do livro de Mivart, que há pouco li (mas não com suficiente cuidado ) e sinto-me absolutamente certo de que ele pretendeu ser justo (mas foi estimulado por fervor teológico); contudo, não penso que ele tenha sido suficientemente justo… A parte que, penso eu, terá maior influência, é aquela onde ele dá a série inteira de casos similares ao do palato da baleia, sobre o qual nós não podemos explicar os passos gradativos; mas tais casos não têm nenhum peso em minha mente (Darwin, 1888, III vol., p. 135).

Antes que desdém, sua observação de que, para ele, tais objeções não têm peso expressa a confiança que deposita nas estratégias explicativas  que tecem a sua teoria.

O livro de Mivart foi revisado por Chaunchey Wright (North American Review, julho de 1871) e tal resenha foi enviada a Darwin, em uma carta de 21 de junho de 1871, com o comentário:

O livro do Sr. Mivart (Genesis of Species), do qual este artigo é, substancialmente, uma resenha, parece-me um pano-de-fundo muito bom para apresentar as considerações que tentei estabelecer no artigo em defesa e ilustração da Teoria de Seleção Natural. Meu propósito especial foi contribuir para a teoria, colocando-a em suas relações adequadas para com as indagações filosóficas em geral. (Darwin, 1888, III vol.  p. 143)

Darwin imediatamente submeteu as provas recebidas do artigo de Wright  ao senso crítico de Wallace (carta de Darwin a Wallace, de 9 de julho de 1871), considerando que o livro de Mivart tivera um grande efeito contra a seleção natural e que, se Wallace considerasse bom o artigo de Wright, Darwin pediria ao autor licença para publicá-lo em panfleto, com baixo custo, para sua divulgação. O que, de fato, ocorreu. Na sua carta a Wallace, reporta-se com a mágoa de ter sido injustiçado pelo procedimento de Mivart, por suas citações incompletas de Darwin, alterando o sentido de suas palavras e mesmo pela omissão de palavras. Com o tom de um desabafo, diz que nunca antes de estudar Mivart sentira-se tão convencido, em geral, da verdade das visões defendidas em sua Origem das Espécies (LL, vol.III,  p. 144-145). O artigo de Wright foi divulgado na Inglaterra, com a interferência de Darwin e suas respostas às objeções de Mivart  proporcionaram uma das mais hábeis lições sobre como refutar objeções.

Para finalizar, lembro as palavras de Jay Gould, segundo as quais as cartas ocupam uma posição intermediária entre as obras publicadas e os diários e anotações particulares (Burkhardt, 2009, p.12). Em uma linguagem bem contemporânea, poderíamos dizer que as cartas, pelo menos no caso de Darwin, proporcionam-nos aquele frescor da ciência “in the making”. Sua coleção de cartas informa-nos tanto sobre seu modo de proceder relacionado à pesquisa científica quanto sobre o processo de estruturação de sua teoria. Apenas em três momentos as cartas silenciam sobre essa estruturação: exatamente quando ela ganha seus decisivos pilares. É quase silenciosa sua referência a Galapagos nas cartas e nelas também não encontramos o correspondente ao momento decisivo em que se constituíram seus Notebooks de 1836 a 1844 e, em particular, àquele aberto em 1837, com ao alicerces da teoria que ganharia sua primeira versão organizada em texto no também velado Ensaio de 1842. Esse silêncio, contudo, tornar-se-á também revelador de seu trabalho: da reflexiva instrospecção de seu vasto empreendimento teórico.

Obrigada, Ana Luisa, por me ter apontado esta caminho!

 

 

[1] Contundente a esse respeito é a linguagem transmutacionista que já aparece em descrições suas desde o início de sua viagem, nas notas de seu diário de bordo (1832).

[2]  Na Origem, a tarefa explicativa será realizada e medida pelo confronto entre diferentes suposições.

[3] Em sua Autobiografia, alegará que nunca se afastou dos padrões baconianos, rejeitando as mais queridas hipóteses, se os fatos as contradissessem.

 

  BIBLIOGRAFIA:
 

DARWIN, C.  The correspondence of Charles Darwin: A Selection 1825-1859 (edited by Frederick Burkhardt). Cambridge: Cambridge University Press, 1996. 

DARWIN, C. (ed.). Life and Letters of Charles Darwin, 3 vols. (edited by Francis Darwin) London: John Murray, 1888. 

DARWIN, C. Charles Darwin and the voyage of the Beagle, edited, with an introduction, by Nora Barlow. New York: Philosophical  Library, 1946. 

DARWIN, C. 1809-1882. The autobiography of Charles Darwin, 1809-1882 : with original omissions restored / edited with appendix and notes by his grand-daughter, Nora Barlow. New York: W.W. Norton & Co., 1993. 

DARWIN, C. Charles Darwin’s Beagle Diary. (Edited by R. D. Keynes) Cambridge: Cambridge University Press, 2001. 

DARWIN, C. Charles Darwin's notebooks, 1836-1844. Ed. Paul H. Barret et al. Ithaca: Cornell University Press, 1987. 

DARWIN, C. The Autobiography of Charles Darwin and Selected Letters. Ed. Francis Darwin. New York: Dover Publications Inc., 1958. 

DARWIN, C. The Beagle Diary 1831-1836. Ed. Nora Barlow. Cambridge: Cambridge University Press, 1934. 

DARWIN,C. Natural Selection - Being the Second Part of His Big Species Book Written from 1856-1858. Ed. R. C. Stauffer. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. 

DARWIN,C. The Origin of Species by Means of Natural Selection or the Preservation of Favored Races in the Struggle for Life (from the 6th English Edition). New York: Appleton, 1875.  

DARWIN,C. The Origin of Species by Charles Darwin: a Variorum Text. Edited by Morse Peckham. Philadelphia: University of Philadelphia Press, 1959.

 

 

 

Anna Carolina K. P. Regner (Brasil)
Professora de Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS),
em Porto Alegre

 

 

© Maria Estela Guedes
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