6º episódio- Com o fiofó na seringa

Quando abro os olhos, já é manhã. A claridade dos trópicos dissipou os sonhos da noite e arrancou de minh’alma a lembrança do que sonhara. Ficou apenas um vago sentir, como fica na moita o perfume da flor que o vento desfolha na madrugada. Potira descera da rede e, de cócoras a um canto da cabana, olha para mim. Não tem sorrisos, nem cores no semblante; o sangue fugiu-lhe das faces e o coração treme-lhe nos lábios, como gota de orvalho nas folhas de bambu. Lembro das acácias da minha terra, crestadas pelo sol, sem borbulhas nem rosas; lembro das noites que não têm azul nem estrelas e enlutam os ventos de além mar. A sombra se retirara da face da terra, as flores da mata já abriram aos raios do sol, as aves já cantaram, mas a penumbra da noite ainda não se retirou da face de Potira.

“Potira i araru. Mbae resepe?” (Potira está tristonha. Por quê?).

“Opitaeima Sumé turi” (Sumé veio para não ficar), ela responde.

“Xe maenduapotar nde resé” (vou lembrar sempre de ti), consolo-a.

“Na nde maenduari xoe xe resene” (não lembrarás de mim), torna a rapariga.

“Alexandre vai lembrar-se de Potira. Alexandre Potira resé i maenduarine”, insisto.

“Iaquaimuçaua! Nde resarai” (tolice! tu esqueces).

“Eresópemo xe sorememo?” (irias se eu fosse?).

“Asó nde irunamo” (vou contigo). “Caá rasapa, nde retame xe sou” (atravessando a mata, para a tua terra eu vou), garante Potira.

“Oxalá fosse verdade”, penso, lembrando de repente que estou prestes a virar moquém. Talvez para infundir-me esperança, digo-lhe: “Potira ixé-irumo mendari curi!” (nós casaremos um dia). “Potira xirimiricó cariua miracatu? Intimaan!” (eu, ser esposa de um branco bonito e bom? Nunca!), protesta a cunhantã.

Potira levantou-se e puxei-a de leve para perto de mim.

“Muiri cunhã tahá rerecó?” (quantas mulheres você tem?), pergunta, de chofre.

“Xa recó iepé iúnto” (uma somente), respondo, pensando nela.

“Muiri apgaua-itá tahá rerecó?” (e você, quantos homens tem?”, quero saber.

“Ceíia!” (muitos!), ela responde, sorrindo pela primeira vez naquele dia.

“Rerecó será apgaua ceíia?!” (você tem muitos homens?!), exclamo.

A resposta de Potira, além de provocar ciúme, desconcertou-me, o que, na época dos fatos, era difícil reconhecer, isso porque, mesmo tendo caído prisioneiro, achava-me superior aos selvagens e com o controle da situação; não queria crer que o fim da minha existência estava irremediavelmente decretado. Potira de repente já não é apenas uma “jaguarete” (onça), assim como eu já não sou simplesmente seu “xe remimbabo” (animal doméstico). A perna machucada volta a doer e tudo aquilo parece-me sem propósito. Uma ira que eu desconhecia possuir irrompe-me boca a fora e começo a gritar: “Índios filhos duma puta, ao diabo os penachos de vocês! Pajés duma figa, cago nos vossos maracás! Índias velhas, pelancudas, do coro de vocês faço tamborim! Se Tupã é Deus, que o diabo carregue-me a alma!”

“Mãháta renhehê?” (o que você diz?), pergunta Potira, assustada.

“Sou um cachorro do mato, um porco-espinho, um socó fedorento, e estou desgraçado, não passo de um churrasco adiado, teus dentes vão ser os primeiros a roerem a minha tíbia!!!”, praguejo, em português, para que ela não entenda, mas, qual a minha surpresa quando a cunhantã fala: “Inti mahã! Iaquaiumuçaua! Não! Tolice! Nde porang! Nde catu! Tu és bonito! Tu és bom!”

“Requau será maha xa nehnhe xa icó?” (você entende o que estou falando?”, pergunto, admirado.

“Xa cenu, intimahã xa quáu” (ouvi, mas não entendi), ela responde.

“Reiúmuhê putári será portugues nhehenga?” (você quer aprender português?). “Intimahã iauçú reté” (não é muito difícil), digo-lhe, comovido com o interesse da cunhantã.

“Xa có putári” (quero). “Xa nhenhe depressa” (hei de falar depressa).

“Reiúpirú ãna será renhehe” (já está começando a falar), incentivo-a.

“Abá nheenga oicoeté” (língua dos índios é muito diferente).

“Iaçó iaiumuhê” (vamos aprender), digo-lhe.

“Auiébé!” (ótimo!). “Mas nde pereba aiposanongine” (antes curarei tuas feridas), fala Potira, já misturando tupi com português, como se inventasse outra língua.

“Mosanga ereimeng xebene?” (dar-me-ás remédio?).

“Sempre! Opaim ára opé!”, promete-me, ajoelhando-se ao lado da rede, onde eu continuava deitado, e, puxando-me a perna machucada para perto do seu rosto, pergunta: “Reruiári será Tupãna recé?” (tu acreditas em Deus?). Digo que um dia acreditei, hoje não.

“Tupã oicó nde pupé” (Deus está dentro de ti), diz a cunhantã.

“Claro”, penso eu, “onde mais Deus poderia estar, se foi a mente do homem que o criou?”. Mas não tenho coragem de contrariar a fé da minha bárbara e dulcíssima amiga.

“Tupã eicatu opacatu mbae monhanga” (Deus mostra-se bom fazendo todas as coisas). “Aerobiar Tupã” (confio em Deus). “Tupã cura”, completa Potira, pondo-se a encher os pulmões o mais que pode e, inflando as bochechas, sopra sobre a minha ferida. Apesar do esforço, faz isso com tanta leveza que eu nem sinto dor e até me distraio apreciando os tons violáceos que afloram na pele da rapariga, que me fazem lembrar das pétalas de certas rubiáceas da minha coleção de plantas do Grão-Pará, as quais, tendo eu caído em poder dos tupinambás, encontram-se agora sabe lá em que estado na casa do senhor Jacomedes Carvalho Maciel, colono e sargento-mor português, a quem Manoel Bernardo de Mello e Castro, governador da Província, confiou-me. Ainda espero que as autoridades da colônia livrem-me de virar churrasco de índio, coisa essa, convenhamos, bem desagradável para o infeliz que vai dar com o fiofó no espeto, como o índio Paiguara, que me entregou aos tupinambás e nem por isso, como adiante se verá, foi poupado.

Potira continua soprando, pois, segundo crêem os selvagens, o sopro, isto é, o ar insuflado nos seres, tonifica os organismos e dá-lhes vida. Tupã também, como Javé, fizera o primeiro homem do barro: pegou uma mão cheia de terra, amassou-a bem, modelou com ela uma figura de gente, soprou-lhe em seguida o nariz e deixou cair no chão, começando o boneco a engatinhar. Depois de soprar a região lesada, a minha pequena “piaga” (pajé), com a mesma delicadeza, passa a sugá-la, encovando as bochechas e puxando o pus para si, gargarejando e lançando fora em seguida, num só jato, entre a gosma e a pustema, com a mímica do vômito, o espírito maligno, o quid misterioso que penetrou em mim. O pronto alívio que sinto, confesso, muito me impressiona, abalando-me a descrença que até então trazia na terapêutica tupi.

“Catu cerá ne piá?” (estás mais contente?), pergunta-me Potira.

“Anhanga osem xe suí” (o diabo saiu de mim), respondo-lhe, quase crendo no que antes seria apenas um disparate em boca de ateu.

Abrindo a face num largo sorriso, Potira pega a “igaçaba” (vaso em que se põe água) e me diz: “Reçarú xinga ixé” (espere-me um pouco). E dirige-se ao porto, de onde, instantes depois, regressa com água fresca com que me lava as mãos e o rosto, metendo os dedinhos em minha boca.

“Nde rãia bonito” (teu dente é bonito), comenta.

Puxo-a para mim e mordisco-lhe o “moroti” (nariz).

“Eré xe jibá suguabo” (morde meu braço), pede ela. Mordo devagar. Ela quer mais forte. Atendo. “Mais forte!”. Aperto as mandíbulas até sentir gosto de sangue na boca.

“Ereiquaripe oré nde iucasaguama?” (sabes que nós te mataremos?), pergunta, disfarçando a dor. Vejo que Potira sofre.

“Morde também meu braço”, ordeno-lhe.

Potira crava-me os dentes no peito, rosnando como felina. Ao levantar o rosto, dos olhinhos amendoados minam lágrimas que se misturam com saliva e sangue. A tez da rapariga – finíssima, macia e lustrosa – é como a relva ao cair da tarde, eriçada pela brisa cálida que percorre os campos. Raiva, dor (esse refúgio corporal da sanidade), alegria, frustração, esperança, e outros sentimentos humanos afloram em variados matizes no semblante de Potira!

“Potira robá poranga” (o rosto de Potira é bonito), digo-lhe, as mordidas me doendo, as pálpebras comichando, quase chorando, mas me contenho; afinal, “muambaguera ndoiaseoi” (o prisioneiro não chora).

Enrubescida, a cunhantã exclama: “Remahã, tatá uéu putári ãna!” (olha o fogo, está se apagando!). Dá-me as costas e põe-se a assoprar, de cócoras, o que restara do fogo da noite, até se reavivarem algumas brasas, sobre as quais aquece um pedaço de paca, do qual, porém, oferece-me apenas um naquinho, explicando que sua missão é engordar-me para o banquete que está sendo preparado, no qual eu serei o prato principal. Mas isso ela não fará – diz-me – como se assim pudesse me livrar do sacrifício, o qual, gordo ou magro, um dia virá. Uma breve visita de Guaratinga-açu à minha cabana, dias depois, dissipa qualquer dúvida.

“Asepiac tobaiara nhemongirá iqué” (vejo que o inimigo engorda aqui), diz, mirando-me da porta, em tom cordial, como um médico tentando reanimar o convalescente. Mas apresento-me tão descarnado aos olhos do tuxaua que este, antes de retirar-se, abandonando a falsa polidez, lembra-me que me matarão antes do tempo marcado se eu, deixando de comer, não engordar de novo. No mesmo dia, Guaratinga-açu manda um curumim trazer para Potira um colar de pequenos frutos enfiados num cordel de algodão, que ela coloca em meu pescoço. Mesmo a um imbecil como eu, que, depois de freqüentar a Academia de Ciências de Lisboa, não sabe como se safar das mãos de selvagens, não falta o tirocínio suficiente para deduzir que o número dos frutos do cordel indica quantas luas eu ainda viverei. Bem poucas. Sete ou oito? Um dos frutos é tão pequeno que o furo do cordel o esfarelou, restando sete frutos. Mas, segundo Potira, esse oitavo fruto deve, mesmo tendo caído do cordel, ser levado em conta; prefiro desconsiderá-lo, pois qual a vantagem de ganhar mais trinta dias de tormentos? Deus sabe quantas vezes desejei de todo o coração morrer sem que os selvagens se apercebessem, a fim de que não pudessem levar a cabo seus intentos para comigo!

No dia seguinte, embora a ferida da minha perna estivesse bem melhor, Potira faz uma cova no chão da cabana e lança brasas envoltas em fogo dentro dela, pondo em cima da cova uma tabuinha com um buraco pequeno no meio. Trabalha calada e eu a observo sem saber onde quer chegar, até que ela, puxando-me pelo braço, quer como que me lançar por terra a fim de acomodar o lugar da ferida sobre a cova, onde pretende, com o calor do fogo que se lhe comunica pelo buraco, despedir da ferida todo o sangue podre e a malignidade que possui, de maneira que, sem mais o malefício, eu fique são. Irritado, repilo até com certa rispidez a fumigação – nome do tratamento que os tupis fazem depois do sopro e sucção das feridas. Dando minha vida por perdida, penso: “Se eu devo morrer mesmo e ser comido pelos meus algozes, por que hei de cuidar ainda da minha carne para os outros?”. Reconduzo-me à minha rede, diante dos olhinhos desapontados de Potira, só eu sabendo como estou aniquilado! Num ato de completa insanidade, agora reconheço, já deitado na rede, repito em altas vozes os versos que o cagão do Hans – o alemão do pergaminho – cantou num momento de desespero:

“Agora pedimos ao Espírito Santo
Pela fé verdadeira, com todas as veras,
Que nos preserve em nossa morte
Quando deixarmos esta mísera vida
Kirie eleison!”

Que o amigo me compreenda e perdoe. Assim como em garoto, pastoreando ovelhas nos campos do Alentejo, aliviava-me do fardo das responsabilidades troçando de coisas, animais e pessoas, no que divertia a todos, assim também hoje, na situação calamitosa em que me encontro, mofo da minha covardia para diminuir um pouco a vergonha de saber-me um ateu (que já foi coroinha e perdeu a fé no dia em que só por um triz não foi enrabado atrás da sacristia) de repente convertido em cristão, só porque está com medo da morte, ou, como se diz no Grão-Pará, está com o "fiofó na seringa"?