5º episódio - A Terra sem Mal

“POTIRA maranduba Sumé?” (conta-me agora a história do tal Sumé?), peço-lhe, animado por inusitada energia. Deitando-se comigo na rede, Potira conta que no começo do mundo não havia noite, dia somente havia; a noite adormecia no fundo das águas. Não havia fogo, e os índios secavam a comida ao sol, um sol muito quente que tudo esquentava. Rede não havia, nem precisavam: homens e mulheres dormiam no chão, onde também “sururucavam” (fornicavam), e até hoje há quem ache assim melhor. Também não sabiam fazer roça, nem plantar milho, nem ananás, nem mandioca; alimentavam-se do peixe e da caça, e das raízes e frutos que catavam no mato; na época das chuvas, em certos dias, às vezes, nada tinham para comer. Foi quando um branco de nome Sumé chegou onde eles moravam. Sumé tinha barba, uma barba comprida como a minha. Sumé tinha roupa como eu, e falava com o meu modo de falar.Chegou e disse:

“Pe mbo’esaguama resé xe ruri”
Vim para vos ensinar
“Xe remimotara oimonhange’ymba’e oicobé-poxy”
O que não faz o que eu quero vive mal
“Nda sorybi tecó-catu resé i mbo’epyre’yama”
O que não é ensinado na boa lei não é feliz
“Abá aicó-me’engyne”
Darei roças aos índios

Sumé era “abacatu” (homem bom), ensinou os índios a plantarem o milho, o ananás, a mandioca e todas as coisas boas que eles não conheciam, mas também ensinou que havia o pecado, má ação de que deviam se envergonhar, como comer carne humana, crua ou assada, ou um homem sururucar com várias mulheres e uma mulher com vários homens; de tais coisas Tupã (Deus) não gostava. Ele vivia num lugar lindo, chamado Céu, para onde só os bons seriam levados, enquanto o lugar dos maus era o Inferno, onde aquele que moqueou o seu próximo saberia quanto dói ser assado. Todo homem peca, mas Deus, que se compadece dos pecadores, concede o perdão a quem com sinceridade se arrepende. Por abominar o pecado e amar os pecadores, Deus, que é um sujeito “catu-catu” (boníssimo), criou o Purgatório, um lugar pra lá de sem graça, entre o Céu e o Inferno, onde a luz é mortiça e as coisas, pálidas, e o tempo não corre, para que o pecador – não todo pecador, mas aquele que é boa praça, tendo todo o tempo do mundo, já que no Purgatório o tempo não passa – pense nos seus erros e se arrependa. “Deus salve vossas almas!”, disse Sumé. E ordenou que, com as suas vergonhas convenientemente tapadas, se ajoelhassem todos diante da cruz e pedissem à Virgem Maria, mãe de Jesus, que intercedesse junto ao seu filho por eles, fazendo-os repetir:

“Nde moangaturam-eté
pa’i Tupã, Virgem Maria”
O senhor Deus, fez-te muito bondosa,
Ó Virgem Maria

Iori Anhangá mondyia
Ta xe momoxy umem”
Espanta o diabo
para que não me dane

Xe rarongatu iepé
Nde py’a pupé xe mima”
Guarda-me bem tu,
escondendo-me dentro do teu coração

Nde poro-potareima
T’oiacatu xe resé”
Tua pureza
seja igual em mim

Tupã sy-ramo ereicó
I pitangi mocambuabo”
Estás como mãe de Deus,
amamentando seu neném

Eiori xe poicatuabo
Nde membiramo t’aicó”
Vem para me alimentar também,
que eu esteja como teu filho

Oré anga i poreausu
pecado monhangiré”
Nossa alma é miserável,
após fazer o pecado

“Iori sekyia tauié
i py suí serubu”
Vem para arrancar logo
de dentro de nós o tinhoso

Oroausupotacatu,
oroiemenga endebó”
Queremos amar-te muito,
entregando-nos a ti

Nde tereimeng orebó
nde membi-poranga, Iesu”
Que tu nos dês
teu belo filho Jesus.

“E que Ele, de preferência, já venha assado!”, devem ter pensado os selvagens, entre gestos contritos.

Maravilhado com que rapidez os índios aprendiam tudo o que ele ensinava, Sumé respondia com regozijo a todas as perguntas dos pupilos:

“Opacatupe abá anguera ruri ibaca suí, purgatório suí, anhangá ratá suí ogu etepuera moingobebone?” (as almas de todos os homens virão do Céu, do Purgatório e do Inferno, fazendo reviver os seus antigos corpos?). “I porangatupe i angaturambae retene?” (serão muito belos os corpos dos que são bons?), perguntavam eles.

“Sim, os antigos corpos reviverão, perfeitos e belos, mas só dos bons”, confirmava Sumé. “Abápe cristãos-angaturama rubixáramo secóu?” (quem é o chefe dos bons cristãos?), tornavam a perguntar. “Jesus Cristo”, respondia o Mestre.

“Oicobépe amõabá, icó arapupé, secobiaramo?” (há algum homem, neste mundo, como seu substituto?).

“Há: o bispo, que tem nome Papa”.

“Abápe Santa Igreja rerecoaramo secóu?” (quem é o guardião da Santa Igreja?).

“Tupã Espírito Santo”.

“Serobiarape bé asé ogueromanõne?” (mesmo crendo nele a gente também morrerá?).

“Também”.

“Asé raroanamotepe caraíbebé recóu?” (mas como guardiães da gente estão os anjos?).

“Sim, como guardães estão”.

“Mbaerama resépe Tupã i meengi asébe?” (por que Deus nos deu os anjos?).

“Para nos guardar dos inimigos da gente”.

“Mbaembae suí asé rarõu?” (de que nos guarda Ele?).

“De Anhangá, o diabo, e da vida ruim, das coisas ruins também”.

“Tecóangaipaba pupé oicóbo, Anhangá remiausubamo asé recóu? Mbaepe asé ogueeroirõ raene?” (na lei pecaminosa estando, como escravo do diabo a gente está? O que a gente deve mesmo detestar?).

“O diabo, as suas maldades também”.

O povo, embora continuasse tão pagão quanto antes, ouvia-o com temor; até os velhos pajés, embora não acreditassem numa só palavra do que ele dizia, o reverenciavam. Crendo na conversão dos gentios, Sumé esmerava-se em sua missão de transformar canibais em homens civilizados, lobos em cordeiros, conseguindo, por muito tempo, impor-se à inconstância selvagem. Chegara à terra dos tupinambás ainda jovem e viril, o que quase põe a perder a sua missão evangelizadora, porquanto a sua juventude provocava suspiros nas cunhantãs e ciúmes nos jovens guerreiros; todavia, enfrentou tantas provações entre os bárbaros, inumeráveis tentações em meio à carne desnuda, que, depois de anos de jejuns, rezas e penitências contra as ciladas do demônio, acabou transformado num velho de barbas longas e brancas, rosto ressequido, vestido como um profeta, de quem os jovens e os maridos já nada tinham a temer. Sumé entre eles, iam vivendo os tupinambás muito bem, até que, por querer ser maior que Deus, o diabo foi lançado do Céu para a terra, apresentando-se aqui com o nome de Jurupari.

Jurupari é “puxi” (ruim), não vale nada, mas engana os homens dizendo-se “catu” (bom). Jurupari é “puxuêra i nema” (feio e fedorento), mas se mostra “porang i çaquenaçaua catu” (bonito e cheiroso). Jurupari é o pai da mentira, a todos enfeitiça. Assim que chegou, foi logo dizendo: “Sumé vos engana, pois não há Céu, nem Inferno, nem Purgatório, nem recompensa ou castigo depois desta vida. O tal Jesus, que nem a si mesmo salvou, também não poderá salvar-vos, nem precisará, porque vossas almas já são imortais. Vocês ainda se lembram? No começo só havia o dia, noite não havia e ninguém dormia, os homens então viviam mais. Havia caça, peixe e frutos na mata em abundância e vocês só tinham o trabalho de catar. Mas ele disse que precisavam da noite para descansar, viveriam mais. Sumé é mentiroso! A noite trouxe o sono, o sono trouxe o sonho, e o sonho trouxe a fantasia. Prefiro o cauim. Depois de dar-vos a noite, Sumé deu o fogo, do qual não precisavam, pois já assavam os alimentos sob o sol; na verdade, só deu o fogo porque sem ele sucumbiriam à noite de frio. Sumé só vos ensinou a fazer roça para que se matem no trabalho. Ainda bem que, depois da morte do corpo, as almas vão a uns campos onde há muitas figueiras, ao longo de um formoso rio, e todas juntas não fazem ali outra cousa senão beber cauim e bailar com a alma dos avós o tempo todo, pois lá só há dia, noite não há, já que os corpos imortais não precisam de noite para descansar. Para esse lugar de delícias, Terra sem Mal, morada dos ancestrais, onde a terra produz sem semeadura e não há morte, irão todos os mortos, bons ou maus, mas também os vivos, sem passar pela prova da morte, de corpo e alma podem ir, desde que vivam virtuosamente, isto é, obedeçam às minha leis.

“E quais são as tuas leis?”, perguntaram-lhe os principais.

“Eu vos enumero”, disse Jurupari: “Vingar-se dos inimigos e comer o maior número deles; guerrear sempre as tribos vizinhas; enfeitar-se; pintar-se de preto e vermelho; deixar pernas, pintos e rapypys bem lustrosinhos; fumar paricá, sacudir o maracá e dançar, fazer feitiços; conversar com os espíritos do fundo e predizer o futuro; irar-se; trucidar gente e comer uns aos outros; pegar tapuias; amancebar-se; desejar gente; cobiçar o que é do outro; enrabar e deixar-se enrabar; alcovitar sem-vergonhice; sururucar a torto e a direito; prostituir-se; fazer muita festa, batuque, bebedeira; beber cauim até ficar vomitando”. Estas são as minhas leis, que são muito belas; não quero que os índios as lancem fora, não quero que os índios as façam cessar.

Então os antepassados de Potira perguntaram a Jurupari: “Oroicobépucumo Ibi Marãeime orosóbomo?” (viveríamos longamente indo para a Terra sem Mal?).

“Para sempre viveríeis”, garantiu Jurupari.

“Oiporarapemo asé teõ conipó mbaeaiba Ibi Marãeime pupé oicóbomo?” (sofreria a gente a morte ou coisas más na Terra sem Mal morando?).

“Não sofreria”, disse Jurupari.

“Asepiakipemo xe raira omanõbaepuera Ibi Marãeime xe sórememo?” (veria meu filho que morreu no caso de ir eu para a Terra sem Mal?).

“Verias”.

“Asepiakimo xe raira omanõbaepuera mã! Anhetémo mã!” (ah, se eu visse meu filho que morreu! ah, se fosse verdade!”.

“Se vós viésseis comigo, ali entraríeis”.

Jurupari disse tudo isso em tupi, na frente de Sumé, em tom atrevido, deixando os índios muito impressionados. Sumé alertou que Jurupari era o pai dos demônios e queria perdê-los, mas a maioria do povo, já esquecida da vida difícil que levava antes de Sumé chegar, não lhe deu ouvidos. “Jurupari tem razão”, pensaram. “Pra que plantar, se o trabalho escraviza? Pra que ser bom, se todos – bons ou maus, mortos ou vivos – um dia vão para a Terra sem Mal, onde estão nossos antepassados? Sumé que inventou o Céu, o Inferno e o Purgatório, e também o pecado, pra nossa infelicidade”.

Por algum tempo, instaurou-se a discórdia entre os tupinambás, divididos entre Sumé e Jurupari, até que um dia os partidários de Jurupari disseram a Sumé: “Oroipotar nde recoaguameima iké” (queremos que não mores mais aqui).

Como o velho não foi embora, pegaram seus arcos e flechas e cercaram-no para o matar, não restando a Sumé outra saída senão segurar o crucifixo e correr para os matos, os quais, como por milagre, fizeram-lhe caminho por onde ele passava. E as flechas que os inimigos lançaram contra ele voltavam-se contra eles, matando-os. E as águas do rio abriram-se ao meio e ele passou a outra parte sem se molhar, indo-se embora a uma outra região, deixando impressas sobre um rochedo as suas pegadas. Todavia, antes de desaparecer, Sumé gritou que um dia voltaria.

Já sem ele, voltaram-se para Jurupari e lhe disseram: “Tiasó Ibi Marãeime, iandé anambuera recóabape!” (vamos para a Terra sem Mal, onde moram nossos parentes mortos!).

Muitos índios foram com Jurupari. Ao atravessarem o Grande Rio, muitos morreram. Dos que não morreram, alguns o inimigo apanhou, outros Jurupari levou para um deserto, onde os obrigou a dançarem como servos. Alguns índios teriam escapado de Jurupari e retornado às antigas malocas, arrependidos do que fizeram com Sumé.