CAPÍTULO I
A IMPOSSÍVEL HISTÓRIA DE F. NEWTON
A SALA DO MUSEU BOCAGE NA EXPOSIÇÃO DO MUNDO PORTUGUÊS  

NOTA: Neste texto (e noutros) há gralhas minhas. Algumas estão corrigidas em "Polémicas", veja o índice deste livro. Seja cooperante e indique-nos as que encontrar. Maria Estela Guedes

Francisco Newton

1864-1909 

 Naturalista e incansável explorador. Em missão do

Museu de Lisboa, explorou as colónias portuguesas de 

Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola e Timor,

donde enviou valiosas colecções   

Eis a placa de homenagem ao nosso herói, na Exposição do Mundo Português - Lisboa, 1940. Confrontemos as informações que presta [Jorge] com as que apresentamos na secção Errática de Newton:

. Se é verdade que nasceu em 1864, não pode ter coligido em Timor em 1857 e 1864, em Java e nas Celebes em 1861, e em S.Tomé em 1865.

. Se é verdade que explorou só Cabo Verde, Guiné, S.Tomé e Príncipe, Angola e Timor, é de averiguar se também coligiu em Portugal, em Java, nas Celebes, em Moçambique, Macau, Senegal, Serra Leoa, Gana, Daomé e Canárias.

. Se Newton explorou Angola em missão da Academia Politécnica do Porto entre 1903 e 1906, a missão ao serviço do Museu de Lisboa é a de 1880-1883. Então esta exploração é verdadeira, se bem que corresponda aos anos em que Francisco, um dos meninos do grupo lecense, passava férias com Augusto e António Nobre em Leça da Palmeira.

. Se eram valiosas as colecções, esperava-se que tivessem sido preservadas nos museus de Lisboa, Porto e Coimbra, e representadas na Exposição do Mundo Português, de outro modo não faz sentido a homenagem. As colecções de Newton, Anchieta e outros exploradores, não foram preservadas, quase nada subsiste delas em nenhum museu português, e nenhuma alusão se lhes fez na Exposição, excepto na placa de homenagem. Por isso desperta imensa curiosidade a colecção de plantas coligidas por Newton em Ano Bom que sobrevive no herbário do Jardim Botânico de Lisboa. Também se conservam aqui objectos vegetais que enviou de Timor.

Das centenas ou milhares de espécimes - etnográficos, geológicos, zoológicos e botânicos - coleccionados por Newton, se sobram alguns é no estrangeiro. Há plantas de Moçambique[1] em Berlim, e de outras partes no Jardim de Kew (Exell), e tipos de aves no Museu de Londres (Naurois).

A Sala do Museu Bocage homenageou, em placas e medalhões de bronze, além de Alexandre Rodrigues Ferreira, explorador da Amazónia no século XVIII, o fundador do Museu de Lisboa, J.V. Barboza du Bocage, o explorador de Angola, José de Anchieta, o ornitólogo J. Augusto de Sousa, o ictiologista A. Pereira de Guimarães, o malacologista F. Arruda Furtado, e ainda os ictiologistas e carcinologistas Baltasar Osório e F. Brito Capelo. Encontraremos alguns nos Resultados científicos das colheitas de Newton, porque as estudaram. Artur Ricardo Jorge, então director, fez uma selecção entre os naturalistas que se ocuparam da fauna ultramarina, mas nada do seu trabalho foi mostrado ao público. Ora a exposição é do mundo português, episódio de auto-glorificação nacional bem conhecido do ministério de Salazar.

Pelo catálogo, ficamos a saber que, no essencial, se apresentaram umas centenas de exemplares, das faunas de Portugal, colónias e Brasil, ordenados em grupos sistemáticos. Não há qualquer tradição de estudos brasílicos na Escola Politécnica, criada quando o Brasil já era um país independente. Faltaram os insectos e as esponjas, significando isto que não foi mostrada a Hyalonema lusitanica[2], uma espécie tão fabulosa como a Fénix, o bloco de cobre nativo, o dinossauro do Lochness, o unicórnio e o dodó.

Também não se exibiram espécies com valor evolutivo, as endémicas, as que caracterizam a fauna de dada região, por não viverem noutras. Faltam as espécies célebres em todo o mundo científico, não só no século XIX como ainda hoje, por demonstrarem certos princípios da biologia dos animais insulares, como o melanismo e o gigantismo, caso das osgas e dos lagartos de Cabo Verde: Tarentola gigas e Macroscincus coctei. No final do livro fornecemos lista das espécies descritas por Bocage, ausentes do Mundo Português, numa época longe ainda das guerras coloniais, em que Portugal se autodesignava Império Colonial Português, e como tal se projectava nos livros oficiais, monumentos e artérias: Ao Esforço da Raça, Praça do Império, etc..

O que é que foi então mostrado? O centro de atracção devem ter sido os colibris e outras aves do Brasil, que em número ultrapassaram qualquer outra representação faunística - mais de centena e meia de indivíduos. No restante, segundo o que nos é familiar - vertebrados terrestres africanos - foram exibidas espécies de larguíssima distribuição, como Elanus caeruleus, o peneireiro cinzento, que representava a avifauna de Angola. Esta ave também existe em Portugal. Os répteis e anfíbios escolhidos para representar S.Tomé e Angola são igualmente de larga distribuição continental. Ora os naturalistas não atribuem às espécies cosmopolitas valor biogeográfico nem evolutivo.

 Mettallococcyx smaragdineus, Halcyon semicaerulea, Halcyon dryas e Corvus umbrinus, as quatro espécies que representavam a avifauna de Cabo Verde, não são mencionadas para Cabo Verde (Hazevoet). Se lá existem, só o Museu Bocage o sabia, mais ninguém. A primeira é o cuco esmeraldino, continental, conhecido em S.Tomé por ossobó e pássaro da chuva.[3] Em Cabo Verde, não só não chove como a ornitologia não dá mostras de ali conhecer aves da família Cuculidae. Leonardo Fea, no entanto, parece tê-los remetido de Cabo Verde a Salvadori (1899), visto que este os cataloga como Cuculus canorus, o cuco europeu. Nenhum outro naturalista voltou a ter tanta sorte. Por isso, o cuco de Salvadori ou é silenciado ou considerado gralha.

Cita-se apenas uma espécie de guarda-rios em Cabo Verde, a passarinha, Halcyon leucocephala acteon, ali descoberta por  Darwin. Na Sala do Museu Bocage viam-se duas, nenhuma delas a conhecida passarinha. E o corvo presente no arquipélago, segundo os zoólogos, é o Corvus ruficollis, não o Corvus umbrinus. Este corvo é outra gralha.

Mencionámos todas as aves de Cabo Verde presentes na Exposição do Mundo Português. Nenhuma delas é caboverdiana sequer por introdução, a menos que estejam presentes no arquipélago em registo genético ainda não descoberto, isto é, podem as aves caboverdianas ter sido hibridadas com as espécies exibidas.

Eis o sentido literal da informação prestada na Sala do Museu Bocage: não há endemismos nas ilhas nem nas colónias continentais, as espécies que nelas existem são comuns às faunas de outras regiões. Nós, naturalistas, introduzimos quatro espécies de ave em Cabo Verde.

Há nesta interpretação algum suporte de realidade?

Os animais sem capacidade para atingirem pelos seus próprios meios ilhas afastadas dos continentes foram todos introduzidos pelo homem. Entre os que nadam em água salgada ou migram por via aérea, uns terão sido introduzidos e outros não, mas como saber? Balthasar Osório e Girard declaram que um dos aspectos mais interessantes da fauna terrestre e de água doce das ilhas do Golfo da Guiné é o de nelas existirem espécies americanas. Espécies terrestres e dulciaquícolas americanas só podem estar presentes em ilhas tão distantes se tiverem sido transportadas de barco. As ilhas atlânticas são na maior parte vulcânicas, formaram-se depois de existir o Atlântico.

Para o leitor entender pelos seus próprios meios o motivo pelo qual certos animais podem não ter sido mostrados ao público, deixamos à sua reflexão uma síntese dos caracteres que vários zoólogos têm dado dos mais famosos animais caboverdianos, os lagartos Macroscincus coctei, primeiramente classificados como duas espécies, Lacerta scincoides e Euprepes coctei. As palavras gralhadas assinalam-se com negrito asa de corvo, não só agora como ao longo do livro.

Escusado esclarecer que não estamos a brincar. Para qualquer dúvida, os nomes de autor correspondem a entradas na bibliografia. 

 Gralhas

Macroscincus coctei (Duméril & Bibron, 1836)
Balthasar Osório, In Brehm (1903)

OS MACROSCINCOS - No Museu de Paris existe uma pelle d’um animal a que Dumeril e Bibron deram o nome de Eupropes de Cocteau e cuja proveniencia era desconhecida. O sr. Barbosa du Bocage em 1873 reconheceu que não podia ser mantido no genero Eupropes e fez com elle o typo do genero Macroscinco. Com effeito não tem dentes no paladar; além dessa particularidade única até agora nos Scincoidianos, os dentes que ornam as maxillas têem a corôa muito comprimida, ligeiramente arredondada e dentada muito distinctamente nos bordos; esta disposição lembra a que se vê nas Iguanas.

Sabe-se que esta especie vive no ilheo branco, pertencente ao archipelago de Cabo-Verde, situado perto da ilha de Santa-Luzia. Segundo o sr. Barbosa du Bocage n’uma epocha anterior, o Manrroscinco devia ter um habitat muito mais extenso. Encontra-se confinado no seu ultimo refugio, mas alli mesmo ser-lhe-ha impossivel resistir durante muito tempo à perseguição que deve às qualidades que o fazem procurar como alimento.

Este Reptil vive n’uma ilhota vulcanica, absolutamente deserta que como vegetação não encerra se não algumas gramineas; mette-se debaixo das pedras grandes; alimenta-se quasi exclusivamente de vegetaes, hervas, fructos polposos de todas as qualidades.

Sintetizemos a história: Greeff, professor da Universidade de Marburgo, em 1872 contou que na ilha de Hierro, Canárias, viviam lagartos horrorosamente feios e grandes como gatos, que deviam ser Euprepis cocteani, cuja pátria então se ignorava e se julgavam até espécie extinta (Troschel)[4]. Mal abriu a boca para isto relatar, Troschel e Bocage tiveram a felicidade de receber Euprepes coctei de Cabo Verde, o primeiro do Ilheo Raro[5], e o segundo do Ilheo Branco. Quanto aos lagartos também horrorosamente feios e grandes como gatos, das Canárias, só vieram a ser descritos trinta anos depois, em 1889, por Steindachner. Greeff era uma pessoa excepcionalmente bem informada, mas modesta - podendo ter descrito as celebridades caboverdianas e canarinas, preferiu deixá-las aos colegas.

Cuvier tinha descrito o crânio como sendo de Lacerta scincoides, o scinco de língua azul da Austrália, e Duméril & Bibron descreveram um exemplar montado de nova espécie para a ciência, sem crânio (nas mãos de Cuvier): Euprepes coctei, de pátria desconhecida. Os dois herpetologistas franceses descrevem a nova espécie na página 666 da sua obra em muitos volumes, revelação que, como Troschel, não podemos de forma nenhuma ocultar.[6] Depois, surgem mais informações: é endémico do Ilhéu Branco, Cabo Verde (Bocage, 1873, 1874). É exclusivo do Ilhéu Raso, Cabo Verde (Bocage, 1897). Também existia na ilha de Santa Luzia (Chevalier), no Egipto e na Núbia (Lichtenstein). Encontraram-se subfósseis dos seus antepassados na Mare aux Songes, Ilha Maurícia (Índico), entre cujos desenhos figura uma vértebra de mamífero, o atlas (Hofstteter).

O corpo de “macroscineus coctei”, grande, grosso, mole, lesmático, tinha pele coberta de escamas de peixe, que servia para fazer sapatos, e o animal vivia só de ervas (in Carreira). Fazia uma dieta “quase católica”: era omnívoro, canibal e coprófago (Greer).

Fóssil vivo, uma relíquia da fauna da Atlântida (Bertin). Forma recém-formada, não passa de uma Mabuya (=Euprepes) modificada (Greer).

Activo só no tempo das chuvas (in Schleich) - nos ilhéus Branco e Raso não chove.

Dispunha de cauda preênsil (Peracca) - arborícola num habitat sem árvores.

É diurno (Fea). É nocturno (Peracca).

Punha ovos com 5 centímetros de comprimento (Peracca) - tamanho próprio dos de galinha.

O exemplar descrito por Duméril & Bibron tem cerca de 60 centímetros de comprimento, o que faz dele um gigante. Gray (1845) afirma tê-lo visto em Paris e concorda: gigante lagarto, com metro e sessenta de comprimento. Por volta de 1902, à população do Raso atribui-se comprimento total médio de 17 centímetros (Cardoso Júnior) - é o tamanho normal.

Deixando em paz o Systema Naturae global, ou o réptil-molusco-peixe- mamífero-ave, também designável por Besta do Apocalipse, estritamente vegetariano e omnívoro, endémico e cosmopolita, diurno e nocturno, fóssil e mutante, os sistematas homenageados na Exposição, graças às colheitas de Newton, Anchieta e outros, tiveram oportunidade de descrever centenas de novas espécies para a ciência, muitas delas exclusivas de certas regiões. Nem uma foi apresentada. A autoria da descrição de todas as espécies do catálogo pertence a cientistas estrangeiros, a começar por Lineu. Se as colecções antigas não existiam, isso não significa que em Angola, Cabo Verde, etc., se tivessem extinguido as espécies que representavam. Podia homenagear-se o autor da descrição ou o descobridor da nova espécie com exemplares recentes, e até vivos, tanto mais que a exposição, não esqueçamos, pretendia glorificar o mundo português.

Não há relação entre as lápides e os exemplares apresentados, tal como não se consegue estabelecer relação significativa entre o que foi exibido e aquilo de que F. Newton fala nas cartas e nós apresentamos nos Resultados científicos. Nestas circunstâncias, o caminho que vamos percorrer é muito árduo, e não espantará se o deixarmos a meio, por falta de condições para avançarmos em terreno de areias tão movediças.

Se quer ver a extensão do que não foi apresentado ao público, consulte o capítulo Taxa descritos por Bocage. São umas duzentas e cinquenta espécies. Só de Bocage, faltam as espécies de Balthasar Osório, Arruda Furtado, Seabra, Sousa, etc.. A lista é inédita, apesar de existir uma de Carlos França, publicada no ano a seguir à morte de Bocage, na qual nos baseamos também. Mas o rol do ilustre médico e patologista necessita de comentário zoológico, ou quem cita desagua sem querer na Alice no País das Maravilhas (Guedes & Peiriço, 1998).

Logo de início informámos que nos museus portugueses não restam vestígios sensíveis das colecções enviadas por Newton, e podemos acrescentar todos os colectores que aparecem na lista das espécies de Bocage, o que nos põe vários problemas, entre eles o de o valor científico dessas colecções não ser o convencional. Queremos no entanto deixar claro que a ciência é ecuménica, e que os cientistas se unem em fraternidades supra-nacionais. As colecções de Francisco Newton foram estudadas e publicadas pelos grandes cientistas de todo o mundo, em especial botânicos europeus. Vê-los-emos em diálogo permanente. Se parece estarmos centrados na questão portuguesa, isso é uma gralha de perspectiva. Deve-se a circunstância unicamente à acessibilidade a documentos conservados no nosso local de trabalho. Esse foi o ponto de partida, mas basta ver os Resultados científicos das colheitas de Newton para o assunto logo se dimensionar à escala internacional, cobrindo mais de cem anos de naturalismo. Posto isto, urge perguntar:

- Quem foi Francisco Newton?

__________________

[1] Na Flora Zambesiaca, Exell refere dois nativos, Newton e Juliassi, que coligiram em Moçambique em 1939. 

[2] Segundo se diz, os exemplares foram coligidos em Setúbal, onde esta esponja era tão abundante e bem conhecida dos pescadores que lhe davam o nome de chicotes do mar. Porém, nunca foi demonstrada a existência de uma população na localidade típica.

[3] À parte o ossobó, também não há cucos nelas. Não obstante essa carência, Sousa (1888) e Salvadori (1903) não se esquecem de catalogar o Cuculus canorus para S. Tomé, pois, dizem, isso já fora feito por Hartlaub em 1857. Aviso talvez de que os cucos se encontram onde menos se espera e no ninho das mais respeitáveis famílias.

[4] Ao longo do artigo de Troschel escreve-se, com híbrida indiferença, Euprepes, Euprepis, de Cocteau, cocteaui, cocteani, coctani, etc..

[5] Ilhéu Raso, a que Troschel também chama ilheo Rasa, tal como Alexander, que falará dos ilhéus Branca e Rasa.

[6] E a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, marcou-os com um sinal na mão direita ou na fronte (…) Aqui é preciso sabedoria: o que é inteligente decifre o número da Besta, que é um número de homem; o seu número é seiscentos e sessenta e seis. Ap 13: 16, 18.