ARQUIVO F. NEWTON

Os velhos mestres, na redacção dos seus tratados,
utilizaram sobretudo a cabala hermética,
a que chamavam também língua das aves,
dos deuses, “gaye science” ou “gay sçavoir”, gaia ciência.
Deste modo puderam ocultar do vulgo
os princípios da sua ciência,
envolvendo-os numa capa cabalística.

Fulcanelli, As Mansões Filosofais

 

 Antes de continuar, convém prestar alguns esclarecimentos acerca do espólio de Francisco Newton conservado no Arquivo histórico do Museu Bocage (AhMB):

-  A ordem por que aparecem as cartas, salvo uma ou outra que se mudou de lugar, é a de catalogação, nas pastas de Correspondência do Arquivo histórico; esta ordem cronológica, estabelecida nos anos setenta, é da responsabilidade da naturalista Maria Morais Nogueira e minha; outra pessoa deve ter tentado em tempos ordená-las, talvez Teresa Roma, pois secretariava o marido, J.V. Barboza du Bocage, e parece dela a caligrafia com que se apõem certas datas nos documentos.

-  Dentro de algumas havia listas dos exemplares enviados por Newton, aquelas a que ele se refere; confrontando a documentação existente hoje com a estudada por René de Naurois, da qual dá notícia em vários artigos sobre aves, senti necessidade de consultar as listas, mas não as consegui encontrar. Há porém listas de Timor, de onde não temos correspondência.[1]

-  Tanto quanto me recordo, não existiam no Arquivo os apontamentos, mapas, diários e fotografias de que Newton fala e de que Bettencourt Ferreira e Girard dizem ter-se servido. As listas, sim, na secção Remessas (Rem.).

- Salvo numa ou em duas das últimas cartas, escritas por outrem, Newton não explicita o destinatário; na maior parte eram para Bocage, mas há algumas para Balthasar Osório.

- A caligrafia é segura e legível, não se notando nela variações associáveis a um progressivo amadurecimento intelectual. O modo como se exprime na primeira carta, tinha ele 21 anos, revela igualmente que já nessa altura era um homem em plena maturidade.

- Se não sabemos que estudos fez, podemos deduzir que dominava várias línguas - a colecção de plantas de Ano Bom que sobrevive no Herbário do Jardim Botânico de Lisboa tem etiquetas em latim e em francês. Sabia inglês e talvez alemão, pois a dada altura pede a Bocage os trabalhos de Greeff, ficando subexpresso que já os conhecia. Newton é uma pessoa culta, cuja vida se entrelaça com a de políticos, artistas de teatro, cientistas e escritores.

- Algumas cartas têm pontual marca de luto, sem referência a familiares falecidos; um desses símbolos é um triângulo negro.[2]

- Naquela em que há notícia de um familiar falecido, não aparece sinal de luto.

- Newton é lacónico, diz que lhe custa escrever; é natural, escrevia muito, apesar de só lhe conhecer dois textos publicados.[3]

- Cruzam-se vários registos ortográficos na redacção, alguns nada canónicos, pelo contrário - o nosso herói também dominava a língua das aves (Richard Khaitzine é um especialista neste domínio, veja o que há dele no TriploV), aquela em que tão bem se exprime Rabelais, quando, por exemplo, põe algum abade a falar. O sistema de pontuar - por abundante recurso ao travessão - é algo agressivo - mas não se trata de marca individual - outros o usam também - como o pai. Enfim, não é morse, de resto não existe actualmente no AhMB nenhum documento em código. Havia um, cujo alfabeto na altura não reconheci, feito de triângulos com pontos dentro - alfabeto maçónico, posso hoje dizer.

- Parte das cartas não tem data nem indicação do local onde foram escritas; daí um puzzle que vários tentaram solucionar ordenando-as de maneiras diversas. Também não sobrevivem envelopes.

- Porque Newton não estava onde ele disse que estava e depois mostrou não ter estado, ubiquidade que revela no caso da expedição ao Pico de Santa Isabel, a ordem por que aparecem as cartas deixou para mim de ter valor cronológico; também deixaram de constituir eixo de referência em verdade (no plano da interpretação literal), mesmo quando endereçadas e datadas. Mais significativo é ser ele mesmo a declarar esta verdade: nem toda a informação contida nas suas cartas é verdadeira. Por isso foi muito importante a confrontação com outras fontes. Se não é fácil escolher a informação verdadeira, restando-nos apenas a mais verosímil, a contradição é fundamental para detectar a presença da gralha. Ora o texto excessivamente gralhado (do ponto de vista semântico, histórico, factual, etc.) denuncia anomalias do referente. Por isso a ciência não engana ninguém, ludibria com a verdade: se a Nessie fosse realmente um animal, nenhum naturalista a teria classificado como espécie só a partir de uma fotografia em que nada se vê abaixo de uma cabeça e pescoço comprido. A classificação aberrante, ou a gralha monumental, revela o não natural: o monstro do Lochness era um brinquedo[4], tal como a história do dodó e da Hyalonema lusitanica.

- A transcrição é literal e o texto foi o mais possível expurgado de erros. Se escrevo Nevvton, Missões Oatólicas, hortografia, etc., ou cito ou crio - são gralhas e corvos literários.

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Não leia as notas ex-infrapaginais. À maneira de alguns textos científicos, é nessa zona de trevas que ilumino o que é preciso ocultar ou vice-versa. Para o caso de alguém vir a dizer que se sonega informação indispensável. Como Júlio Henriques, com a biografia de Frank Newton, a que dei honras de citação integral. É uma nota de pé de página que Bettencourt Ferreira e Banha de Andrade manifestam ter lido, o que é extraordinário.

Também as uso para referências a textos que não duplico na bibliografia. Não se estranhe que algumas remetam para diários do governo ou boletins oficiais, sem a data completa de publicação. Com estes sábios homens aprendi que a legislação se referencia apenas pela data de assinatura do acto legal, significando isto que, para confirmar as informações de Gossweiler, por exemplo, percorri mais de três vezes as colecções do Diário do Governo, sem conseguir localizar algumas. Gossweiler gralhou-as quase todas, imaginou uma, e há duas que definitivamente não encontrámos. Uma delas, relativa à exoneração de Newton. Também falta a nomeação de Rudolfo Ferreira Lima, de que só encontrei a exoneração[5]. No caso da de Newton, a não existir, isso pode significar que depois da Guiné ainda foi explorar outros territórios, nada impedindo então de pensar que é bem capaz de só ter morrido em 1925, e em S. Tomé, como alguém crocitou a Exell. O rosa-cruz muda periodicamente de lugar e de identidade, e para isso tem antes de desaparecer. 

O espião também.

 O que não pode deixar de consultar, por ser um enigma ainda não decifrado, é a Errática. Decerto vai encontrar muita gralha que nós não conseguimos detectar, dada sobretudo a falta de cartas da Nova Atlântida. Não confundo com elas grafias diversas da mesma palavra, devidas a aportuguesamento de vocábulos indígenas, e a diversas normas da ortografia da nossa própria língua. Por isso não normalizei ortografia nenhuma, nem de topónimos nem de antropónimos. De modo geral, certa grafia, mesmo quando a redacção é minha, pertence ao texto a que me reporto.

Sem a Errática, não saberá que fontes e informações permitem os comentários que vou tecendo às movimentações do nosso nobre viajante. Para outras dúvidas, tem à sua disposição mais dois anexos, o das espécies descritas por Bocage, e uma síntese do que para mim é mais importante na maior parte dos artigos de cientistas nacionais e estrangeiros que estudaram os exemplares coligidos por Francisco Newton. Além disso, ainda pode recorrer à secção Documenta.

Não será ocioso informar que o objecto do trabalho não é a fauna nem a flora, esse é o objecto da investigação zoológica e botânica. O nosso corpus é constituído por textos, são textos o que comento. Mesmo quando falo das plantas e dos animais, não são plantas nem animais que tenho à frente, sim textos que os referem. De Francisco Newton nada podemos saber, o conhecimento foi-nos vedado. Do mito dele, sim; ficará a conhecer muito bem essa cabala hermética.  


[1] Várias listas relativas à “Colecção Newton - em Timor. AhMB, Rem.-279. Uma, delida, com letra de Newton.

[2] O triângulo e o três são as mais clássicas marcas da maçonaria.

[3] Ver-se-á, na transcrição de actos legais, que Newton era um informador do Ministério da Marinha. Começou por ser nomeado por Pinheiro Chagas, quando este sucedeu a Bocage no cargo. Pinheiro Chagas não era admirador de Bocage, foi a este que anexou o seu homem, era então Bocage ministro dos Estrangeiros. O pomo da discórdia centrava-se na Sociedade de Geografia, onde se debatiam as contraditórias políticas ultramarinas. Newton era um agente secreto, por isso tinha por força de enviar muita informação.

[4] A história passa regularmente na televisão, no canal Discovery ou no Odisseia.

[5] Este episódio é delicado, por isso aparecerá no momento oportuno em nota ex-infrapaginal.