MIGUEL GARCIA

Francisco Miguel Gouveia Pinto Proença Garcia
ANÁLISE GLOBAL DE UMA GUERRA
(MOÇAMBIQUE 1964-1974)

Dissertação para a obtenção do Grau de Doutor em História
Universidade Portucalense
Orientação dos: Prof. Doutor Joaquim da Silva Cunha e
Prof. Doutor Fernando Amaro Monteiro
Porto . Outubro de 2001

III Capítulo - Os povos de Moçambique e o seu comportamento no confronto. O relacionamento das comunidades sócio-religiosas de Moçambique com o Poder português e com a subversão.
Conclusão

Até às independências dos Estados Unidos da América do Norte e do Brasil, o Continente Africano não constituiu um objectivo prioritário da expansão europeia. O esforço português naquele Continente começou a afirmar vulto com o Marquês de Sá da Bandeira, surgindo já no texto constitucional de 1838 um regime especial para o Ultramar, correspondendo à visão mítica da herança sagrada e do eldorado.

O fundamento do interesse europeu por África e a sequente expansão obrigariam à definição de esferas de influência, apenas através de tratado vinculado pelos diversos Estados interessados. Foi após a Conferência de Berlim de 1884-1885, introdutora de normas e objectivos relativos às ocupações futuramente verificáveis nas Costas do Continente Africano, que se efectuaria a partilha. Com a ordem internacional em mutação (pois entre os factores ponderáveis acabara a hegemonia inglesa e surgira o Império Alemão), as pretensões portuguesas na África Austral objectivavam-se cartograficamente num plano horizontal conhecido pelo “mapa cor de rosa”, contrário ao plano expansionista vertical inglês Cabo-Cairo e concorrente com outros.

A definição das fronteiras de Moçambique processou-se por tratados com a Alemanha, Inglaterra, África do Sul e Zanzibar; porém, nos espaços ali definidos, a soberania portuguesa exercia-se de uma forma ténue, não abrangendo de forma alguma a totalidade do território. A ocupação efectiva exigida em Berlim foi-se fazendo através de acordos com as autoridades nativas e, quando assim pacificamente se não conseguiu, impôs-se em campanhas e manteve-se através de comandos e sub-comandos de administração militar (depois circunscrições e postos de administração civil), ou então por meio de Companhias Majestáticas.

Durante a Monarquia, Portugal esforçou-se sempre por manter os territórios africanos, expostos à cobiça das grandes potências; em diversas ocasiões, também os governos vigentes após a instauração da República tiveram de defender, tanto internacional como localmente, a integridade ultramarina portuguesa.

Após a publicação do Acto Colonial em 1930 (onde se procurava, na visão ultramarina da época, coordenar o princípio da unidade política com o da descentralização administrativa), a mística imperial usufruía do consenso da maioria das elites e da unanimidade da massa nacional. O Estado não alienaria, de modo algum, qualquer parte dos territórios e dos direitos coloniais de Portugal.

A prática constitucional do Estado nos governos de Salazar e Marcello Caetano, quanto aos territórios portugueses em África, voltava-se para a defesa e desenvolvimento dos mesmos, a despeito de algumas flutuações conceptuais, sobretudo em torno dos desideratos de “assimilação”/”integração”. A Constituição de 1933, que institucionalizou o Estado Novo, definia os territórios ultramarinos como parte integrante de Portugal. Em 1951 inseria-se mesmo o Acto Colonial na Constituição, reafirmando-se o princípio da unidade nacional e procedendo-se a uma alteração apenas formal.

Com o fim da Guerra de 1939-1945, as divergências surgidas entre as duas maiores potências dela emergentes conduziram à divisão do Mundo em dois Blocos e a um estado de tensão conhecido por “Guerra Fria”. No seguimento disto e após a Conferência de Bandung, os novos Estados resultantes do movimento de descolonização ali catalizado desenvolveriam a fenomenologia do terceiro mundismo, do neutralismo e do não alinhamento, vindo a constituir um “grupo de pressão” hostil a quanto subsistisse de situações coloniais. A Assembleia Geral da ONU influía, de acordo com os interesses do momento, nas decisões tomadas, com as consequências daí advindas, excepto, claro está, para eventuais... autodeterminações das Ilhas Havai, das Repúblicas islâmicas sob controlo soviético e mesmo de territórios ainda hoje sob pavilhão francês (como a Nova Caledónia, a Reunião, etc.). Como é natural, a Moral, porque voltada aí para a Política, era para interpretar a favor da Força. Seria absurdo interpelar os EUA ou a URSS sobre autodeterminações em falta.

Na crescente concorrência pelas zonas de influência, a África era um objectivo importantíssimo para aqueles que pretendiam a hegemonia mundial, sendo o caso português, na persistência integradora, um evidente empecilho para a prossecução das estratégias globalistas. Os territórios ultramarinos portugueses foram assim alcançados pela transformação do mundo numa zona de excepcional confluência das superpotências e, logo das competições e/ou dos acordos de bastidor que, entre si, visavam o predomínio. No caso da África Austral, traduzia-se sobretudo no controlo da rota do Cabo. Ao não aceitar a ordem internacional ou ao não perspectivar como ela evoluiria, Portugal, não revendo uma estratégia, identificava-se com o “orgulhosamente sós” da expressão de Salazar. Aliás ela não era, note-se, no campo pragmático, tão absurda assim nos apoios (de bastidor...) prestados por países como a França e a Alemanha Federal.

Em 14 de Dezembro de 1955, na ONU, quando inquirido nos termos do Art.º 73º da respectiva Carta, Portugal respondia que os seus territórios ultramarinos já “eram independentes com a independência da Nação”, pelo que o imperativo era o de manter, defender e desenvolver o Ultramar. A argumentação sustentada perante as Nações Unidas e a comunidade internacional foi a mesma desde o dia da admissão naquela Organização até à adesão formal ao princípio da autodeterminação; princípio afinal nunca aplicado, a despeito da Lei N.º 7/74, de 27 de Julho de 1974.

Com a bipolarização de forças, a estratégia indirecta impôs-se, alargando-se o âmbito da Guerra, nestas áreas periféricas de desempate, do campo convencional ao da confrontação interposta com cariz ideológico. As superpotências vieram, assim, a apoiar os movimentos independentistas que se apresentavam à partida dispostos à inclusão na zona de influência da superpotência apoiante. Na acção subversiva e na revolucionária, metódicas e eficientes, ultrapassando os conceitos de frente e retaguarda, também o apoio de organizações como as ONU e a OUA desempenhou papel relevante, legitimando a luta e internacionalizando-a como convinha. Todavia, foi sobretudo o apoio bilateral das superpotências que permitiu manter os movimentos ao nível de representatividade conseguido, até mesmo quando líderes seus foram recebidos na Santa Sé em audiência papal.

Neste contexto, e apesar dos esforços levados a efeito pela Administração Portuguesa para isolar os territórios africanos do processo internacional, o País aguentou durante treze anos os encargos humanos e materiais da longa frente de batalha estendida da Guiné ao Rovuma.

A decisão anunciada por Salazar de enviar soldados para Angola, “rapidamente e em força", expressa ou conformadamente foi aceite pela grande maioria do país; o apego ao Ultramar era também um factor de ordem cultural, caracterizador da personalidade comportamental portuguesa ao longo da História. Só feneceria quando tudo se cansou de tanta espera...

O Governo Português tomou a decisão de ficar nos cenários do desafio, lembrando lutas por aqueles territórios, de motivação externa como aconteceu com a imposta no Norte de Angola em 1961; essa pressão legitimava em absoluto o exercício da legítima defesa consagrada no Direito Natural e na lei internacional.

Salazar, pressionado na resposta política urgente, passa então por uma ténue abertura e enceta conversações com os EUA, em princípio disposto à adopção de uma plataforma evolutiva da política portuguesa para o Ultramar. Dessa fase inicial de pragmatismo no tratamento da situação (sim, mas sem ser com prazos; sim, quando os Africanos estivessem prontos para se governar), Salazar acabou por remeter-se para uma intransigência rígida, sem apesar de tudo desdenhar, de maneira nenhuma, as acções secretas de Jorge Jardim... Esta mudança de atitude fez evoluir Portugal para um modelo próximo do que hoje podemos designar por Estado de segurança nacional, muito sensível aos efeitos da estratégia indirecta e procurando demonstrar ao sistema de defesa ocidental a importância da nossa integridade territorial para o equilíbrio e eficácia do todo.

Com a subida de Marcello Caetano ao Poder, esperou-se uma abertura do Regime através da política de “renovação na continuidade”, não se tendo, no entanto, passado de uma continuidade não reformulada ou quase só formalmente assim acontecida. Quanto ao Ultramar, a última revisão da Constituição foi mais ambígua do que inovadora, revogando o conceito estratégico nacional do Título VII, sem substituí-lo por outro. Subsistiu o “modus vivendi” político, oscilando o subjectivismo colectivo, quanto ao futuro, entre a forma unitária do Estado e uma estrutura federal com particular reflexo na autonomia política e legislativa dos territórios.

Desde o princípio, o último Governo da Constituição de 1933 sabia obviamente que enfrentava uma guerra prolongada. Segundo regras características, a subversão persistia devido principalmente aos apoios externos; o objectivo era a conquista progressiva da adesão das populações. Porém, na linha de continuidade de Salazar, sob Marcello Caetano as Forças Armadas permaneciam oficialmente como chamadas a colaborar em “operações de polícia” contra actos de agressão preparados e desencadeados de territórios estrangeiros.

Até aos acontecimentos em Angola, em finais de 1960, a Oposição organizada ao Regime nunca lhe colocou a tónica das suas críticas na questão colonial. Neste âmbito, para o vulgo, o Regime e a Oposição pareciam aparentemente caminhar lado a lado, com o passo, a olho nu, certo, divergindo nas metodologias mas não nos princípios. Apenas a partir da segunda metade da década de cinquenta, e na sequência, enfim, da política traçada no Congresso dos Povos Oprimidos de Baku em 1920, o PCP assumiria uma militância anti-colonial.

Só a partir da campanha de 1965 passou a descolonização a ser acento tónico do discurso da “Oposição” assim conhecida, a par da persistente e eficiente acção clandestina do PCP. Sem embargo, as primeiras denúncias da política ultramarina do Regime haviam partido: cerca dos anos 40, do Capitão Henrique de Paiva Couceiro (herói das campanhas de África a conspirar desde 1911 a restauração da Monarquia, e colocado sob residência fixa nas Canárias pela ajuda franquista ao Regime); nos anos 50, de elementos ligados à chamada “Situação” (como o Capitão Henrique Galvão), de alguns vultos do Integralismo Lusitano (como o Dr. Luís de Almeida Braga, o Dr. Hipólito Raposo, o Dr. José Pequito Rebelo) e de outras personalidades agindo isoladas como, por exemplo, o ex-caudilho do Nacional-Sindicalismo (Dr. Francisco Rolão Preto); sem esquecer, evidentemente, o General Humberto Delgado, antigo vulto saliente do Regime.

A Oposição acabou por se exprimir no Movimento Anti-Colonial, no meio estudantil, nas associações culturais, nas organizações religiosas, etc.. O desgaste psicológico camuflado atingiria também as fileiras, pois a explosão da dimensão do contingente levaria a que as Unidades fossem inundadas todos os anos por jovens recém-licenciados ou ainda estudantes universitários. Este fluxo provocava a diluição do Quadro Permanente (com valores incutidos no decurso da preparação militar profissional) na imensidão do Quadro de Complemento, com valores “laicos” imunes, é claro, à Educação Militar e Cívica de um Curso de Oficiais Milicianos de 6 meses....”Laicismo” na adopção de uma postura de base e de práticas que determinariam lenta quanto progressiva modificação dos militares do QP em relação ao Poder, neles minando a apetência de “servir” que lhes fora progressivamente falecendo; fenómeno de agonia do espírito castrense em curso já no advento da República, quando desaparecia da ribalta a brilhante pleiade de Oficiais forjada em torno de D. Carlos I.

Deu-se então, pelo estremecimento do tecido social, a ultrapassagem de uma aristocracia militar, que não o fora (percentualmente) tanto por nascimento, mas sobretudo porque se assumia no elitismo de um “apelo” inexprimível face ao perigo e mesmo à morte; estado de espírito patente, por exemplo, nas cartas de Mouzinho de Albuquerque a sua mulher (“...que linda ocasião, Maria José, eu hoje perdi para morrer! “), sem falar na sua célebre epístola ao Príncipe Real D. Luís Filipe, mensagem emblemática de uma vocação altíssima. Era a atracção romântica/exaltada de “viver perigosamente” (que, décadas depois, o Fascismo mussoliniano exploraria). Vocação que Salazar, de estilo pessoal todo alheio aos arrebatamentos do Duce ou ao “panache” de Franco, desencorajou discreta quão habilmente no meio militar (como aliás nos demais), empenhado como estava em garantir hábitos nacionais de estabilidade e equilíbrio.

A epopeia de África (na transição do século XIX para o século XX) ou a heroicidade de muitos passos da acção portuguesa nas frentes da 1ª Guerra Mundial eram, assim, naturalmente arrumados para as evocações dos dias do Juramento de Bandeira. E bastava..., enquanto no Quadro do Complemento grassavam um anti-militarismo e um anti-elitismo programados desde o pós-1939/45, conforme demonstrava toda uma propaganda a nível mundial, que nenhuma Censura conseguiria deter, sobretudo se de perspicaz ou preparada nada tivesse, como era o caso.

Na situação social, política, administrativa e psicológica do território moçambicano encontravam-se reunidas as condições propícias ao desenvolvimento de actividades subversivas, visando a tomada técnica do Poder. A parca e não raro qualitativamente fraca ocupação administrativa e as forças militares então existentes no Norte do território, de maneira nenhuma preparadas para o tipo de hostilidades a surgir, permitiram, com relativa facilidade, que a FRELIMO desenvolvesse uma apreciável actividade de guerrilha e, simultâneamente, fosse conquistando a adesão activa de parte ponderável das populações. Favoreciam ainda a actividade frelimista a fraca densidade populacional de certas áreas e uma ténue presença europeia no “mato”. Estes factores, adicionados a uma favorável conjuntura internacional e a alguma tradição de resistência de povos daquele território à soberania europeia, catalisaram a propagação subversiva que, tal como um incêndio, progrediu por fases, com limites mal definidos; mas, note-se, com uma implantação que não chegou de maneira nenhuma a ser total. Assim, por exemplo, no Distrito mais populoso (1.000.000 de habitantes) de Moçambique (depois chamado de Nampula, onde se instalou o Comando-Chefe) não se registou em 10 anos de guerra qualquer acto de hostilidade física, pequena que fosse, à “tropa” portuguesa, nem tão pouco às autoridades administrativas.

Constituíram-se no território diversos movimentos independentistas; porém, apenas a FRELIMO, apesar das cisões internas, conseguiu expressão a todos os níveis. Ao iniciar-se a luta revolucionária armada, em Setembro de 1964, o Poder português fora desafiado a competir com aquela Frente no controlo das populações, com isso se iniciando o desgaste nas estruturas locais do Estado. A FRELIMO mobilizou a população por fases, preconizando uma resistência política, económica, cultural e armada, sendo a luta pelas armas formulada como meio para a obtenção da libertação nacional. O inimigo, afirmavam as lideranças do movimento, era o sistema “colonial-fascista” português, e não o povo de Portugal propriamente dito. Dicotomia hábil visando enfraquecer o moral das tropas e da opinião pública em geral.

Com o colapso no Estado da Índia, a imagem das instituições militares ficara fortemente lesada. A tristeforma revestida pela queda do Poder português em Goa (enão tanto o factor, em si mesmo evidentemente inevitável, da derrota naquele cenário), com o posterior achincalhamento público do Governador-Geral e Comandante-Chefe, levou o QP das Forças Armadas, perante o problema da guerra em África, à preocupação de “guardar a face”; logo à perspectivação convencional de “ganhar” ou “perder”, deslocada no terreno desta guerra.

Inicialmente, tal factor psicológico impediu que o confronto nos territórios africanos fosse encarado nas suas características específicas. Até aí, a formação do Quadro Permanente e mesmo a perspectiva da Guerra permaneciam as clássicas. Repensada com o correr dos tempos e das realidades essa posição, as Forças Armadas passaram do conceito de ganhar ou perder para o de “aguentar”; de resto, ao sabor da expressão de estímulo usada pelo Chefe do Governo. Ora, para “aguentar” até um momento político X, o Poder (em todas as vertentes e, de forma alguma, só na militar) teria de desencadear uma muito mais alta e integradora contra-subversão, concertando e promovendo acções políticas, sociais, administrativas, psicológicas e militares. Para desenvolver essa intercomplementaridade de actuações, careceria de uma estratégia e de uma manobra forçosamente totais, a nível interno e a nível externo. Ao “aguentarem”, as Forças Armadas alimentavam o tempo da manobra política; logo, o seu objectivo prioritário e essencial era o de entretanto garantirem a mobilidade das outras primeiras componentes da complexidade estratégica.

As iniciativas desencadeadas pelas autoridades portuguesas face aos movimentos independentistas nos diferentes teatros de operações, exigindo uma acção muito estreita entre Poder civil/Poder militar e as populações, podem ser inseridas em quatro grandes linhas orientadoras constituintes da designada “resposta possível” para a afirmação da soberania, a deverem coordenar-se estreitamente: acção política, acção militar, acção sócio-económica, acção psicológica; todas obviamente simultâneas. Esta estratégia da “resposta possível” portuguesa colhe-se de um vasto leque de guerras revolucionárias, no contexto da Guerra Fria; a eficácia da organização global da contra-subversão dependia do espírito de cooperação entre as autoridades civis/militares. E dependia totalmente, o que nenhum dos componentes do binómio conseguiu, na prática, aplicar q.b..

Apesar do conhecimento dos movimentos independentistas e da sua doutrina, a reacção portuguesa, a despeito do grande e dilatado esforço, foi lenta nas aplicações adequadas à guerra revolucionária, confinando-se sobretudo à vertente armada da resposta (que, mau grado as formulações doutrinais em contrário, nunca deixou de utilizar dominantemente como convencional). Atraíu com isso pesado ónus para a instituição militar. Esta por sua vez não o declinou como deveria e a experiência já ensinara em todos os teatros similares; não exigiu a co-responsabilização de todo o aparelho civil.

No entanto, procurou sempre, na disputa pela população, preservar a que tinha sob seu controlo, dissociar o binómio população/inimigo e captar população sob dupla pressão através de uma manobra global em que as acções psicológica e social desempenharam papel de certo relevo, embora muito insuficiente; determinando nas suas directivas o permanente contacto com as populações, por forma a que a acção conducente à sua conquista fosse profunda e, quando necessário, se tomassem medidas de controlo. Sem embargo, com grandes carências de meios e do “conhecimento de causa”.

Em sentido lato, podemos afirmar que se realizaram operações militares de grande e pequena envergadura, em apoio das forças e das autoridades administrativas; face ao evoluir da situação, alteraram-se os comandos e dispositivos por forma a adaptar o emprego dos meios militares e implementar uma colaboração mais funcional entre os comandos militares e as autoridades administrativas. A resposta militar assentou ainda numa evolução doutrinária, baseada nos homens da designada «geração NATO» e numa crescente localização de efectivos. Esta alteração da base de recrutamento crescente como dissemos, mas insuficiente, reduziu as despesas, conseguiu uma sustentabilidade em tempo e manteve o conflito sob controlo. A localização dos quadros das Forças Armadas servia também a Lisboa de arma preciosa para o reforço da legitimidade política necessária ao confronto e para alimentar a propaganda do carácter não- racial da actuação portuguesa.

Com base num dispositivo de quadrícula, competia às operações militares impedir o alastrar das actividades inimigas armadas, actuando punitivamente sobre os grupos que prejudicassem a manobra sócio-económica e de aliciamento das populações, expulsando-os da zona de esforço por acções de retaliação e acções punitivas, e procurando ao mesmo tempo aliciá-los para o lado da autoridade constituída. Aquelas operações tinham também um carácter preventivo de vigilância e de controlo nas áreas ainda não sublevadas, eliminando qualquer foco existente, evitando ao mesmo tempo o isolamento de qualquer parcela do território e garantindo a segurança tanto dos centros ou regiões importantes das actividades básicas como dos elementos fundamentais da infra-estrutura económica; portanto cooperava na acção psico-social e no apoio às populações.

A inversão do curso da guerra com o reorientar das acções da FRELIMO para o Distrito de Tete e para o avanço em direcção a Sul, fez gorar parte dos efeitos da acção militar desencadeada até então. O Comando-Chefe tentou neutralizar a expansão subversiva, nomeadamente garantindo a protecção dos objectivos económicos e dos eixos de comunicação, procurando não descurar também a promoção social e económica das populações que tinha sob seu controlo; isto apesar de a responsabilidade primária da acção social competir às autoridades civis. As Forças Armadas ultrapassaram assim as suas competências, também com isso assumindo o ónus de "aguentar a guerra".

Na guerra revolucionária, as populações (aquém e além do artificialismo das fronteiras) constituem o objectivo principal, pelo que era forçoso o seu conhecimento e respectivo accionamento; logo, também, dos mecanismos informais de comunicação que transcendem as fronteiras clássicas, revestindo-se de importância extrema, no contexto de Moçambique, o sócio-religioso, pois potencializado pela presença de muito largas comunidades muçulmanas.

Para compreender e accionar aqueles mecanismos informais na sua concepção global de defesa, o Poder português teria carecido, logicamente, de deter o completo conhecimento do panorama religioso; das estruturas familiares e dos seus elementos dominantes, ou das legítimas (nem sempre as legais) autoridades tradicionais; nomeadamente, na generalidade, de como funcionavam os canais de comandamento e accionamento, para, no mínimo, serem perceptíveis numa carta de situação quais as trajectórias utilizadas pelas acções do In, pois não há subversão/contra-subversão que não use ou não vise itinerários humanos.

Nesta ordem de ideias, o Poder, através das suas estruturas, designadamente de Informações, efectuou diversos estudos e difundiu-os aos vários escalões com capacidade para actuação sobre as populações. Porém, estes trabalhos acabavam por ter pouco impacte e ressonância na rendibilidade das Operações (portanto ao nível táctico); era como se os conhecimentos da Informação se perdessem no trajecto das cúpulas para os Sectores e destes para os escalões inferiores. Além do mais, os diversos organismos que trabalhavam as Informações dependiam de tutelas diferentes, existindo ainda canais informais como Jorge Jardim; surgiam pois falhas que induziam muitas vezes o Governo Central em erro, relativamente a várias situações. Aquelas falhas, segundo Fernando Amaro Monteiro, deviam-se sobretudo a uma inadequada (ou mesmo ausente) coordenação do esforço de pesquisa e a uma disfunção na análise global, com consequências graves para a viabilidade de uma basicamente fraca Acção Psicológica. Assim, face ao elevado grau de importância da resposta em tal âmbito, teria sido necessário o Poder português, segundo o mesmo analista, reservar para si, nesta guerra, o controlo total e unificado do binómio Informações/Acção Psicológica.

Apesar de na concepção de defesa adoptada por Portugal existir unanimidade quanto à vital importância do papel desempenhado pelas populações, foi necessário iniciar uma preparação dos seus quadros acerca das estruturas clânicas, tribais e sócio-religiosas das sociedades negras (situação que a subversão magistralmente detinha e utilizou). Aquela realidade era reconhecida apenas quase como princípio académico, pelo que a tendência continuou a ser mais para uma actuação convencional, conducente à posição de contabilizar armas e documentos capturados ou a população recuperada ou apresentada.

O Poder português actuava ciente de que a FRELIMO dispunha da aceitação de um importante sector da população moçambicana. Era no interior das áreas onde a subversão se manifestava violentamente que a FRELIMO contava com a adesão da esmagadora maioria dos Nianjas e Macondes e com a acomodação dos Ajauas. Fora daquela zona, considerava-se que não tinha adesão de Lomués, Macuas e Metos, os quais constituíam o apoio da contra-subversão. Os Maraves, maioritariamente, simpatizavam com a FRELIMO, assim como algumas ligações clânicas Meto e, até 1967, algumas hierarquias islâmicas na área de Maúa/Marrupa/Balama/Montepuez/Mecúfi. A FRELIMO exercia pressão sobre o grupo Macua, esforçando-se por conseguir a sua adesão, no mínimo, pelo silêncio das autoridades tradicionais. Sabia-se ainda que a subversão se estendia ao litoral norte, exercendo constante pressão sobre os Suaíli.

As populações de origem europeia residentes no território, normalmente mal informadas pelos media (forçados a simples reflectores do optimismo oficial de um regime cerrado à “Operação Verdade”), mantinham-se apegadas a expectativas meio-apáticas. Sem saber como enfrentar o fenómeno, assumiam o papel de espectador, deixando-se conduzir pelo boato, que propagavam; assumindo comportamentos alheado no Sul, derrotista no Norte, e censurando o Exército. O alastrar da guerra às proximidades dos centros urbanos levou-as a uma culpabilização das Forças Armadas e a um afastamento algo hostil destas. Para muitos, o esforço militar era desnecessário e contribuía para agravar o custo de vida; para a maioria dessa população, a guerra era entre os militares vindos da Metrópole e os Negros das regiões fronteiriças do Norte. No fundo, e sem exactamente o perceber ou muito menos o exprimir, o Branco achava que a guerra convencional dominava a mentalidade dos militares e que a solução teria de ser outra (Política?.. E quando, então?!.). Os militares, por seu turno, aceitavam e proclamavam, sem hesitar, que a guerra era revolucionária; porém, dominando pouco o conhecimento das matérias afins no terreno, introvertiam-se na contemplação de um horizonte indefinidamente prolongado, com tendência para chamarem sobre si o absurdo exclusivo de uma culpa que era, afinal, colectiva.... Presos ao conceito convencional de que lhes cabia, e só ou sobretudo a eles, “ganhar” ou “perder” a guerra. Certas autoridades administrativas, que pouco ou nada mais sabiam do que a “tropa” no plano técnico da contra-subversão, procuravam apontá-la como “bode expiatório”; tal agravava a fissura civil/militar.

As diversas comunidades religiosas existentes no território, com o objectivo de preservarem estatutos ameaçados e até interesses materiais, colaboravam quer com a Administração Portuguesa quer com a FRELIMO, conforme os casos e regiões.

No plano sócio-religioso tradicional, constituíam indício técnico praticamente seguro da passagem de uma determinada área à fase de envolvimento na subversão armada, os apelos aos chamados poderes intermédios ; independentemente das variantes, fenómeno presente em grau de risco mais ou menos intenso ou de tensão comunitária, como foram os casos do alastrar da subversão violenta por diversas vezes no território. As apwiyamwene, que devido à sua autoridade mítica aconselham e são sempre ouvidas e acatadas por imperativo transcendente, desenvolveram papel de destaque tanto na aceitação da subversão como na promoção das redes de apoio à FRELIMO; a sua intervenção chegou mesmo a ser interpretada como “solução única” para o accionamento e controlo das populações e, logicamente, para a rejeição da subversão.

O Clero Católico, que na ordem política, mas mormente no terreno, se identificava profundamente com o “Poder Colonial” (sobretudo pelo Acordo Missionário e pelo respectivo Estatuto), na sequência do Concílio Vaticano II e durante a guerra procurou diligentemente “descomprometer-se”, como já antes alguns Prelados vinham fazendo em Angola e Moçambique. Certos elementos enveredavam por excessos nesse aggiornamento, revelando-se contrários à soberania portuguesa no território; hostilizando a Administração Portuguesa e as Forças Armadas nas homilias; chegando a colaborar no fornecimento de Informações e no apoio logístico às guerrilhas em operações (nestas práticas, sobretudo padres estrangeiros).

As Missões protestantes (responsáveis, através da sua actividade educativa, pela formação de vários elementos das futuras elites da FRELIMO) eram dominadas por estrangeiros e mostravam franca hostilidade à soberania portuguesa; apoiavam também logisticamente e em Informações todos os movimentos independentistas; desenvolviam campanha internacional contra Portugal e a sua política ultramarina; algumas confissões (sobretudo a Metodista Livre) apoiaram ainda e controlaram diversas seitas nativas cristãs, nelas estimulando orientação nitidamente contrária aos interesses portugueses.

As comunidades muçulmanas mostraram também a sua gritante importância. Entre 1964 e 1974 seriam alvo inestimável, quer para a FRELIMO, quer para a Administração Portuguesa, tanto por acção como por omissão. O Poder português necessitou de deter o completo conhecimento da tessitura islâmica de Moçambique, designadamente a articulação e comandamento interno e externo, para assim ser capaz de negociar com os de início incógnitos polarizadores daquela força sócio-religiosa; de maneira a utilizar, na medida que a descontinuidade de Governadores-Gerais entre 1967 e 1974 ainda assim permitiu, uma massa muçulmana que em 1974 se estimava em 1.200.000 pessoas distribuídas por áreas vitais, mormente do Rovuma ao Zambeze.

Até 1967, o comportamento tendencial das massas islamizadas, vinha sendo habilmente aproveitado pela subversão, pois esta as estimulava e utilizava na medida dos seus interesses. Quer por reacção ao espírito pós-conciliar, quer pelo cálculo de contrastarem com o comportamento daqueles elementos do clero católico que enveredaram por excessos no aggiornamento, quer ainda pelos resultados do plano de Acção Psicológica estudado nos SCCIM desde 1965 e depois aplicado em parte, os pólos articuladores muçulmanos, após certa hesitação inicial, sustentaram a Administração Portuguesa de forma assás activa entre 1967 e 1972 (após o que entraram em retracção cautelar até 25 de Abril de 1974). A aliança das etnias islamizadas com o Poder português era, no fundo, de conveniência, sem paralelamente deixar de constituir sinal de coerência, porquanto, sendo espiritualista o Islão, seria “contra-natura” a aliança com o recorte ideológico da FRELIMO.

O interessante nesta guerra (se acaso o conceito de guerra, cruento, consente mesmo literariamente o ápodo de interessante...) é o não ter sido igual à de Angola ou da Guiné, reforçando a lição que das três, na globalidade subversiva/revolucionária, se pode tirar: em nenhum conflito, mormente desta natureza, se podem aplicar “NEP´s” extraídas dos anteriores ou sequer dos concomitantes.

O factor diferença/surpresa é permanente, como permanentes são o fluir da História e a diversidade dos cenários e dos homens.

 
 

 




 



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