FRANCISCO PROENÇA GARCIA

A IMPORTÂNCIA DAS INFORMAÇÕES
na condução da guerra em Moçambique (1964-1974) (5)

..
2.2. As Informações e as comunidades religiosas.
.

O panorama religioso de Moçambique apresentava, nos seus aspectos fundamentais, sintomas de ansiedade messiânica e libertadora. No sentido da necessidade de alertar os Quadros para a importância do problema, que tendia a ser subestimado, para servir de apoio e orientação na tarefa do conhecimento do meio humano onde a luta se desenrolava, e tendo em vista o estabelecimento de processos válidos na conquista da adesão das populações (enquanto a atitude religiosa fosse desfavorável a Portugal as populações dificilmente adeririam à causa portuguesa), o QG/RMM, em Outubro de 1967, difunde o Supintrep N.º 23, “Panorama religioso de Moçambique” (1).

Por seu lado, e na perspectiva da subversão técnica, também se procurava a manipulação do campo das crenças e mitos tradicionais para conduzir as populações e obter a sua colaboração (activa e passiva). Não se podia prescindir, para movimentar as massas, de “(...) tudo quanto tais crenças enquadravam ou veiculavam, mesmo se transpirando um tribalismo que a guerra arvorava querer destruir (...)” (2).

..
2.2.1. Igreja Católica
..

Pelo Acordo Missionário, foram criadas três Dioceses em Moçambique: Lourenço Marques, Beira e Nampula. Em 1954, é criada a Diocese de Quelimane, desmembrando-se a da Beira. Em 1957, é criada a Diocese de Porto Amélia, desmembrando-se a de Nampula. Em 1962 são criadas as de Tete e Inhambane, e em 1963 a de Vila Cabral.

Todas as Missões Católicas eram portuguesas e dependentes exclusivamente do Bispo da diocese. Podiam, no entanto, pertencer ao Arciprestado de uma Ordem religiosa estrangeira em que os Padres, na sua maioria ou totalidade, não eram Portugueses.

O facto de algumas Missões Católicas fornecerem apoio a elementos da FRELIMO, era naturalmente, considerado pelo Poder português como uma atitude de colaboracionismo com o inimigo. As Missões Católicas, assim como as populações, estavam por vezes entre fogo cruzados: de um lado as autoridades portuguesas, do outro a FRELIMO. Algumas, nas áreas mais nevrálgicas, a despeito de serem vigiadas pelo Exército e/ou pela PIDE/DGS, eram visitadas pela guerrilha, que obtinha apoio em alimentação, roupas e medicamentos, quando não em informações. Esta situação que criou problemas à Igreja, que se via coarctada na sua missão evangelizadora, levou a que alguns Bispos interviessem junto dos responsáveis do Poder português, por escrito e pessoalmente, em defesa quer dos missionários quer das populações (3).

As Forças Armadas Portuguesas tinham o seu próprio entendimento do papel desempenhado pela Igreja Católica durante a guerra. Nesta conformidade, a 2ª Repartição do Quartel-General analisou o problema no Supintrep “Panorama Religioso de Moçambique”, documento que além de aludir à evolução do Catolicismo em Moçambique, focando os aspectos dominantes da sua penetração e da sua estrutura, tece também considerações, julgadas pertinentes, sobre o comportamento de alguns missionários e Missões e a respectiva influência na subversão. Refere-se naquele documento que não se pretendia marcar nenhuma posição nem sequer estabelecer ou sugerir normas que regulassem os procedimentos dos militares para com determinadas Missões. Apenas se intentava esclarecer o pessoal militar sobre as possíveis causas das ilegalidades de membros de certas Missões, e informar, ainda que sumariamente, sobre as suas actividades (4).

Quanto à atitude da Igreja Católica relativamente à subversão, o Supintrep é extremamente cauteloso no tratamento do assunto, alertando para a necessidade de evitar generalizações em que, “(...) lamentavelmente, caem alguns relatórios sobre o procedimento francamente hostil dos sacerdotes católicos nas áreas subvertidas (...)” (5), pois, ainda com base naquele documento, era forçoso reconhecer que a maioria dos missionários católicos existentes naquela Província possuía um elevado sentido de servir e as suas actividades estavam ao abrigo de qualquer suspeita; era de salientar a diferença de atitude dos missionários portugueses da de alguns dos estrangeiros. Atitudes desfavoráveis destes últimos eram interpretadas quer como uma continuação das posturas políticas dos seus países de origem, quer pela preocupação de “descomprometer” a Igreja das suas ligações com o “colonialismo”. Mostravam-se receptivos à propaganda subversiva, que lhes prometia “(...) um lugar de evidência, após a expulsão dos colonialistas portugueses (...)” (6), pelo que certos elementos optariam por uma política de circunstância, devido ao receio de identificação da Igreja com a presença portuguesa em África. Assim, assumiam com frequência atitudes consideradas hostis à Soberania portuguesa, encobrindo actividades de carácter subversivo e, por vezes, colaborando directamente com elas. Salienta-se que estas atitudes pareciam corresponder à convicção de assim se poder fazer o descomprometimento da Igreja.

O mesmo Supintrep, ainda na parte respeitante à Igreja Católica, exibe uma particularidade que o distingue de toda a documentação analisada ao longo deste estudo: apresenta uma classificação mais elevada do que a atribuída ao Supintrep, que é de Confidencial. Esta singularidade deve-se a instruções recebidas no Gabinete do Comando-Chefe para rever a situação de melindre, susceptível de levantar algum mal-estar nas relações entre o Estado e a Igreja. Deste modo, a solução encontrada consistiu em atribuir às folhas que referiam comportamentos hostis de algumas missões a classificação de “Secreto”. Estas seriam distribuídas num envelope, em separado, às Unidades que tinham responsabilidades nas áreas daquelas missões (7).

D. Eurico Dias Nogueira, na época Bispo de Vila Cabral, comenta este relatório no seu livro “Episódios da minha missão em África”, referindo ter ficado impressionado com as inverdades nas referências às Missões, o que criaria para com elas a animosidade dos militares (8). Pensamos, no entanto, que a análise feita pelo Quartel–General da Região Militar, provou com o tempo que o comportamento de alguns missionários, sobretudo estrangeiros, era de facto contrário aos interesses portugueses no território, levando com justiça à sua expulsão ou à não–renovação dos vistos de entrada.

..
..
..

(1)  Idem, Quartel General da Região Militar de Moçambique, “Panorama religioso de Moçambique”, Supintrep N.º 23.

(2) Monteiro, Fernando Amaro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964-1974)”, p. 205.

(3) Idem, p. 31.

(4) ADIEMGFA, Quartel General da Região Militar de Moçambique, “Panorama religioso de Moçambique”, Supintrep N.º 23.

(5)  Idem.

(6) Idem.

(7) Depoimento do General Pedro Cardoso em 8 de Agosto de 1995.

(8) Nogueira, D. Eurico Dias, “Episódios da minha Missão em África”. Braga: Diário do Minho, 1995, pp. 74-76.