NEM CONSTRUTIVISMO NEM POSITIVISMO:
META-EPISTEMOLOGIA HISTÓRICA E ARQUEOLOGIA

ALESSANDRO ZIR*

Introdução

O texto que a seguir lhes apresento faz parte, como um anexo, da minha dissertação de mestrado, intitulada Para uma discussão dos aportes teóricos sobre a cognição: o surgimento da metafísica da subjetividade no a priori histórico do século XVII. Nessa dissertação, procurei reconstruir um panorama histórico para dar sentido a noções como evidência, mente, representação, sensação, signo, sujeito, as quais são quase sempre empregadas quando refletimos sobre os processos cognitivos, sem que tenhamos, não obstante, muita consciência do que queremos dizer com elas, de como elas se relacionam entre si, de onde elas surgem. Para reconstrução de um tal panorama, eu me apoiei principalmente em Foucault (As palavras e as coisas) e Hacking (O surgimento da probabilidade). A meu ver, ambos autores têm metodologias de trabalho muito parecidas, as quais podem ser chamadas respectivamente arqueologia e meta-epistemologia histórica. Pois bem, no que se segue, o leitor encontrará o meu entendimento do que sejam essas duas abordagens, e espero ter sido bastante fiel aos seus "criadores". A palavra criadores vai aqui entre aspas, porque, conforme veremos a seguir, os conceitos que utilizamos, e por conseguinte, as teorias que temos e as metodologias que empregamos estão menos sujeitos às nossas decisões do que se poderia pensar, e eles se desenvolvem num espaço que lhes é próprio. Ou seja, ninguém propriamente cria conceitos, teorias, metodologias, etc. A meu ver, constatando esse fato, podemos avançar não apenas com relação a determinadas abordagens de tipo positivista, as quais se obstinam em reduzir a ambigüidade intrínseca a alguns conceitos através de análises e distinções lingüísticas, mas também com relação a determinadas abordagens de tipo construtivista, as quais pretendem reduzir a dinâmica inerente aos mais diversos conceitos a explicações em termos de relações de poder.

Meta-epistemologia histórica

Numa conferência recente, que pretende dar um panorama geral da sua obra, Hacking (1999) retoma idéias que o tinham levado à elaboração de O Surgimento da Probabilidade, a fim de defender um determinado tipo de investigação filosófica que ele ainda considera importante. Primeiro, apoiando-se também em pesquisas realizadas por outros autores, Hacking sugere que o problema da indução, formulado por Hume, vincula-se a uma certa concepção das crenças como codificações de fatos particulares. Seria possível dizer que essa concepção histórica, fruto de determinadas práticas sociais, teria dado origem, inclusive, à filosofia transcendental kantiana:

[Ao final do Tratado, Hume] não deu nenhuma explicação de si mesmo, do "eu" que acumula as impressões e é uma unidade. No esquema que ele fornece, todas as impressões são particulares, e se há alguém que as acumule, esse alguém também é particular. Disso, então, tenho uma idéia de pessoa, uma idéia de mim? Kant levou essa questão tão a sério que se lançou na proposta de um dos mais sólidos absurdos que são a reserva das verdadeiras grandes figuras que levam a sério o raciocínio filosófico: a unidade transcendental da apercepção. Cada uma das minhas informações a respeito de qualquer coisa está acompanhada da informação de que sou informado. Dessa forma, o fato particular [...] gerou a filosofia transcendental (Hacking 1999: 13).

Em segundo lugar, não necessariamente apostando na plausibilidade dessa hipótese (de que a filosofia transcendental kantiana teria sido gerada pelo surgimento histórico de uma categoria como o 'fato particular'), Hacking, contudo, a apresenta como um possível exemplo daquilo que ele chama de "meta-epistemologia histórica", naquilo que ela teria de relevante para a filosofia:

Isso é apenas uma indicação de como uma meta-epistemologia histórica pode ser relevante para a filosofia. [...] essas concepções são familiares para mim, porque eu tive a idéia, ao escrever o Surgimento da Probabilidade, que os problemas filosóficos são criados quando o espaço de possibilidade no qual organizamos nosso pensamento se modifica (1999: 13).

A meta-epistemologia histórica proposta por Hacking seria uma investigação de modificações históricas no espaço das possibilidades de organização do pensamento, as quais contribuem, entre outras coisas, para a criação dos problemas filosóficos. Uma das influências que despertou em Hacking o interesse por tal tipo de investigação foi justamente o livro As Palavras e as Coisas de Michel Foucault.

Arqueologia

No prefácio de As Palavras e as Coisas, Foucault fala de três regiões - os códigos fundamentais de uma cultura, a reflexão do pensamento sobre esses códigos e a experiência "nua da ordem":

Os códigos fundamentais de uma cultura ( aqueles que regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas ( fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar. Na outra extremidade do pensamento, teorias científicas ou interpretações de filósofos explicam porque há em geral uma ordem, a que lei geral obedece, que princípio pode justificá-la, por que razão é essa a ordem estabelecida e não outra. Mas, entre essas duas regiões tão distantes, reina um domínio que, apesar de ter sobretudo um papel intermediário, não é menos fundamental: é mais confuso, mais obscuro e, sem dúvida, menos fácil de analisar. [...] Assim, entre o olhar já codificado e o conhecimento reflexivo, há uma região mediana que libera a ordem no seu ser mesmo: é aí que ela aparece, segundo as culturas e segundo as épocas [...]. De tal sorte que, essa região "mediana", na medida em que manifesta os modos de ser da ordem, pode apresentar-se como a mais fundamental [...]. Assim, em toda a cultura, entre o uso do que se poderia chamar os códigos ordenadores e as reflexões sobre a ordem, há a experiência nua da ordem e de seus modos de ser (1995: 10-11).

Os códigos fundamentais de uma cultura são regras que fixam para cada homem numa dada cultura sua linguagem, os esquemas perceptivos, os sistemas de troca, as técnicas, etc. da comunidade em que ele nasce. A reflexão do pensamento sobre esses códigos constitui-se de teorias, interpretações a respeito desses códigos que procuram justificá-los diante de outras ordens possíveis. Entre os códigos e a reflexão, há a experiência "nua da ordem", que não pode ser nivelada e reduzida nem aos códigos explícitos que procuram fixá-la e nem à reflexão que se faz sobre esses códigos. Temos, assim, o seguinte esquema:

      • códigos fundamentais de uma cultura
      • experiência nua da ordem
      • reflexão do pensamento sobre esses códigos

A experiência nua da ordem foi até aqui definida de forma apenas negativa, por contraposição às outras duas regiões do esquema. Para podermos dizer melhor o que ela é, convém nos valermos de alguns esclarecimentos que Foucault faz na Arqueologia do Saber, a respeito da sua metodologia (mais exatamente, da metodologia dos seus três primeiros livros (A História da Loucura, O Nascimento da Clínica e As Palavras e as Coisas): 1) essa região intermediária, da "experiência nua da ordem", que se poderia chamar de pré-discursiva, não está dissociada de discursos, de textos, de enunciados, falados ou escritos, não só palavras mas também gráficos, listas, esquemas; 2) ela é a região da dispersão desses enunciados.

Enunciado tem aqui um significado extremamente importante. Em Arqueologia do Saber, Foucault define enunciado como "uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que [essas unidades e estruturas] apareçam, com conteúdos concretos no tempo e no espaço" (1997: 99). Essa formulação, aparentemente enigmática, deve ser entendida da seguinte maneira: um enunciado é uma espécie de arranjo possível que, observado a partir de sistemas lógicos ou lingüísticos, constitui coisas como proposições, frases, etc. Mas o enunciado não está ao lado, nem acima, nem abaixo de frases ou proposições, ele "está sempre dentro de unidades desse gênero, ou mesmo dentro de seqüências de signos que não obedecem às leis dessas unidades" (1997: 128) **.

A análise da região intermediária, da experiência nua da ordem, traça os desdobramentos múltiplos dos enunciados, suas irrupções, muitas vezes descontínuas, que as reflexões e as interpretações outras tantas vezes mascararam sob a forma de unidades explicativas. É uma análise que revela essa região como um "a priori histórico", conforme já dizia Foucault, em As Palavras e as Coisas:

No presente estudo é essa experiência [nua da ordem] que se pretende analisar. [...] Tal análise, como se vê, não compete à história das idéias ou das ciências: é antes um estudo que se esforça por encontrar a partir de que foram possíveis conhecimentos e teorias; segundo qual espaço de ordem se constituiu o saber, na base de qual a priori histórico e no elemento de qual positividade puderam aparecer idéias, constituir-se ciências, refletir-se experiências em filosofias, formar-se racionalidades, para talvez se desarticularem e logo desvanecerem (1995: 11).

A priori histórico, episteme

O termo a priori histórico, conforme explica Foucault em Arqueologia do Saber, não designa uma condição de validade de juízos ou verdades que não se poderia formular, mas a maneira mesma como os enunciados emergem, subsistem, coexistem uns com os outros, se transformam, desaparecem em práticas discursivas (1997: 146-147). O desdobramento dos enunciados é um espaço concreto em que idéias, ciências, teorias, conhecimentos lutam por se estabilizar. Em As Palavras e as Coisas, Foucault também chama esse espaço de "positividade" e de "episteme":

[...] o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistémê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma outra história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade; nesse relato, o que deve aparecer são, no espaço do saber, as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico. Mais que de uma história no sentido tradicional da palavra, trata-se de uma "arqueologia" (1995: 10-12).

Conforme diz Foucault em Arqueologia do Saber, a episteme, revelada pela análise arqueológica, não deve ser considerada como "um tipo de racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época" (1997: 217) - ela não se separa do conjunto problemático de relações que se podem descobrir entre enunciados em determinados discursos. Qualquer redução dessas relações a um sistema de postulados ou qualquer subsunção delas a um sujeito, empírico ou transcendental, poderá ser, do ponto de vista da arqueologia, uma atitude precipitada. Podemos ver então o valor crítico dessas abordagens de Foucault e de Hacking, que ao meu ver, constituem um contraponto às reflexões e às pesquisas que tradicionalmente são empreendidas tanto na Filosofia quantos nas chamadas Ciências Humanas.

Bibliografia

ERIBON, D. Michel Foucault. St-Amand: Flammarion, 1999.

ERIBON, D. Michel Foucault e seus Contemporâneos. Rio de Janeiro: Zahar, 1996

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997

FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995

HACKING, I. Historical Ontology: from the creation of phenomena to the formation of character. Robert and Maurine Rothschild Lecture, 1999

HACKING, I. The social Construction of What? Harvard Univ. Pr., 1999

HACKING, I. El Surgimento de la Probabilidad. Barcelona: Gedisa, 1995

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*ALESSANDRO ZIR – Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), Brasil. Mestre em Psicologia Social e Institucional pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Atualmente tem trabalhado como tradutor e é membro do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências (GIFHC) da UFRGS.

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**Assim, enquanto função o enunciado tem quatro características: A) Os enunciados, se não têm referentes, tem referenciais: "um enunciado não tem diante de si [...] um correlato (ou uma ausência de correlato, assim como uma proposição tem um referente (ou não) ou um nome próprio designa um indivíduo (ou ninguém). Está antes ligado a um 'referencial' que não é constituído de 'coisas', de 'fatos', de 'realidades' ou de 'seres', mas de leis de possibilidade, de regras de existência para o objetos que aí se encontram nomeados, designados ou descritos, para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas. O referencial de um enunciado [...] define as possibilidades de aparecimento e de delimitação do que dá à frase o seu sentido, à proposição o seu valor de verdade" (1997: 104). B) Um enunciado mantém uma relação com um sujeito que não pode ser reduzida à relação que o enunciado tem com aquele que o articulou, que o proferiu: "Se uma proposição, uma frase, um conjunto de signos podem ser considerados 'enunciados', não é porque houve, um dia, alguém para proferi-los ou para depositar, em algum lugar, seu traço provisório; mas sim na medida em que pode ser assinalada a posição do sujeito. Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer); mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo o indivíduo para ser seu sujeito" (1997: 109). C) "Um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados" (1997: 112) ( o que quer dizer que ele tem sempre relações com outros enunciados, as quais variam, por exemplo, se ele é tomado como um enunciado literário, ou científico, ou como uma profecia, etc. D) Um enunciado tem sempre uma existência material: conforme repetido, rescrito, transcrito, ele pode permanecer o mesmo mas também pode ter seu status alterado. Uma frase dita por um escritor na vida real ou colocada por esse mesmo escritor na boca de um personagem de um dos seus livros não será necessariamente o mesmo enunciado. A proposição de que 'a terra é redonda', dita antes ou depois de Copérnico pode ter de ser considerada a mesma proposição (por ter sempre, quem sabe, as mesmas condições de verdade), mas não precisa ser considerada o mesmo enunciado.