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ANTÓNIO DE MACEDO
Inquisição E Tradição Esotérica: Acção E Reacção No Colonialismo E Ex-Colonialismo Do Império Português
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III - INQUISIÇÃO E REAL MESA CENSÓREA


Tive o cuidado e a paciência de consultar os catálogos e os índices de «livros defesos» que se publicaram em Portugal nos séculos XVI, XVII e XVIII e pareceu-me possível chegar a algumas conclusões interessantes.

A mais imediata, em traço grosso e antes de esmiuçarmos um pouco, é que há duas fases bem distintas na preocupação global dos censores e na genérica actividade inquisitorial: a primeira, durante os séculos XVI e XVII, prende-se sobretudo (além de superstições, imoralidades e bruxarias várias) com as «heresias» judaica e protestante - como se o judaísmo fosse uma heresia do cristianismo, quando é precisamente o oposto...-, e a segunda incide em larga medida, já no século XVIII (e igualmente para além de superstições, imoralidades e bruxarias várias), sobre os escritos e os autores do Iluminismo. Até 1768 a censura em Portugal esteve quase só nas mãos de membros da Igreja católica: dependia do Tribunal do Santo Ofício, a quem competia a elaboração e a publicação dos «índices expurgatórios», mas não exclusivamente: na prática, os livros tinham de passar por três entidades e exigiam seis aprovações indispensáveis: duas do Santo Ofício, duas do Ordinário e duas do Desembargo do Paço (Marques 1963, 8).

Por outro lado, constatei que autores interessantes para a corrente teosófica e rosacrucista europeia como Mestre Johannes Eckhart, Trithemius, Marsilio Ficino, Jacob Bohme, Basílio Valentino, Bernardo Trevisano, George Ripley, Nicolas Flamel, Pico della Mirandola, John Dee, Simon Studion, Robert Fludd, Elias Ashmole, Athanasius Kircher, Henrique Khunrath, J. Valentin Andreae, Michael Maier, Valentin Weigel... não constam desses índices - e Paracelso só aparece no de 1624. Desconhecimento? Atraso? Desinteresse em Portugal? Em contrapartida, neles não faltam os nomes e as obras, por exemplo, de Guilherme d'Occam, Joaquim de Fiore, Ramon Llull, Arnaldo de Vilanova, Maquiavel, Cornélio Agrippi, João Reuchlino, Paulus Riccius, Dante (De Monarchia), Ariosto, Judá Abravenel ou Leão Hebreu (Dialoghi d'Amore), Erasmo, Guilherme Postel, Jerónimo Cardano, além de, claro, João Huss, Lutero, Calvino, Melanchthon e TODAS as edições da Bíblia em língua vulgar - a Igreja só deixava circular a Bíblia em latim, por considerar perigoso que o povinho a lesse numa língua acessível e começasse a tirar as suas próprias conclusões!

Dois autores pouco citados mas fundamentais para a tradição esotérica ocidental, e que se diz terem influenciado as introvisões místico-ocultas de Shakespeare, foram Horapollon e Andreas Alciatus. O livro Hieroglyphica, do primeiro, cujo manuscrito foi descoberto em 1422 em Florença, suscitou um grande interesse entre os humanistas, empenhados em decifrar os símbolos místicos de que a obra está repleta, e teve larga divulgação... A Inquisição ignorou-o. O segundo compôs um livro ainda mais estranho e misterioso, Emblematum Liber, com 212 emblemas enigmáticos e proféticos e publicado pela primeira vez em 1531. Apenas no índice de 1624 se lhe faz uma breve referência, não para o proibir mas para expurgar alguns dos emblemas, poucos e pouco significativos... Ignorância dos Inquisidores?

A partir de 1768 e por obra da mão férrea e totalitária do Marquês de Pombal, a função de proibir livros passou da Inquisição (órgão da Igreja) para a recém-criada Real Mesa Censórea (órgão do Estado) - ou seja, o Marquês percebeu rapidamente que os livros são mais perigosos que as pessoas, e, como já se tinha livrado dos Távoras em 1759 e do que eles representavam, não se importou que a Inquisição continuasse a queimar gente, porque a partir de então quem se encarregaria de «queimar» os livros suspeitos seria ele. Aliás esta partilha de poderes entre instituições, inquisitória e régia, não foi difícil de estabelecer: o Inquisidor-Geral - cardeal Paulo de Carvalho - era irmão do Marquês de Pombal... E lá vêm, no «Catálogo de livros defesos neste Reino» da Real Mesa Censórea, os nomes e as obras de Espinosa, Tomás Morus, Rabelais, Hobbes, La Mettrie, Voltaire, Diderot, Hume, Rousseau, Condorcet, John Locke, Goethe... e até La Fontaine!, não faltando os Exercícios de Santo Inácio de Loyola - como seria de prever, com a raiva que o Marquês tinha aos jesuítas... (Marques 1963,118 segs.).

Apesar das medidas rigorosas de proibição, os livros interditos continuavam a entrar em Portugal, trazidos por viajantes ou mesmo de contrabando, e por conseguinte eram lidos e conhecidos pelos que se dedicavam ao estudo de matérias consideradas «heréticas» ou «perigosas» (Sá 1983, 17). Um dos exemplos mais significativos é o de Frei Vicente Nogueira (1586-1654) , em cuja livraria, que foi confiscada pela Inquisição, se encontravam os autores e os textos mais importantes do hermesismo e; em geral, da occulta philosophia (Centeno 1995, 31). Estas práticas .«ilícitas» prolongaram-se até aos fins do século XVIII, e as próprias listas oficiais de «Livros defesos» eram utilizadas pelos intelectuais e por numerosos estudantes para fazerem encomendas! Os livros podiam ser encomendados secretamente pelos livreiros estabelecidos a fim de servirem clientes de confiança, incluso com falsos títulos e encadernações enganosas, ou através dalgum diplomata estrangeiro residente em Portugal (Ramos 1974, 8-13).

 

A SEGUIR: AS QUEIMAS DE LIVROS