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ANTÓNIO DE MACEDO
Inquisição E Tradição Esotérica: Acção E Reacção No Colonialismo E Ex-Colonialismo Do Império Português
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X - Culto do Espírito Santo - Profetismo - V Império - Sebastianismo


Vieira foi beber a sua crença apocalíptica e patriótica, além de em Bandarra (condenado a abjurar, em 1545, pelo Santo Ofício), nas profecias que eram atribuídas a S. Frei Gil de Santarém (c. 1185-1265), cujo lendário pacto com o diabo haveria de inspirar mais tarde a lenda do doutor alemão Fausto (c. 1480-1540): «São Frei Gil, religioso português da Ordem de São Domingos, de cujo espírito profético se dará notícia em seu lugar, diz assim: Lusitania, sanguine arbata regia, diu ingemiscet; sed propitius tibi Deus; insperate ab insperato redimeris: "Portugal, por orfandade do sangue de seus reis, gemerá por muito tempo; mas Deus lhe será propício e, não esperadamente, será remido por um não esperado"» (Vieira 1983,79). Estava lançado o mito profético do Encoberto e do V Império...

As festas do Império e do Divino Espírito Santo, celebrando o Pentecostes e encenando simbolicamente o advento da Terceira Idade do mundo de acordo com a visão trinitária do abade Joaquim de Fiore, terão sido institucionalizadas pela rainha D. Isabel e por D. Dinis, por volta de 1323, provavelmente na vila de Alenquer. E porquê Alenquer? «A sede da Igreja do Pai fora Jerusalém, a do Filho, Roma. A Terra Santa vindoura [do Espírito Santo] onde situá-la? [. ..] [O]s iniciados na doutrina dos Spirituali franciscanos identificavam-na com Alenquer. Segundo eles, essa era a povoação portuguesa que maiores semelhanças tirava de Jerusalém, a qual constitui no círculo judaico-cristão-islâmico o modelo paradigmático da Cidade Santa, o pólo teofânico por excelência» (Gandra 2003, 217-218).

«A principal cerimónia da Função, Folia ou Império, consistia, salvo ligeiras variantes regionais, na coroação com três coroas, uma imperial e duas reais, do Menino Imperador assessorado por dois reis - um homem jovem e outro idoso -, respectivamente na razão das idades do Espírito Santo, do Filho e do Pai» (Gandra 1997, 5). O carácter fiel-do-Amor (ou infiel de Roma!) está na óbvia contestação da corrupção e do fausto inevangélico do papado: o Menino representa a inocência sem a qual não se entra no Reino de Deus (Marcos 10, 15), e os dois «reis», escolhidos entre os pobres, representam a «pobreza voluntária» (o ideal do Poverello!) que considera o fausto de Roma como um insulto à verdadeira práxis de Jesus e à dignidade humana.

Será bom relembrar que a rainha D. Isabel era filha de Pedro III de Aragão e de D. Constança, filha de Manfredo da Sicília (c. 1232- 1266) que confrontou o papado violentamente e foi excomungado duas vezes. Este avô de Isabel, Manfredo, era filho do Imperador Frederico II, do Sacro Império Romano (Germânico), também excomungado duas vezes pelo papa. Entre outros projectos políticos e de conquista territorial, sobretudo em Itália visando os Estados Pontifícios, Frederico II opôs-se a que o ceptro imperial fosse outorgado pelo papa, continuando assim as guerras entre o Império e o papado - já referimos a sangrenta oposição entre Gibelinos e Guelfos -, guerras essas iniciadas por Frederico Barba Roxa que havia decidido estabelecer a supremacia do Império e limitar a autoridade do papa aos assuntos espirituais (Dieta de Besançon, 1157). Por sua vez o rei D. Dinis era neto de D. Afonso II, que, nas leis que fez promulgar nas Cortes de Coimbra (1211), criou sérias limitações à autoridade eclesiástica, o que deu azo aos conflitos entre a monarquia portuguesa e o papado que haviam de prolongar-se aré ao reinado de D. Dinis. No prólogo dessas leis de 1211, D. Afonso II expende uma doutrina que teria ido beber em mestre Julião e em mestre Vicente: «Este afirmava, na esteira de Hoguccio, que o Imperador recebe directamente de Deus o poder sobre as coisas temporais, dependendo da Igreja apenas naquilo que decorre do espiritual, sublinhando ainda que, na Hispânia, o rei se assemelhava a um Imperador, porquanto não recebia o gládio do papa» (Gandra 2003, 115-116).

Não surpreende portanto que Dinis e Isabel, com estes antecedentes, para além das influências de Joaquim de Fiore e dos franciscanos Spirituali, tenham dado o impulso que deram às «heréticas» Festas do Império e do Espírito Santo...

Este Império que se opõe ao papado, descobrira-o António Vieira, na Bíblia, como o Quinto que sobrepujará todos os outros. Para Vieira, «a dimensão temporal da criação divina é vislumbrada na tensão entre a Queda e a Redenção, sendo aquela referida à figura da sucessão dos quatro impérios (Assíria, Babilónia, Pérsia e Roma, ou Assíria, Pérsia, Grécia e Roma). Ao analisar Daniel 2, 27-45 e 7, 1-27, e Zacarias 6, 1-15, Vieira descobre o anúncio de um Quinto Império, inscrito na economia providencial da justiça divina e tornado necessário pela superabundância da Graça redentora (cf. Romanos 6, 20-21), entendida como poder santificante e causa eficiente tendente a realizar-se, na natureza e na história, pela deificação de todo o existente» (Borges 1995, 322).

Segundo a antiga Tradição Mistérica, o Livro de Daniel, onde Vieira bebeu a inspiração do V Império, é um Manual da Iniciação do Fogo, relacionada alquimicamente com a Calcinação, a Transmutação e a Sublimação - os Quatro Impérios; logo, o Quinto será o da Nova Ordem Crística, cujo Umbral é guardado pelo Leão, símbolo da Hierarquia do ígneo signo do Leão, tal como Cristo enunciou: «Quem não nascer da Água e do Espírito [Fogo] não pode entrar no Reino de Deus» João 3, 5), ou seja, o Reino da Nova Ordem de Cristo (Heline 111-1986, 464-511).

Por sua vez o Sebastianismo, tão intimamente associado a este conjunto de mitolusismos-profetismos, teve uma curiosa e dúplice relação com o Santo Ofício: enquanto durou o domínio filipino, a Inquisição reprimiu o Sebastianismo como coisa ímpia (por óbvias razões políticas!), vejam-se por exemplo os casos dos sebastianistas Frei Miguel dos Santos ou Frei Estêvão Caveira de Sampaio, que foram enforcados e esquartejados, respectivamente em 1595 e 1603 (Rêgo 1981, 182-183); depois da Restauração de 1640, eram os próprios familiares do Santo Ofício que defendiam o Sebastianismo: a um religioso de S. Jerónimo que duvidava do futuro regresso de D. Sebastião, lhe disse o inquisidor, ameaçando-o, em certo dia de Outubro de 1671: «V. Padre tem obrigação de crer que EI-Rei D. Sebastião é vivo e há-de vir; e se assim o não fizer, saiba que sou Familiar do Santo Ofício e o hei-de prender e levar à Inquisição». Muitos, incluso sacerdotes, davam por certo que D. Sebastião, quase cem anos após a sua «morte» (ou o seu mítico «eclipse», como Enoch ou Elias...), já tinha saído da Ilha Encoberta com dois mil galeões carregados de gente, munições e ouro, acompanhado pelo Rei Arthur de Inglaterra mais as nove Tribos ocultas de Israel (Rêgo 1981, 185-186).

XI - Brasil e Goa
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Além do Livro de Daniel, Vieira descobrira também no Livro de Isaías um acrescido apoio para a sua tese profética, nos passos onde se diz que um sinal divino será dado às «costas e ilhas distantes e a povos longínquos» (Isaías 49, 1; 66, 19): «Digo primeiramente que o texto de Isaías se entende do Brasil, porque o Brasil é a terra que direitamente está além e da outra banda da Etiópia, como diz o profeta: quae est trans flumina Aethiopae [Isaías 18, 1], ou como verte e comenta Vátablo: terra quae est sita ultra Aethiopiam, quae (Aethiopia) scatet fluminibus [. ..] E assim é na geografia destas terras, que em respeito de Jerusalém, considerado o círculo que faz o globo terrestre, o Brasil fica imediatamente "detrás da Etiópia'» (Vieira 1983, 148).

É um facto bem conhecido que o luso mitologema do V Império prolonga e explicita a tradição pentecostal portuguesa, que, expressando-se nos festejos populares da coroação do Menino Imperador do Espírito Santo e da coroação dos dois pobres como reis, que a Inquisição reprimiu, se espalhou e mantém viva sobretudo nos Açores e no Brasil:

«...no interior do país imenso que é o Brasil, os arquétipos culturais, levados pelos portugueses de quinhentos e de seiscentos, afeiçoados embora à terra, à psicologia e à criatividade cultural do seu povo, persistiram com um vigor surpreendente. Tal como os mitos do Encoberto e do Quinto Império [. ..] , a Festa do Divino lançou raízes na alma do povo do Brasil. E a tal ponto que, se o Brasil, ao tornar-se independente em 1822, adoptou a forma de Império, foi devido, mostrou Agostinho da Silva, às Festas do Império, por ser uma palavra a que o povo estava habituado, entendendo por ela o Império do Espírito Santo» (Quadros 11-1987, 102-103).

A História o testemunha: o eminente estadista brasileiro José Bonifácio de Andrada (1763-1838), que se formara em Filosofia pela Universidade de Coimbra e aos 26 anos já era sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, homem da confiança de D. Pedro, não só foi incumbido de organizar o primeiro ministério do governo brasileiro, como se lhe deve a decisão de que ao mais alto cargo político do novo país caberia o título de imperador. Diversos autores confirmam que a relevância das Festas do Império e do Espírito Santo, no Brasil, contribuiu fortemente para essa decisão, além de que o novo imperador, D. Pedro I, só concordou em adoptar o título de Imperador do Brasil desde que o acto de aclamação ocorresse, como ocorreu, no palacete do Campo de Santana, no Rio de Janeiro, onde anualmente se aclamava o «Imperador» nas Festas do Divino (Gandra 2003, 60-61).

A peculiar heterodoxia lusitana que, sob a externa aparência de submissão a Roma, nos vem do Rosacrucismo Templário da Fundação e da linhagem joânica dos Fiéis-do-Amor, convergentes na Ordem dos Cavaleiros de Cristo, transferiu-se a longes terras, desde o Brasil a Goa: não terá sido por acaso que essa «Des-Colonização» - aqui entendida em quanto acção inversa de uma «colonização» fiel a Roma - assumiu formas que roçavam o heretismo, como nos demonstram, por exemplo, os contactos que desde D. João II e durante um século e meio os portugueses mantiveram activamente, em diversas embaixadas e em apoio político-militar, com os cristãos coptas da Etiópia - o mirífico reino do Preste João (Daehnhardt 2000, 105-120).

Quando Vasco da Gama chegou à Índia, uma das suas primeiras preocupações foi contactar os cristãos de São Tomé: as relíquias deste santo veneravam-se em Meliapor, importante porto comercial da Costa do Coromandel. Rezava uma antiga tradição que o apóstolo Tomé, que recebera as «palavras secretas de Jesus» segundo lemos no Evangelho que leva o seu nome - um apócrifo rejeitado pelo canonismo Romano -, partira para terras do Oriente onde evangelizara os partos, os medos, os persas, acabando por se fixar na Índia; dizia-se mesmo que no ano 53 d. C. fundara sete igrejas na Costa do Malabar. Morreu em Meliapor, martirizado, e nesse local se ergueu uma igreja. O cronista João de Barros, nas suas Décadas da Ásia, narra com brio e vivacidade o emocionante encontro dos dois grupos de cristãos, os de São Tomé e os do Almirante Vasco da Gama, gerando-se um excelente convívio que persistiu ao longo dos reinados dos governadores e vice-reis portugueses na Índia durante a primeira metade do século XVI: as diferenças de culto não impediram que se dessem bem os católicos de Portugal e os cristãos de São Tomé (Ferreira 2000, 51-52).

Os cristãos de São Tomé obedeciam ao rito nestoriano da Igreja síria e conservavam a liturgia caldaica do patriarcado da Mesopotâmia. Defendiam, como as primitivas comunidades iniciáticas cristãs e os Rosacruzes, que Jesus (filho humano de José e de Maria) e o Cristo (divino Logos) são duas entidades distintas, unidas mistericamente num Alto Iniciado, o Cristo-Jesus. Em 1558 começaram as primeiras repressões sobre os cristãos de São Tomé, por parte do clero católico, com a apropriação abusiva dos ossos do santo que, sem autorização dos seus legítimos guardiães são-tomenses, foram trasladados de Meliapor - local tradicional de peregrinação onde se conservavam há mais de 15 séculos - para Goa, acabando por ser depositados, em 1560, numa igreja mandada edificar por ordem da rainha espanhola D. Catarina, mulher de D. João III (Ferreira 2000, 122-131). O Tribunal do Santo Ofício começou a funcionar em 1561 em Goa e logo em Damão, Diu, África Oriental, Ormuz, Malaca e Macau, e os principais visados não eram os muçulmanos ou os hindus, mas sobretudo os cristãos acusados de heresia, fossem eles «judaizantes» ou cristãos de São Tomé - sobretudo estes últimos, designados como «arménios nestorianos» -, havendo notícias de terem sido queimados vivos em autos-de-fé, como por exemplo no de 1612 (Baião 1945, 275).

XII - Conclusão provisória
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Termino este passeio pela missão histórico-mística de Portugal, durante os cruciais séculos XV a XVIII, com a observação de Rainer Daehnhardt de que de todos os eventuais inimigos do Tribunal do Santo Ofício, os piores não eram os que professavam outros credos, mas os cristãos que não se submetiam à vontade de Roma: «A pergunta mais pertinente, que afligiu todos os monarcas Iniciados portugueses, era a de saber se queriam construir um MUNDO PORTUGUÊS CRISTÃO ou CATÓLICO! Ainda hoje, para a maioria da população, ser cristão ou ser católico é considerado o mesmo. Para os coptas, os cristãos são-tomenses e os Templários rebaptizados em Cavaleiros de Cristo, não era!» (Daehnhardt 2000, 126-130).

Ainda hoje, portanto - o Mistério português continua.