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ANTÓNIO DE MACEDO
Inquisição E Tradição Esotérica: Acção E Reacção No Colonialismo E Ex-Colonialismo Do Império Português
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VIII - Os Cavaleiros do Amor

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O mesmo Sampaio Bruno, acima citado, elucida-nos a contrario através duma referência que faz a um livro sobre Camões, publicado em 1872, da autoria do general reformado e ensaísta Francisco Evaristo Leoni:

«Petrarca apaixonou-se por Laura na igreja, uma sexta-feira santa; Dante por Beatriz, no mesmo lugar onde se entoavam os louvores divinos; e Boccaccio refere que Panfílio se enamorou de Fiammetta num templo, durante a missa; o que é o mesmo que dizer que ele próprio se apaixonou por uma filha de Roberto, rei de Nápoles, na indicada ocasião. Como a moda pegasse, o bolonhês messire Onesto tomou amores numa igreja uma quinta-feira de endoenças (1) e Fizenzoula no dia de Todos os Santos; Guilherme de Nevers cativa-se na igreja pela filha do conde de Nemours; Ausias March, de Valência, por Teresa de Momboy numa sexta-feira de paixão, etc. etc.» (Bruno 1960, 66).

Bruno insurge-se contra a suposição de Leoni de que se trata duma «moda». Afirma-o claramente, um pouco mais adiante: é uma questão gravíssima e em extremo séria e não se trata de imitação literária. O que se passa, diz Bruno, é que o Amor não é exactamente amor, e a Amada, a que faz referência Dante nos versos da Vida Nova que acima transcrevi, não é exactamente uma dama.

Podemos encontrar um princípio de decifração no famoso soneto de Camões onde o poeta relata um dos tais amores entabulados durante a missa:

O culto divinal se celebrava
No templo donde toda a criatura
Louva o Feitor divino que a feitura
Com seu sagrado sangue restaurava.

[. ..]

Deixei-me cativar; mas hoje, vendo,
Senhora, que por vosso me queria,
Do tempo que fui livre me arrependo.

Camões não usa a palavra «igreja», mas «templo», e um outro autor da mesma linhagem, Manuel Faria e Sousa (1590-1649), que escreveu quase toda a sua obra em castelhano, da geração seguinte à de Camões e, como este, também Iniciado na misteriosa Ordem interna dos Alumbrados a que pertenceu Jorge de Montemor, ou Montemayor (cujos livros Obras de Amores Profanos, Obras de Devoción e Diana foram proibidos pelo Índice de 1581), diz num dos seus sonetos:

EI culto celestial se celebrava
Del mayor Viernes en Ia Iglezia pia,
Quando por Laura Franco se encendia,
y Liso por Natércia se inflamava.
Belardo por Luzinda, quando alzava
EI Cielo a si Ia candida Maria:
Ariosto, Alcido, rindense aquel dia
Que Ia Belleza flores consultava...

E mais adiante, remata com a seguinte convicção:

Con reparo tan nuevo, determino
Creer que no es humano Amor, que espera,
Para poder herir, tiempo divino.

Não é decerto Amor humano aquele que é acendido num «Templo», ou numa «Ecclesia», em «tempo divino»... Camões semeou diversas pistas nos seus versos, como neste exemplo da sua lírica:

Quando vim da materna sepultura
De novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelizes obrigado...

Os críticos literários pretendem ver na «materna sepultura» uma alusão à morte da mãe do poeta no momento do seu nascimento, mas ao ter acrescentado «de novo ao mundo» anula essa interpretação: segundo a Tradição Oculta do Ocidente, o útero materno é onde o espírito ingressa, após a morte no mundo Espiritual, para poder reencarnar no mundo material, ainda por cima, no caso de Camões, num dia nefasto, marcado por «estrelas infelizes» - e bem sabemos que o conhecimento da Astrologia, em quanto Ciência Sagrada, sempre esteve associado a esta Tradição Oculta (Monteiro 1985, 107). Tradição a que não é estranho o predomínio de um «platonismo místico» que coloriu o Renascimento, tão diferente do Gótico, que o precedeu, como do Barroco, que se lhe seguiu. Começou a difundir-se no século XV a partir sobretudo das obras de «teologia hermética» e de Astrologia de Marsilio Ficino (1433-1499) e das suas traduções de Platão e dos neoplatónicos; na primeira metade do século XVI, a influência de Ficino já dominava os meios artísticos da Itália e da Península Ibérica. Segundo este ideal, conhecer não é mais do que recordar o que vimos no perfeito mundo dos arquétipos e das ideias, antes de vir de novo ao mundo: a verdade não está nas aparências enganosas dos sentidos, mas na depuração do que é moral ou fisicamente feio para melhor se reatingir a perfeita realidade das ideias (Báez 1955, XII, XVII).

Complementaremos a compreensão do que se passava nessa época se nos lembrarmos que a tradição cavaleiresca, muito forte nos séculos XII a XIV, supunha um misterioso elo entre o que Ramon Llull (proibido pelos Índices de 1561 e 1581) chama a Ordem de Cavalaria - tal como a descreve num pequeno tratado que tem precisamente por título Llibre de l'Orde de Cavalleria - e a Ordem dos Trovadores.

Note-se que Ramon Llull não se refere a «ordens» de cavalaria, esta ou aquela em especial, mas à ORDEM DE CAVALARIA, e no capítulo IV do seu tratado vai mesmo mais longe pois refere-se inequivocamente ao «sacramento da cavalaria» (sagrament de cavalleria), o que pressupõe uma hieropoiésis do conceito (Llull 1987, 67). O nosso rei D. Duarte, autor do livro cifrado e alegórico Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, é um bom exemplo desta Gnose espiritual que vem de longe: a Demanda da Sabedoria equaciona-se com a «cavalaria» em quanto arte «cavaleira», ou «cabaleira» (de Cabala).

IX - A Ordem dos Trovadores
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O mesmo ocorre com a ORDEM DOS TROVADORES, uma Ordem Iniciática com seus ritos e sua linguagem secreta, a argótica, que os estudiosos superficiais de literatura imaginam não ser mais do que um artifício literário onde abundam repetitivas referências ao «Amor cortês», à «Senhora», à «formosa Dama Fulana ou Sicrana», historicamente identificável. A realidade era outra. As «Leis do Amor», estritas e severas, comportavam graus de Iniciação com seus ritos, chaves e limites:

«O primeiro grau é o de feignaire, hesitante, ou melhor: aspirante; o segundo é o de pregaire, postulante; o terceiro é o de entendeire, auditor; e o quarto é o de drutz, amigo ou iniciado. Este último grau era atingido quando, tendo chegado ao 3º grau, entendeire, o fiel auditor era finalmente brindado com o AMOR DA SENHORA, mediante um beijo que ela lhe dava: o osculum fraternitatis. Depois disto ele tornava-se um drutz, um iniciado, um amigo, um verdadeiro Fiel do Amor, servente incondicional da Domina Lux, Senhora-Luz - e a partir de então ele passava a ter o direito de baptizá-Ia» (Aroux 1854, 461-462).

Compreendemos agora por que estes Fiéis do Amor, ou Cavaleiros do Amor, fiéis do Quarto Evangelho, o Evangelho de João o Iluminado, encontravam sempre a sua Amada na verdadeira Ecclesia de Cristo - o Templo: o Corpo do Espírito - durante os Ofícios mais sagrados da Cristandade: o Tempo da Paixão.

Registe-se, parenteticamente, que em Portugal, a Ordem dos Cavaleiros de Cristo, criada pelo drutz D. Dinis, ou Ordo Militum Christi, sucessora da Ordem dos Cavaleiros do Templo, ou Ordo Militum Templi, alicerçou a sua famosa «Gnose Náutica» na Gaia Ciência destes Cavaleiros do Amor, ou Cavaleiros de Amar, ou ainda, e em sua continuidade, Cavaleiros do Mar, que nas caravelas portuguesas deram novos mundos ao mundo...

Quem era afinal a Amada? Quem eram verdadeiramente a Beatriz de Dante, ou a Catarina de Camões, ou a Luzinda, ou a Laura, ou a Fiammetta?

Beatriz é a Beatificatrix, ou Beatrix, «aquela que torna feliz», ou que proporciona a verdadeira felicidade, ou seja, a beatitude, e Catarina é, naturalmente, a Cátara, isto é, a Pura, numa clara alusão a uma das mais importantes «beatitudes» (ou «Bem-aventuranças»): «Felizes os de coração puro, porque verão a Deus» (Mateus 5, 8). E precisaremos de explicar que Luzinda vem de luz, e Laura é o nome da folha, dedicada ao Apolo-Sol (Iaurus = loureiro), com que se coroavam os heróis e os poetas, e Fiammetta é a pequenina chama (pequenina mas poderosa) - a chama do puro Amor?

Esta Beatrix, ou esta Cátara, ou esta Luzinda, que os Fiéis do Amor adornavam com tais nomes aparentemente humanos para dissimular a perfeita Amada, era a Luz da Inspiração Divina, a Hagia Sophia, a Santa Sabedoria, cujo Templo assenta em sete pilares, ou sete colunas, como nos ensina o Livro dos Provérbios (9, 1-6).

Duas linhas convergentes, dissemos atrás, confluem na tradição mistérica e hermesista-profetista portuguesa: o peculiar Rosacrucismo Templário e o Culto Paraclético. Expressão própria aqui adquirem, apesar do sufoco inquisitorial: - o profetismo de Gonçalo Annes Bandarra, cujas Trovas vêm proibidas no índice de 1581; - a luso-mística do V Império visionada por Vieira, encarcerado pelo Tribunal do Santo Ofício e cuja Apologia lá vem proibida no catálogo pombalino de 1768; - e o mitologema do Sebastianismo.

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(1) Dá-se o nome de «endoenças» à celebração eclesiástica da Paixão de Cristo, na quinta-feira santa, e vem do latim indulgentias.
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A SEGUIR: O CULTO DO ESPÍRITO SANTO