SURREALISMO E SÁTIRA
LUIZ PACHECO












IN: LUIZ PACHECO
LITERATURA COMESTÍVEL
Editorial Estampa, Lisboa, 1972


SURREALISMO E SÁTIRA (DE ANDRÉ TOLENTINO A NICOLAU BRETON)

Sacado de "Crítica de Cisrcunstância", 1966, porque o Simões continua a asnear. Não há remédio: o Simões morre estúpido em Surrealismo (e já nem falo no resto)


Invocar o nome de Tolentino a propósito da obra dum poeta surrealista, mesmo português, é ousadia que só o método comparativo-literário do sr. Dr. João Gaspar Simões poderia propor.

E não apenas pelo facto de procurar avoengos oitocentistas para um movimento bem localizado e bem característico deste século o crítico se arrisca a perder o pé na poeira dos tempos e, trambolhando de época para época como O Vagabundo dos Sonhos, cair nalgum saboroso exemplar das cantigas de escarnho ou maldizer, também elas (e por que não?!) surrealistas... Mas, principalmente, porque em muito pequena parte esse argumento de autoridade, chamemos-lhe assim, o favorece na sua missão de julgar a obra e de esclarecer o público.

Procurando demonstrar a sua compreensão (num esforço que se reconhece notório) duma coisa nova, não podem valer ao crítico as comparações forjadas, as aproximações marginais de acontecimentos tão remotamente afastados, no tempo como no significado, tais as sátiras de Nicolau Tolentino e certos aspectos e personalidades da nossa poesia contemporânea, que se diz surrealista, que parece surrealtsta ou que o é, de facto, por um fenómeno de simpatia e de identidade de situações de revolta, que hoje são aqui tão naturais como o eram em França há trinta anos.

Se o crítico estremece perante a novidade, que pressente válida. mas cuja total significação humanamente se lhe escapa (a ele, que teve outra formação), o que deverá fazer, digamo-lo sem pretensões doutorais, é abandonar-se ao seu instinto, ignorar os resíduos do passado, apurar o faro e predispor-se a ouvir essa voz estranha que pela primeira vez se lhe depara, livre de prejuízos e de conclusões apressadas. Levá-Ia diante do espelho acomodatício do passado, é prova de boa vontade, que se agradece, mas a que será de preferir a incompreensão cerrada, a repulsa violenta que marquem limites, definam posições e esclareçam os verdadeiros valores com que cada um joga e, no fundo, estima como seus. Tem João Gaspar Simões tentado captar o mistério da poesia surrealista. Dizê-Io mal informado das fontes estrangeiras dessa corrente é uma afirmação gratuita, ainda que gostássemos que ele dissertasse com mais vagar das figuras máximas do movimento (um Breton, um ÉIuard, um Desnos, um Césaire) e não perdesse tempo com epígonos nacionais duma menoridade evidente. Mas apesar de todas as suas lacunas, como não louvar os dons de simpatia e de liberdade de espírito que o impelem para zonas tão ardentes e perigosas para um presencista ferrenho, isto é, convicto, coerente e militante? Aqui o temos de saudar como caso notável e até ao presente único. E, falando já outra linguagem, havemos de enquadrar esta sua atitude sui generls num plano diferente e que está certo, como veremos.

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Não são para agora os motivos por que não fica mal a um surrealista ser apodado de satírico.

André Breton agitaria a sua bela cabeleira a tal definição (ele tem outras), mas isso é o que menos importa. Estamos em Lisboa, senhores, esta Lisboa que Breton talvez localize nas Baleares, talvez no Brasil... Não tem aqui lugar o distinguo.

Com todas as reservas que se lhe devam objectar (deixaremos isso a certo investigador polemicante, de mentalidade seminarista), pode-se falar de sátira em surrealismo. E de Tolentino, também, caso não haja à mão melhor exemplo. E de Junqueiro. E de Gomes Leal. E de José Gomes Ferreira. E de muitos outros, que não cultivando a flauta trururu do bucolismo e do pirismo sentimental, elementos mistificadores com que não queremos ser mais vezes enganados, reagem furiosamente (como poetas, claro está), contra os compromissos do tempo, todos os compromissos. Satlricos, os surrealistas? Talvez, mas depois.

O leitor é que não se interessa com isso; para ele, que tantas vezes tem sido enganado, uma palavra séria (isto é: verdadeira) mesmo dita a rir, é quanto basta. A contra-prova da autenticidade de tal poesia tira-a ele, facilmente, na experiência da sua vida quotidiana, no pequeno senso-comum das coisas reais que não conhecem a literatura e excedem a imaginação dos poetas, mesmo dos surrealistas...

Como já o notou um crItico de Mário Cesariny de Vasconcelos, é afinal um surrealista que, passando por Álvaro de Campos, nos faz recordar Cesário Verde. Cesário, o das lições de realismo - do torpe negro e feio realismo que não se compadece com as flores da retórica nem com a ervanária colorida dos poetas de arrabalde.

Dirão que o leitor português teve (e tem ainda) em matéria de género romanesco bons pedaços de literatura social, a que não falta o tom pedagógico e influenciável da arte dirigida. Ainda mal. Pois não causará estranheza (em certos meios, pelo menos) ver os leitores desses romances neos, tristes e tão desiludidos, voltarem-se para a linguagem aparentemente mais diflcil da Poesia...

...da poesia do humor negro, da poesia deserta de bons sentimentos, da poesra catástrofe, daquela enfim, que por conter em si todas as perversões e todas as dores do mundo de hoje as denuncia e as incrimina ao severo juízo do mundo de amanhã?