Meto a caminho de Somar. Saem-me à estrada duas bezerras, tasquinhando castanhas. Peço-lhes de que comer, mostra-me uma um naco de pão com carne ou presunto. "Que o reparta", digo. Mas elas são duas toiras muito sabidas e não vão às primeiras com o meu ar tedibói pobretana. A de cá, da direita, é um belo pedaço de mulher, coxas reais, pernas, cabelos e cara, bicho para dar trabalho de cu-abaixo-cu-acima a um batalhão. Vão para um baile ou encontro furtivo. Que as fodam! Dou-me todo a pensar na minha Deolinda e aperto a bolota-talismã. Chego ao local onde a vira primeiro, de manhã, com uma casa afidalgada na curva da estrada e a azinhaga que enviesga para os campos, à direita. Farei referência pela igreja, já que o lugar de Assento é vizinho e depois bisbilhotarei pelos campos, usando o meu faro atiradiço. Onde estará agora a casta diva? Lá se vê a capela, e pergunto a quatro moçoilas onde é o lugar de Assento, "que é por ali", respondem, "então sigam à minha frente que é para eu as ver melhor" , digo, a fingir de domador de potras vadias. Estas são mais novas que as duas de há bocado na estrada, aí entre os 15 ou os 18, mulherzinhas já, mas não fazem concorrência à Deolinda, ah! não, p.q. as pariu! Vão numa grande galhofa, e eu rio-me cá atrás, para saberem que lhes estou interessado nas falas. A que vai do meu lado, à esquerda da azinhaga, é uma loira espigadota, bonitota, provocante; é a que mais vezes se volta e encaro-a com o meu olhar mágico de duzentas megatoneladas e um riso de dizer (e o pior era o bafo, a mosto...) "anda cá, rapariga, estou cheio de tesão por ti, pois não vês?". Vamos neste jogo modesto até ao lugar de Assento e eu já arranjei pretexto para andar por ali, com o meu traje um tanto invulgar: blusão de nylon preto, calças rotas no rabo, sapatos rotíssimos nas solas e sujos de poeira por cima, uma coisa entre o tedibói e o vagabundo, com a pêndula a dar neste quando melhor se reparasse que blusão, calças e sapatos, novos ou rotos, velhos ou rebrilhantes, não iam com o meu corpo por medida senão por força de hábito e contrariados. O pretexto é: que me disseram que a capela ou igreja é muito, muito antiga e tem muito que ver; faço-me de Raul Proença ou Torga, a coscuvilhar raridades perdidas na Província, preocupado com velharias e ossos, quando o que quero são caras e bocas e olhos e risos. E mãos e pernas. Tudo, etc., de mulheres. Dou com a capela aberta: fazem um baptizado. O padre tem cara de cabra doente. Puta que o pariu mais ao pai da criança (que, depois, vim a sabê-lo, está em Angola-é-Nossa. Boa ocasião de conhecer melhor a mãe do neófito, para compensá-la do patriotismo do marido). As raparigas sentaram-se numa pedra e faço o mesmo, mesmo ao pé delas. Então entro em palestra, que toma logo um caminho picante: se a igreja é muito antiga, se elas são solteiras, se moram por ali, se há na casa da loirita um quarto a mais ou uma cama (abespinha-se: "isso num chei!") e mais isto e aquilo. Não dão muito pela minha curiosidade arqueológica e não sabem bem a qual delas me atiro ou que faço ali. Duas saem aos saltos, à outra peço-lhe tremoços que mos atira, caem no chão, pede desculpa, dá-me mais na mãozinha, pergunto se não há vinho para os forasteiros. Estou nisto e sai da porta, mesmo ao pé da igreja, a Lindita, a minha Lolita, a Super-Geninha. A bolota-talismã não me desenganou. Sai a correr, leva um cântaro e desaparece numa azinhaga. (A esta maravilha perco-a sempre por azinhagas). Estou em ir ou não ir atrás dela, mas disfarço o jogo, por causa das quatro sabichonas e também porque ela, tendo-me visto, não deu mostras de me reconhecer. O que me parece pouco natural, dado o meu blusão negro, característico, os óculos, a cara espantada, as calças todas amachucadas. Vira-me ainda não há umas 5 horas. Falara com ela duas vezes. Rondara-a com os olhos. Mas talvez não desse à minha ida ali qualquer significado especial, talvez não me topasse por eu estar a pôr-lhe os cornos com as outras, qualquer delas me servia para abrir o meu apetite da Super-Geninha, se isso fosse preciso. Mas o foder dá a vontade do foder (mais). Reparou em mim? não reparou? Daí a nada voltava a correr, sem o cântaro, e olhou-me como da primeira vez e eu olhei-a, com naturalidade. As quatro sabichonas não deram por nada. Entretanto, tinham-se ido sentar mais adiante e eu dei-lhes sopa, porque não aturo más-criações (mesmo fingidas e provocadoras) e agora que já vira a Super-Lolita-Super-Geninha não me calhava estar a namorar com elas. Vou-me para a capela, na minha nova pele de arqueólogo amador, neo-Proença. Surge o sacristão, que olhou para a blusa nova e não reparou nas calças esfiampadas, rotas e cosidas no cu. Óptimo. Falo para o futuro (dele): que quero tirar umas fotos àquela igreja tão antiga (muito, muito, diz-me o tipo a impingir-me a mercadoria), vejo uns baixos-relevos muito antigos (?) e muito toscos também, entro na capela, bisbilhoto tudo. O baptizo já acabou, e estão agora todos cá fora a conversar. Falo ao tipo na minha reportagem, em fotos - ele aí atrapalhou-me porque está um tipo precisamente cá fora a tirar fotografias ao bebé ranhoso e ao padre cara-de-cabra-doente, mas digo que a minha máquina é melhor, é minha. (Não tenho máquina nenhuma).

O tipo concorda, está à espera duma gorja bestial mas eu lanço-o no caminho das grandes esperanças (no futuro). Falo da Fundação Gulbenkian, de milhões, de petróleo. Sou agora repórter da Fundação, faço de Santana Dionísio. Logo a seguir tomo nota do nome e morada do cavalheiro a aprazar vinda próxima, pois é nesta terra que me sinto bem. Entretanto, catrapisco ao longe a Super, que está numa bela pose inclinada a ver o grupo a tirar poses e mais poses para mandar ao pai da criança. Se a pudesse engatar! Vou atrás daquelas bestas, sempre metendo fantasias na pinha do sacristão, que é um espertalhão-estúpido, típico maloio de Braga. E vou-me. Marcho para Braga, está a fazer-se tarde e faz frio. Gasto a última coroa para a caixinha da rapariguita que me guardou a bagagem. Visto o casaco e vou ao ataque da Pensão Oliveira, onde há que fazer meter na pinha do hospedeiro que sou um velho e fiel cliente da casa. Havia nesta pensão duas velhotas Antigo Regime, uma sala de cortinados com um piano e duas maganas que tinham (uma delas) bigodaça loira. Tá tudo mudado: bar americano, tasco infame, forno de assar frangos. "As velhas morreram, para dar lugar à gente, antão?!", diz-me a filha do dono. Este leva-me ao meu antigo quarto no 2º andar, pergunto pelo piano, ainda lá está porque não há quem o queira. E na antiga cozinha é agora um quarto para noivos ou casais que façam muito uso de água, porque tem chuveiro e bidé sanitas anexo. Um regalo para encontros furtivos. Aqui a luxúria envolveu-se no campo perigoso da política, ah! ah! Bebo mais um copo, que me dá uma grande volta às tripas.

Tenho de ir para o jardim passear, com vómitos embrulhados na língua. Aguento. Jantar. Dois moços de fidalgas famílias ou de massa? são estúpidos mas gulosos de mulheres. Meto conversa. Pergunto como é isto aqui de putas em Braga. Faço-lhes um sinalzinho com o dedo indicador em curva para virem até à minha mesa e levo o assunto para o minete, reforçado depois com o biminete. Dizem que há aqui o 28, que tem uma (pelo menos) gaja boa. Pergunto se já fizeram ou viram fazer minete. Explico-lhes o biminete. Pretendo com isto uma bacanal a cinco, que eles pagariam para me ver e foder as miúdas. Ficaram chocados com a minha declaração de que o foder já não se usa, cansa muito e eu tenho tesão, mas não fodo. São eles que terão de foder as mulheres. Não percebo bem se estão espantados, irritados ou entusiasmados. Querem ir ao 28 mas digo que depois de jantar, nada. Mais tarde. Eles então vão para o cinema e eu fico de ir esperá-Ios à porta. Saem jurando vingança! Cravo um maço de Paris ao balcão e fósforos. E perco-me pouco depois a explicar a um melro que o Totobola não prejudica isto da lotaria porque o lucro vai para a mesmíssima sereníssima beatíssima Misericórdia. Depois aparece um velho ginja que é monárquico, um tipo assanhado com um olho com um grande penso branco e um cabo ou sargento (não entendo de divisas) que vai para Angola e diz que um rei alemão, que nem sabe falar português, não lhe serve. Grande barafunda, berraria, copos, risadas. Eu vou de grupo a grupo, dou razão ao que está mais perto, digo ao sargento que o ginja pode ser um agente da Pide e provocador, o do olho entrapado diz que ele é um caixeirote, que nem fidalgo é, etc. O sargento diz que ele é que é da Pide, que pode até mostrar o cartão, que o monárquico é um mentiroso. Nessa altura levo os dois republicanos ao meu quarto (o monárquico acabara de revelar a sua isenção cívica, declarando que tirava o chapéu à bandeira verde-vermelha, porque era a bandeira da Pátria, a Nação em forma de trapo, e que isso da bandeira azul-e-branca era uma história). Percebo que é um monárquico convicto, mas desiludido: está-se cagando para o D. Duarte Nuno, e diz apenas que há-de morrer assim, já que sempre foi monárquico.

No meu quarto dou ao sorja o Depoimento duma Angolana. Ele começa a ler em voz alta. Lê bem, mesmo as gralhas. O tipo do olho branco começa a ficar branco pró resto da cara. Abre a porta o dono da pensão (diz) porque viu luz. Suporia panascaria? Fecho a porta, à chave, depois de o ter tranquilizado que era tudo gente de bem. Discussão atrapalhada ou trapalhona sobre Angola-é-Nossa, pretos maus e brancos bons e vice-versa, com o sorja. O do olho tapado diz que tem gente à espera e desaparece. A discussão com o sorja nunca se azeda: ele diz que sempre é bom um tipo estar informado, eu digo-lhe que ele me pode prender ou mandar prender, mas que é o meu dever (tirada de editor patriota), ele tem medo de deixar as impressões digitais no papel, eu digo-lhe que a autora (branca, note, branca, e filha de brancos e casada com um branco) já foi chamada à Pide, ele suporá agora que sou eu da Pide, estamos os dois bêbados e taralhoucos, acaba por jurar que pode morrer mas aquilo é nosso e foi nosso, sim, que há uma razão para se defender, e que pensa que há-de ter a sorte de matar ao menos um preto antes de o matarem a ele, e pira-se, clamando mortes e glórias. É um doido.